quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Descartes: o começo de uma inversão (II)

Sidney Silveira
Vimos no texto anterior que a dúvida universal com que Descartes inicia o seu método é uma pura e simples impossibilidade, porque ou há a dúvida universal e o Cogito não é válido, ou há o Cogito e a dúvida não será universal. Ademais, como também ficou consignado, o francês emite o seu juízo Cogito, ergo sum (concedamos, por ora, que o seja) por um ato da inteligência após impugnar todos os juízos da inteligência com a dúvida “universal”. Fazendo, portanto, de tal dúvida um método, Descartes imagina encontrar a verdade de sua própria existência como ego cogitans. O frágil imanentismo desta posição é patente, e aqui cabe uma proveitosa comparação: se, em Santo Tomás, estamos em uma filosofia do ser, ao qual o pensamento se submete na exata medida em que o pensar tem a sua referência fundamental no ente (que é o que "tem ser" [habet esse]), com Descartes encontramo-nos em uma filosofia na qual a idéia passa a ter, por meio de um artifício, uma espécie de supremacia sobre a realidade. A diferença radical, como se costuma dizer, é entre uma ontologia em terceira pessoa — com sólida base metafísica, radicada no ser — e uma ontologia em primeira pessoa, radicada no “eu”. Na prática: coloca-se o “sou” no lugar do “é”. Ou pior: o “é” passa a depender, diretamente, do “sou”.

Como diz Derisi, se se duvida de toda a realidade exterior — e portanto do ser em geral —, dever-se-ia igualmente duvidar do próprio “eu” pensante, na medida em que este é, também, objeto de um ato da inteligência. Na prática, o francês prescinde do ser para encontrar, mediante a dúvida “universal”, a idéia (o “eu” pensante) que acolhe como fundamento de todo o seu sistema. Acerca disso anota Derisi, no já citado Filosofía Moderna y Filosofía Tomista:

“Enquanto, para Santo Tomás, a idéia não é mais do que um meio transparente (medium in quo) que nos põe em comunicação imediata e em identidade intencional com a realidade (fieri aliud in quantum aliud), de modo que o termo do conhecimento não é o verbo mental, mas o ser extramental por este captado — desvanecendo-se assim a célebre questão da “ponte” entre sujeito e objeto —, para Descartes o imediatamente alcançado por nosso conhecimento é a idéia mesma”, (...) que apenas por um recurso [uma muleta, digamos!] à veracidade de Deus sabemos estar conformada à realidade”.

Eis, a meu ver, a diferença radical: em Santo Tomás, partimos da realidade, a qual é percebida pelos sentidos externos, laborada pelos sentidos internos, abstraída de suas qüididades materiais pelo intelecto, para retornar a ela intencionalmente, na forma de conceito; em Descartes, não partimos da realidade (mas de uma idéia equivocada) e não retornamos a ela, mas sim à mesma idéia, e, portanto, ao sujeito que a engendrou. Em suma, estamos nesta filosofia emparedados na imanência do nosso pensar, e aqui não haverá saída, a menos que apelemos a Deus — recurso conveniente de Descartes para salvar do naufrágio o seu sistema*. Este é, na verdade, um dramático clamor ao Todo Poderoso para que o livre da esquizofrenia em que se meteu. Mas Descartes nem sequer percebe que este seu apelo à veracidade de Deus é uma efetiva contradição do fundamento de sua filosofia, pois se a dúvida era “universal”, e se, pelo Cogito, só se chega à certeza da existência do próprio “eu” pensante, como recorrer (por um outro ato da inteligência) a Deus?

Eis, portanto, a herança da obra de Descartes para os séculos seguintes, sintetizada num axioma: “Além do pensamento, qualquer coisa é impensável”. Kant, como veremos, criará um sofisticado (e igualmente quimérico) sistema para esse louco solipsismo.

Conclui ainda Derisi: Santo Tomás, realisticamente, chega a Deus apoiando-se no conhecimento das coisas; Descartes precisa apelar a Deus para concluir que existe alguma coisa além dele mesmo — do seu próprio “eu” pensante. [Indaguemos: pensante?]

Algum leitor poderia perguntar, a esta altura: por que a crítica a Descartes num espaço destinado a desmascarar a alienação do liberalismo, em todas as suas principais linhas? A resposta o Nougué já a apontou noutro texto, ao insinuar-nos que, sem a maldita herança cartesiana, o liberalismo sequer teria sido historicamente possível. E não o seria simplesmente porque os liberalismos, assim como o sistema de Descartes — só que de forma muito menos nobre e extremamente mais daninha — precisam isolar o “eu” (com a nomenclatura de “consciência individual autônoma”), para depois afirmá-lo negando toda a realidade exterior. E em Descartes já o encontram apartado das coisas reais...

(voltaremos ao tema)

* É famosa a 3ª Meditação, na qual Descartes se apóia — fragilissimamente — na idéia de que o mundo existe, sim, mas simplesmente porque... Deus não o enganaria!.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ainda René Girard


A beleza será inútil, se o esplendor da verdade
não a adornar com o seu brilho próprio.

(São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus)

Sidney Silveira
Na esteira do Magistério e de todos os grandes doutores da Igreja, o notável São Francisco de Sales ensina-nos que o bem, quando considerado em si mesmo, excita o amor — primeira e fundamental paixão da alma. E se esse bem amado está ausente, provoca-nos o desejo; se, sendo desejado, julgamos poder obtê-lo, estamos na esperança; se o imaginamos impossível, damos o primeiro passo para cair no desespero; quando o possuímos no presente, sentimos alegria. Em contrapartida, o mal, quando considerado como algo contrário a esse bem que amamos, nos desperta o ódio; se o mal está presente, nos vêm o temor; se é inevitável, nos traz tristeza; se nos afeta, advêm-nos a ira; se podemos reagir a ele de alguma forma, a vontade nos instila o desejo de vingança. E por aí se vai...

Todas essas realidades são empiricamente comprováveis. Basta, para tanto, que olhemos para nós mesmos com atenção, quando acossados por algumas dessas paixões, e busquemos a razão fundamental de se manifestarem elas em nós. Em todas veremos que está, na raiz, o amor. Não um amor abstrato, mas um amor real, vivido por um sujeito real em relação a algo real. E esse amor é especificado pelos objetos a que se dirige: se é um amor exagerado de um homem a si mesmo, engendra o orgulho, e este acarreta a inveja e todas as suas filhas: murmuração, detração, ódio, tristeza pelo bem alcançado pela pessoa invejada e alegria com o seu infortúnio. Se é um amor a Deus e ao próximo pelo bem intrínseco destes (amor de benevolência, como dizem os grandes tratadistas de teologia moral), engendra-nos o movimento de efusão em direção ao bem da pessoa ou do objeto amado. Neste caso, queremos simplesmente doar-nos. É o êxtase — ato culminante do verdadeiro amor. Amor que abrasa as nossas potências superiores: inteligência e vontade.

Que diferença para a pressuposição de René Girard de que só desejamos algo como imitação invejosa de um bem pertencente a outrem! Se a tese dos doutores da Igreja está certa, tal imitação girardiana só poderá ser a fonte do desejo nos casos dramáticos de alguém que, por orgulho, só consiga ver o próprio bem. Mas isto é patologia gravíssima — e fazermos do ser humano “normal” esse egolátrico é, para dizer pouco, o fim da picada. O pobre Girard (Deus sabe se tomando a si mesmo ou não como parâmetro) sequer chegou perto do amor como ato livre da vontade que vislumbra, entende e quer o bem em si mesmo. E dos graus desse amor, então, nem se fala a que distância ele está! Ao lermos alguns dos principais pressupostos de sua tese, vemos também que, se alguma vez esse homem leu acerca da distinção entre amor sensual, amor racional e amor espiritual, jamais pôde entender essas realidades. E, como mostramos noutra ocasião, se levamos a sua tese às últimas conseqüências, o amor ao próximo e, sobretudo a Deus, torna-se formalmente impossível.

Voltemos a São Francisco de Sales e ao que diz num trecho do já citado Tratado do Amor de Deus. “Nossa alma é espiritual, indivisível, imortal; entende, quer e, livremente, é capaz de julgar, discorrer, saber e ter virtudes, coisas em que se assemelha a Deus. (...) Se bem que o estado da nossa natureza humana não seja agora dotado da saúde e retidão original que o primeiro homem possuía, e que, pelo contrário, nós estejamos grandemente depravados pelo pecado, sempre sucede que a santa inclinação de amar a Deus sobre todas as coisas nos fica, como também a luz natural pela qual conhecemos que a sua suma bondade é amável sobre todas as coisas”. Para o grande santo, o amor a Deus (dádiva do próprio Deus!) — amor formalmente impossível, na tese de Girard — é o que dignifica sobrenaturalmente todos os amores e desejos humanos.

Mas, ainda no plano natural, o amor (ato da vontade), segundo o autor do igualmente estupendo Introdução à vida devota, é a primeira complacência da alma humana no bem — bem este que é percebido pelos sentidos, entendido pela inteligência e, por fim, querido pela vontade. Nesta ordem. Em tal contexto o amor precede o desejo, pois não há como desejar o que não amamos sob nenhum aspecto; precede a esperança, porque não se espera senão o bem que se ama; precede o ódio, porque não odiamos senão na medida em que algo é impedimento para o bem que amamos e queremos; etc.

Em linguagem cristã, o nome técnico para o “desejo mimético” de Girard é veleidade. E o é por ser especificado pela inveja, sendo esta absolutamente incapaz de gerar algo além de um anelo fútil.

Entre inúmeras outras razões, o problema da tese de Girard é que não parte de um bem ontológico externo (os entes do mundo real, percebidos, entendidos e queridos por diferentes potências da forma entis humana), mas de um suposto “bem” psicológico interno (a pressuposição de que a posse de algum bem nos torna melhores aos olhos dos outros).

Não admira que um sujeito desses agrade a muitos liberais, que costumam negar o mundo exterior para afirmar a sua consciência individualautônoma”.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O “mea culpa” de Alan Greespan, outro “traidor” da causa (ultra)liberal

Sidney Silveira

O mundo sem regras (ou com algumas poucas, toleráveis) do quimérico, irresponsável e demolidor ultraliberalismo está em ruínas. Agora foi a vez de Alan Greespan — no mais eloqüente depoimento jamais feito sobre os erros desse liberalismo que propugna um mercado absolutamente livre. Eloqüente porque insuspeito.

Ex-presidente do Federal Reserve por quase duas décadas, o liberal Greespan — o todo-poderoso guardião do mercado sem amarras — fez um espetacular mea culpa ontem, perante uma estupefata assistência da Câmara dos Representantes dos EUA. Ele disse que errou ao se opor a uma maior regulamentação para os chamados "derivativos" e também a uma regulação mais firme para os bancos, enquanto esteve à frente do Fed. E mais: “Estou chocado. Acompanhei por mais de 40 anos evidências significativas de que o modelo baseado nessa ideologia [qual seja: a do livre mercado] estava funcionando excepcionalmente bem. Hoje vejo que as empresas deveriam ter sido mais reguladas [pela autoridade] para impedir o tsunami do crédito. (...) Estamos todos em estado de perplexidade e descrentes na idéia de que os agentes tenham capacidade de se autoregular e exercer a necessária vigilância uns sobre os outros. O MANTRA ERA O DE QUE A REGULAÇÃO DO GOVERNO ERA UM ERRO, E DE QUE O MERCADO ERA INFALÍVEL”.

Agora vem mais, e no sentido do que temos afirmado aqui ainda nesta mesma semana. Frisou o liberal Greespan:

“Os investidores [os quais, no vocabulário menos tecnocrático do blog, recebem o nome de especuladores] que compraram títulos lastreados por hipotecas é que não avaliaram bem os riscos do mercado imobiliário, e A CULPA, NESTE CASO, É DELES, e não do governo".

E mais, ainda na opinião do ex-presidente do Fed (que durante anos se opôs, com todos os argumentos do "arsenal" liberal, a uma maior supervisão dos agentes econômicos):

“O pacote de socorro de US$ 700 bilhões é ADEQUADO”.

As palavras de Greespan impressionam, por serem um extraordinário depoimento de um liberal teórico e prático. Amigos, o REI ESTÁ NU!

P.S. Mudando de assunto: começo a ficar desconfiado de que, entre os ultraliberais que hoje fazem campanha sistemática contra o Obama (e não me refiro aqui aos liberais econômicos, os quais são apenas bois-de-piranha), há quem tenha o firme interesse de elegê-lo — por infernais razões que me escapam, pelo menos em seu conjunto. Um angélico passarinho me contou, e, depois de passar por dramas verdadeiramente providenciais em minha vida, aprendi a dar crédito a esse passarinho. A vitória do democrata talvez seja verdadeiramente trágica para o mundo, mas não no sentido simplesmente material que querem fazer-nos crer. O buraco é mais embaixo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser (I)

Carlos Nougué
Passo a escrever esta série por duas razões: 1) porque em “Pensamento mágico e bom senso (IV)” prometi a uma amiga que a escreveria; 2) para fazer um contraponto com a excelente série sobre Descartes iniciada anteontem pelo Sidney neste mesmo blog: enquanto a dele terá por ponto de partida a relação entre a “dúvida metódica” e o Cogito cartesianos, a minha tratará esse mesmo Cogito do ponto de vista lógico, embora, por razões óbvias, não vá cingir-se a este ângulo. Mas, em verdade, há uma terceira razão: o mostrar um pouco o que é a lógica aristotélico-tomista (para quem quiser aprofundar-se, é obrigatória a leitura, pelo menos, dos “Segundos Analíticos” ou “Analíticos Posteriores” do Órganon aristotélico e a Expositio libri Posteriorum Analyticorum de Santo Tomás de Aquino), e mostrá-la até para eventuais opositores da nossa tese, porque sem essa base comum, estou convencido, qualquer disputa se torna muito difícil, se não impossível.

Pois bem, venho repetindo ao longo da série “Pensamento mágico e bom senso” que o “Penso, logo sou” cartesiano é um entimema cuja premissa maior é “Para ser, é preciso pensar”, ou seja: para Descartes, é o pensar a causa do ser, e não o inverso, o ser é a causa do pensar, como sempre disse ou pressupôs toda e qualquer filosofia fundada nos primeiros princípios e no bom senso. Poder-se-iam levantar duas objeções à tese: primeira, a premissa maior do entimema cartesiano é de fato “Para pensar, é preciso ser”, ou seria preciso pressupor uma espécie de loucura em Descartes; segunda, o “Penso, logo sou” não é um entimema, porque de fato nem sequer é um silogismo: é um juízo. Vou responder às duas, mas começarei pela última, porque responder a ela é já lançar para o debate fundamentos lógicos aristotélico-tomistas.

Ora, a razão humana tem por ato próprio o raciocinar, ou seja, o produzir silogismos ou raciocínios. Raciocinava Santo Agostinho ao dizer:

● Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente);
● Ora, eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”);
● Logo, sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).

Dizer que produzir silogismos é o ato próprio da razão humana é dizer que, em termos humanos, sem silogismo não se pensa propriamente. Naturalmente, se qualquer silogismo é uno e indiviso enquanto ato de três passos, é também complexo e divisível enquanto composto precisamente desses três passos, assim como uma caminhada é, enquanto ininterrupta, um ato uno e indiviso, mas complexo e divisível enquanto composta de passos.

Que são esses passos do raciocínio? Ora, justamente juízos ou proposições. Trata-se de operações do intelecto humano anteriores aos silogismos e por eles supostas. Assim, o silogismo de Santo Agostinho mencionado acima é composto exatamente dos seguintes três passos ou juízos (e repito-o porque terá grande importância para demonstrar a absurdidade do raciocínio cartesiano):

1) Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente).
2) Eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”).
3) Eu sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).

Pelo primeiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “todo aquele que se equivoca” este outro termo: “tem ser”; pelo segundo juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “me equivoco”; e, pelo terceiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “tenho ser”. Em cada juízo, portanto, afirma-se que um segundo termo convém a um primeiro termo. O primeiro termo será sempre o sujeito (do lat. subjectus, a, um, “posto sob” o que se vai predicar dele), e o segundo, justamente seu predicado ou atributo, podendo o predicado ou atributo, em termos gramaticais, reduzir-se sempre a verbo de ligação (“ser”, estar”, “tornar-se”, etc.) + predicativo (assim, “me equivoco” pode reduzir-se a “sou [verbo de ligação] um ‘equivocante’ [predicativo]”).

Mas são duas coisas o que mais importa reter aqui com relação ao juízo:

a) O ato de julgar, assim como o ato de caminhar, é uno e indiviso, mas, ao contrário deste, propriamente falando, é um ato indivisível. Com efeito, o juízo “Eu sou um ‘equivocante’” não é uma sucessão de três passos do pensamento: um passo “eu”, um passo “sou” e um passo “um equivocante”. É bem verdade que, assim como um passo de uma caminhada é um movimento entre um ponto de partida e um ponto de chegada, movimento que faz parte de um conjunto de movimentos cuja unidade é dada por um mesmo impulso, assim cada um dos termos de um ato de julgar (o termo sujeito [no exemplo acima, “Eu”] e o termo atributo ou predicado [“um ‘equivocante’”]) é um elemento seu, elemento que faz parte de um conjunto de dois elementos cuja unidade é dada pelo verbo de ligação (“sou”). Mas, então, como é possível dizer que algo é indivisível se esse algo é composto de elementos? Tal é possível porque cada juízo se apresenta ao nosso intelecto em conjunto, como um todo, ou seja, é formalmente indivisível, e, de fato, se dividíssemos esse todo, seus elementos deixariam de ser o que são nele: passariam a ser apenas dois conceitos e, portanto, já não seriam um sujeito e um predicado, perdendo desse modo a função lógica, assim como uma mão separada de um corpo perde a função orgânica e já não se pode dizer “mão” senão impropriamente. Todo e qualquer juízo, portanto, é um só ita est (é assim).

b) Já se pode vislumbrar, pelo que se disse até aqui, a resposta à objeção de que o “Penso, logo sou” de Descartes não seria um entimema, mas um juízo. Desenvolverei esta resposta no próximo artigo, deixando porém registrado desde já: veja-se que entre o silogismo de Santo Agostinho e o rol de seus três juízos há uma grande diferença – a ausência, neste rol, sobretudo da conjunção “logo”, mas também do ponto-e-vírgula entre os juízos.

Em tempo: Cada conceito ou noção, enquanto elemento de um juízo, corresponde em si a determinado ato do intelecto chamado percepção ou simples apreensão. Trata-se, com efeito, de uma operação anterior a qualquer juízo e por ele suposta, e é a primeira operação propriamente intelectual de conhecimento, seguindo-se imediatamente às operações de conhecimento próprias dos sentidos externos e internos. Este ponto, porém, ultrapassa a finalidade desta série.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A quimera da liberdade econômica absoluta e a crise atual (II), [em prol da clareza]

Sidney Silveira
Estritamente no tocante à economia, decerto o objetivo deste blog não é criar mal-entendidos, ao fazermos críticas ao liberalismo que defende um mercado livre de quaisquer amarras. É mostrar os pressupostos de uma visão de mundo terrível, aplicada à economiae não certos meandros técnicos. Mas como a técnica, em qualquer ordem de conhecimento, está a serviço de algo que a transcende, muitas vezes é preciso chegar a ela para fazer uma crítica com justeza, critério e, sobretudo, clareza expositiva. Sem isto, corremos o risco de não ser compreendidos sequer por nossos opositores neste tópico, o que é mau.

Ao abordarmos, no último texto sobre o tema, a crise financeira que assola as principais economias do mundo (para a qual os governos injetaram bilhões de euros e de dólares, na tentativa de evitar um quebra-quebra de instituições bancárias de grande porte), não fomos suficientemente claros, pois demos por entendidos alguns pressupostos. Vejamos se, agora, as coisas se tornam mais claras:

1- Dizem os liberais econômicos ligados ao que se convencionou chamar de escola austríaca que o Federal Reserve manteve, por anos, a taxa de juros norte-americana artificialmente baixa, pensando com isto estimular a atividade econômica (de forma indevida, segundo o seu parecer). E que Von Mises — cujas premissas psicológicas de sua Ação Humana mostramos aqui ser absolutamente insustentáveis — já alertara há décadas para o seguinte: a prática de taxas de juros abaixo das que equilibrariam, naturalmente, a oferta e a demanda de fundos para empréstimos até poderia estimular e aquecer a economia por algum tempo, mas, depois, isto provocaria inflação e desemprego. De acordo com esta tese, a crise atual teria então como causa direta a manutenção das taxas de juros baixas pela autoridade monetária. Esta teria sido a primeira intervenção equivocada do governo, de uma série. Em linhas gerais, é o que expõe com grande clareza e competência o Prof. Ubiratan Iorio no artigo do mês — intitulado O saber dos economistas “austríacos” — publicado em seu site (
http://www.ubirataniorio.org).

1º esclarecimento:

Em momento algum entramos no mérito da tese de que a referida ação do Federal Reserve traria inflação e desemprego a médio e longo prazos. Mas, antes de reiterar a nossa crítica, façamos uma pergunta objetiva: a atual crise foi mesmo uma crise “de inflação e desemprego” causada remotamente pela intervenção do governo? Ou foi causada proximamente pela livre ação de agentes econômicos que fizeram empréstimos irresponsáveis (no chamado mercado subprime) sem nenhum controle por parte da autoridade monetária? Ou ainda: a segunda ação foi decorrência da primeira? Pois bem, a primeira tese é uma teoria — e CONCEDAMOS que esteja certa! — e a segunda é um fato consumado: houve realmente uma farra de empréstimos a maus pagadores sem que o Fed fizesse nada quanto a isto, o que trouxe insolvência a instituições bancárias de grande porte que, se quebrassem, levariam consigo milhões de correntistas — pessoas físicas ou jurídicas. Então, entre uma teórica causa remota e uma efetiva causa próxima, optamos pela segunda (mas CONCEDAMOS que, também aqui, podemos estar errados). Quanto à terceira tese (a de que a farra de empréstimos no mercado subprime é decorrência direta da ação do Fed de baixar os juros artificialmente), já a veremos.

2º esclarecimento:

Tomada a primeira medida intervencionista, segundo esses mesmos liberais (a de manter a taxa de juros, artificialmente, baixa), vem a segunda intervenção equivocada de acordo com o seu parecer, e num duplo sentido: o governo deu garantias a hipotecas e tomou medidas “keynesianas” de expansão do crédito. CONCEDAMOS também que esta tese esteja corretíssima, com o propósito de ter um ponto em comum com os nossos oponentes, para chegar à seguinte e decisiva questão. Mas atenção: concedamos à guisa de método dialético.

3º esclarecimento:

Diante destas intervenções do governo (e aqui CONCEDEMOS e até assumimos a terminologia dos nossos oponentes, para seguir-lhes de perto as pegadas), a tese desses liberais é a seguinte: dadas as três ações do governo — recapitulando: manutenção artificial de uma taxa de juros baixa, por longo tempo; garantias dadas a algumas hipotecas; aumento da oferta de crédito —, a responsabilidade pelo aumento de investimentos “equivocados” no mercado subprime é do governo. Ou seja: o mercado teria feito a “leitura certa” de que as hipotecárias seriam socorridas pelo governo, e então houve uma "natural" corrida ainda maior ao crédito. Quando então a taxa de juros subiu, as empresas de financiamento imobiliário sofreram diretamente, pois a crise atingiu os títulos lastreados por esses empréstimos — ativos tóxicos, na fala bonita dos tecnocratas — e também chegou para outros agentes do mercado de crédito (leia-se bancos de investimento que entraram na ciranda). O resto da história é conhecido.

Aqui chega o ponto em que não há mais como concordar, e não por uma questão técnica da economia, mas pelo pressuposto implícito da tese: os agentes do mercado não têm qualquer responsabilidade! E sim o governo. O governo é que, ao intervir em certas bases, fez o mercado agir como agiu (pobrezinho). Mas o que é o mercado? É porventura um sujeito dessubstancializado? É algo uno ou composto? E, sendo composto, a sua composição é de agentes livres e independentes ou não? Vejamos em textos seguintes o que dizem alguns economistas de diferentes linhas. Dependendo da resposta, muita coisa pode mudar.

O que criticamos, portanto, é o pressuposto quimérico da intocabilidade absoluta do mercado, em quaisquer situações.

Em tempo: CONCEDEMOS, obviamente, que as intervenções indevidas do governo na economia — e as há, e muitas! —são nefastas. Por exemplo: quando o governo usa o dinheiro do contribuinte para gastos em “cultura” (entre aspas mesmo!), esportes, etc. Mas dizer que toda ação do governo na economia é, em si, má, além de ser uma postura dogmática no pior sentido da palavra, implica jogar a criança fora com a água do banho, pois, neste caso, já se perdeu totalmente o princípio de subsidiaridade do Estado — do qual ainda falaremos e que traz arrepios a alguns ultraliberais, só de ouvir falar.
Em tempo2: O Prof. Ubiratan Iorio, realisticamente, afirmou que os Bancos Centrais europeus agiram de forma correta, no momento em que estavam tentando salvar as economias dos países, com a ajuda aos bancos. É a última afirmação da entrevista concedida por ele à Globonews.
Em tempo 3: Pedro Malan, em interessante entrevista à Míriam Leitão, talvez citando Hayek, diz que chegamos ao fim de um ciclo econômico de grande crescimento — e agora chegou o momento do ajuste natural do mercado. E mais, embora o ex-ministro pareça pensar que NÃO houve um excesso de liberalismo (leia-se: de auto-regulação do mercado), ele afirma que, após a presente crise, teremos um novo padrão de regulação para os mercados, com a diminuição das agências reguladoras “balcanizadas” e sua substituição por algo mais centralizado, no que diz respeito à supervisão dos agentes econômicos. E diz mais: será uma regulação MAIS EFICAZ! Para acessar o link da entrevista talvez seja preciso ter uma senha no site www.globo.com, mas não estou certo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Descartes: o começo de uma inversão (I)

Sidney Silveira
“Penso, logo sou” (Cogito, ergo SUM). É com este o juízo que Descartes pensa reconstruir todo o edifício filosófico do ocidente, após brindar-nos com o que ele julga ser uma dúvida universal transformada em método. Veremos, mais à frente — pelo escrutínio feito por um bisturi dialético — se o Cogito cartesiano tem alguma chance de salvar-se como juízo válido. Antes disso, contudo, analisemos algumas das suas premissas, e não com a nossa modesta opinião, mas partindo do que o próprio filósofo francês consignou em seus textos. E isto sem deixar de assinalar que, em filosofia, as premissas de um sistema importam tanto ou mais do que as conclusões, pois a força de qualquer doutrina filosófica não se mede por suas afirmações expressas (dado que todas as têm!), e sim pelo que se supõe ser o seu edifício lógico, a sua estrutura interna, a sua capacidade de alcançar validez medindo forças com as teorias contrárias, com as genuínas objeções.

A dúvida universal

Como toda a filosofia anterior não lhe parecera segura, Descartes — que sem conhecer minimamente a escolástica considerava-a “dogmática" — anuncia ser necessário recomeçar tudo a partir de idéias claras e distintas, de um ponto por assim dizer arquimédico no qual o edifício filosófico, enfim, encontrasse o seu fundamento. A isto ele foi “inspirado” por três sonhos* (o que é verdadeiramente emblemático, para uma filosofia idealista), e, a partir desta famosa jornada onírica, o pensador francês acreditou-se um iluminado, um escolhido para mudar os destinos da filosofia.

A mathesis universalis de Descartes parte da certeza de que os nossos conhecimentos são duvidosos (menos, é claro, o conhecimento pressuposto neste juízo, do qual ele tem toda a certeza, o que põe a nu a petitio principiis). E duvidosos a começar pelos dados que nos fornecem os sentidos e a imaginação*, os quais, para o cartesiano, são totalmente enganosos. É preciso, portanto, encontrar algo sólido, um critério seguro que nos permita discernir o verdadeiro do falso. E ele supõe encontrá-lo na dúvida “universal” a partir da qual chega à certeza de que pensa, e tal certeza lhe trará outra: a de que é — ou seja, a de que existe. "Penso, logo sou (existo)".

Pergunta-se Octavio Derisi em seu para muitos embaraçoso Filosofía Moderna y Filosofía Tomista: é possível semelhante “dúvida universal”? De cara, registre-se que a simples postulação da dúvida “universal” mostra o total desconhecimento de Descartes da resolução que deram ao mesmo problema — e partindo de um ponto muitíssimo mais profundo e seguro — Aristóteles, na Metafísica, e Santo Tomás, em seu Comentário à Metafísica, III, lec. I, que não cabe expor aqui em detalhes, para não mudar de assunto. Por favor, procurem os textos e os leiam com atenção.

A resposta decisiva é “não”! Não é possível tal dúvida. E as razões são muito simples, como diz o mesmo Derisi. A primeira é que a dúvida, como todo pensamento, deriva do objeto que significa (no caso, os conhecimentos [dubitáveis] que temos acerca das coisas), e não de si mesma. Uma dúvida universal que não aceitasse nada como verdade, a não ser ela mesma, seria não apenas contraditória, mas impensável e impossível, pois se diluiria como dúvida ao diluir-se como pensamento de algo. Ademais, se a dúvida fosse realmente universal deveria abarcar a si mesma, e Descartes deveria também estendê-la ao pensamento que lhe traz a certeza de que duvida, mas isto ele não faz. Escapou-lhe, incrivelmente, que A DÚVIDA JÁ PRESSUPÕE O “EU” EXISTENTE QUE DUVIDA; logo, este não poderia jamais ser a conseqüência lógica (e muito menos ontológica) daquela. E muito menos a única certeza que tal dúvida "universal", inadvertidamente, deixou escapar: o "Penso".

Mas, como o melhor método de refutação é aceitar a premissa errada e dela extrair os corolários, concedamos a dúvida universal (ainda seguindo as pegadas de Derisi) e vejamos que bicho dá. Concedamos a possibilidade de um pensamento que, sem autodestruir-se, possa suspender todas as afirmações e negações e iniciar-se com uma dúvida real universal. Proponhamos a disjunção: ou há a dúvida universal, ou não há. Ora, se se aceita a dúvida universal, o Cogito não é válido porque tal dúvida estender-se-ia àquilo que Descartes considera certo: o mesmo Cogito. Portanto, dizer, como faz Descartes, que com o Cogito, ergo sum ele evadiu-se do círculo vicioso da dúvida universal não muda nada. Como brilhantemente afirma Derisi, posta em dúvida justamente a validez de todos os juízos da inteligência, como concluir algo por um ato da mesma inteligência? Estamos num beco sem saída. Como se vê, ou a dúvida universal existe, e o Cogito não é válido, ou vale o Cogito e a dúvida universal cai por terra. Tertium non datur. Eis a premissa com que se inaugura o pensamento moderno: um erro primário que não passaria despercebido a um estudante mediano do período escolástico.

Encerro este primeiro texto da série — que, ao final, mostrará o quão insustentável é o juízo cartesiano mais famoso — com duas frases de Derisi no luminoso livro acima citado:

“Com o seu Discurso, Descartes esboça uma filosofia de tipo imanentista, em que a inteligência "começa" por si mesma. Frente a uma filosofia que vai [em certo sentido] de fora para dentro, na qual a inteligência recebe do ser transcendente a luz da inteligibilidade, Descartes funda outra que vai de dentro para fora, na qual o ser é que é “iluminado” na imanência da própria inteligência” [o ser, na verdade, está à espera de que o "eu" pensante defina-o].

“Esta é a importância do Discurso do Método: ter mudado o curso da filosofia de realista em idealista; ter desconectado a inteligência do ser transcendente (o ser extra mentis [extramental ou além da nossa mente, diríamos]) para aprisioná-lo na imanência; ter, por fim, oposto a uma filosofia de tipo metafísico-gnosiológica outra puramente gnosiológica”.

* A este sofisma Santo Tomás já havia respondido séculos antes, inspirado em Aristóteles: Os sentidos jamais se enganam com relação ao seu objeto formal próprio. O objeto da audição é o audível, o do paladar o palatável, o da visão as formas visíveis, etc. Sendo assim, se eu coloco uma faca num copo d’água e a refração da água dá-me a imagem de uma faca com uma forma curva ou ondulada, diferente da faca real, isto não significa que o sentido da visão me “enganou”. Na verdade, o sentido deu-me a exata imagem de uma faca DENTRO do copo com água, e se a inteligência pressupôs que a faca mudou de forma, não culpemos os sentidos por tal asnice. Santo Tomás, com todo o seu realismo, diz que os sentidos só erram por um defeito no órgão que capta a realidade sensível (uma miopia no olho, por exemplo, ou um problema de surdez, etc).
*A 10 de novembro de 1619, três sonhos maravilhosos advertem Descartes de que está destinado a unificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor.
Em tempo: No final da série, veremos se, de algum ponto de vista, o Cogito, ergo sum pode ser considerado como um juízo necessariamente verdadeiro. Antes — é claro! — deixando consignadas as definições dos termos implicados: “juízo”, “necessidade” e “verdade”.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (VI)

Carlos Nougué
“O coração tem razões que a própria razão desconhece” ― bem poderia ser esse o lema de toda e qualquer ideologia. Seus apologistas, sejam comunistas, nazistas, gnósticos (como Joaquim de Fiori) ou liberais, são, como diz Hecquard (op. cit., p. 41), “muito mais afirmativos que demonstrativos”. A ação empreendida pelos paladinos das ideologias – as quais, a partir da negação de um regime político ou de um sistema econômico, buscam sempre substituí-los por outros, razão por que todas têm sempre caráter revolucionário –, tal ação, como escreve Julien Freund (ibid., p. 246), “tem necessidade de idéias simples, de frases absolutamente feitas, de ficções e até por vezes de mentiras”. Por isso o sentido profundo de toda e qualquer ideologia não pode ser senão este: “a vontade de poder de uma opinião simplesmente afirmada em face de outras opiniões e outros fins” (Julien Freund, idem; itálico nosso).

Em nossos termos: toda e qualquer ideologia, como produto que é do pensamento mágico quimérico (herdeiro, como já se disse, da mente cartesiana, que se pretende fundadora da realidade e, pois, substituta de Deus), busca instaurar revolucionariamente o impossível, e foi nesse sentido que escrevemos, em “O que é a história (III e final)”: “tanto o comunismo como a democracia liberal são, em sentido estrito, impossíveis. Além de monstruosos, que é o outro sentido da palavra ‘quimérico’”. Sim, porque a instauração revolucionária de algo quimérico ou stricto sensu impossível não pode senão gerar um aborto, uma monstruosidade. Aliás, vale para as mudanças sociais e econômicas o que, mutatis mutandis, vale para a guerra: assim como a guerra não será justa, entre outras razões, se o estado resultante dela for pior que o estado anterior a ela, assim também qualquer mudança social ou econômica será iníqua se o estado resultante dela for pior que o estado anterior a ela.

Como, porém, o Leitmotiv desta série é a economia liberal enquanto produto do pensamento mágico, temos de demonstrar, consoante tudo quanto se disse até aqui:

1) que a economia liberal é uma negação, e de quê;

2) que ela teve e tem caráter revolucionário;

3)
que o estado resultante de sua implantação é pior que o estado anterior a ela, e em que sentido;

4) que mesmo diante da economia liberal o realismo católico não assume uma postura revolucionária, o que, porém, mais que mostrar as propostas do Magistério infalível ante essa economia, e tendo por pressuposto algo análogo ao que diz o Padre Álvaro Calderón sobre a cultura (“Assim como só a carne puríssima da Virgem Maria foi apta para receber o Verbo de Deus, assim também só a ‘carne’ da cultura greco-latina era suficientemente sã para ser animada pela sabedoria do Evangelho e edificar a catedral da cultura cristã”), requer que mostremos:

5)
se a economia liberal é “carne” apta e sã para ser animada pela sabedoria evangélica (sabendo-se de antemão, segundo o mesmo Magistério, que não o é a economia comunista, sempre “intrinsecamente má”).

Antes, todavia, de procedermos a essas demonstrações e respostas, é preciso deixar claramente assentado que, ao falarmos de economia liberal como resultado de uma ideologia liberal econômica, não esquecemos que a economia liberal é essencialmente vinculada à democracia liberal (apesar de casos extraordinários, como o da China atual) e, sobretudo, ao liberalismo moral. Trata-se, pois, de uma compartimentação de razão, devida, como já se disse, ao Leitmotiv desta série, a qual compartimentação, porém, se resolverá perfeitamente na série “Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz”. Mas por isso mesmo, em razão de tal essencial vinculação, é que antes ainda de procedermos àquelas demonstrações e respostas temos de mostrar aqui pelo menos de que maneira central se dá tal vínculo, sem o que deixaríamos esta série sem premissas suficientemente claras.

Pois bem, tal vínculo se dá centralmente no fato de a sociedade democrática liberal ser, em verdade, como um todo e em cada um dos seus aspectos, uma autêntica e imensa sociedade anônima, cujo anonimato é assegurado tanto por um radical laissez-faire moral quanto por um maquiavelismo político cujo príncipe, para parafrasearmos Aristóteles, é a moeda enquanto substituta da ganância.

(Continua.)

Em tempo 1: Para começarmos a tratar, como anunciado, da servidão medieval, leiamos este trecho algo longo do extraordinário Luz sobre a Idade Média, de Régine Pernoud: “Na divisão um pouco sumária que muitas vezes foi feita da sociedade medieval, só há lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania, o arbitrário e os abusos de poder, do outro os miseráveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito [...]; tal é a idéia que evocam ― e não apenas nos manuais de história para uso das escolas primárias – as palavras ‘nobreza’ e ‘terceiro estado’. O simples bom senso basta, no entanto, para dificilmente admitir que os descendentes dos terríveis gauleses, dos soldados romanos, dos guerreiros da Germânia e dos fogosos escandinavos se tenham reduzido durante séculos a uma vida de animais encurralados. Mas há lendas tenazes; o desdém pelos ‘séculos obscuros’ data, aliás, de antes de Boileau.

“Na realidade, o terceiro estado comporta uma série de condições intermediárias entre a liberdade absoluta e a servidão. Nada de mais diverso e mais desconcertante que a sociedade medieval e as propriedades rurais da época: a sua origem absolutamente empírica dá conta dessa prodigiosa variedade na condição das pessoas e dos bens. Para dar um exemplo, na Idade Média, ainda que o emparceiramento do domínio represente a concepção geral do direito de propriedade, existe no entanto aquilo que o nosso tempo já não conhece de todo: a terra possuída em franca propriedade, o alódio [...] ou alódio livre [...], isento de todo e qualquer dever e de imposições de qualquer espécie; isso se manteve até a Revolução, quando os alódios ou quaisquer terras declaradas livres deixaram de fato de existir, já que tudo foi submetido ao controle e às imposições do Estado. Notemos ainda que na Idade Média, quando um camponês se instala numa terra e nela exerce a sua arte durante o tempo da prescrição [...], isto é, o tempo de perfazer o ciclo completo dos trabalhos dos campos, desde a lavragem até a colheita, sem ser perturbado, é considerado o único proprietário dessa terra” (itálico nosso).

Pois bem, concluamos da citação sobretudo isto: foi a revolução francesa, junto com a revolução industrial inglesa (que, como veremos, ao contrário do que se quer fazer crer, foi das revoluções mais cruéis), foi portanto a revolução francesa, a mesma que propriamente fundou o mundo liberal, quem eliminou a propriedade da terra totalmente livre (ou seja, livre também de impostos), ao submeter tudo, toda a vida econômico-social, ao controle e às imposições do Estado. Começamos a ver aí o que chamamos uma quimera, um aborto, uma monstruosidade revolucionária: dizendo-se universalmente libertadora, dizendo-se porta-bandeira da deusa Liberdade, dizendo-se vanguarda das liberdades econômicas e políticas, a revolução funda o oposto do que promete: funda a era do Estado propriamente totalitário, e totalitário ainda que formalmente baseado no sufrágio universal.

Em tempo 2: Você sabia que a corvéia medieval, ou seja, o imposto pago pelo servo em forma de tempo de trabalho (não-remunerado) para o senhor, correspondia em média a 10% de sua produção anual? E hoje em dia? Eis um quadro: dentre os 25 países avaliados em determinado estudo, a carga tributária do Brasil (37,82% do PIB) só fica atrás da registrada pela Suécia (50,7%), Noruega (44,9%), França (43,7%) e Itália (42,2%). Mas veja-se que a carga tributária no próprio paraíso da economia liberal, os EUA, é de 25,4%. E concedamos, per absurdum, que o conjunto dos impostos arrecadados nesses países se transforme em benefício para os próprios contribuintes. Pois também a corvéia medieval redundava em muitíssimos benefícios para os servos, como veremos em artigos próximos.

Em tempo 3: Você sabia que o tão malfalado “direito de pernada” medieval, que, segundo o que aprendemos, era o direito do senhor feudal de desfrutar de qualquer esposa servil em sua primeira noite de núpcias (sem o marido, naturalmente), não era nada disso? Veremos no próximo artigo o que era de fato, para também começarmos a ver a enormidade da mentirosa campanha de difamação de que foi vítima a Idade Média.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O desprezo do mundo, na visão de um tomista contemporâneo

Sidney Silveira

Não há como crescer espiritual ou moralmente se se está apegado às coisas mundanas. Para Santo Tomás, o desprezo do mundo (contemptus mundi) é precondição para o pleno desenvolvimento das duas potências superiores da alma humana: a inteligência e a vontade. Uma das premissas do Santo é muito simples, e vale para homens de todos os tempos: se não nos servirmos das coisas do mundo como intermediárias em relação à bem-aventurança perfeita, elas tornar-se-ão formalmente um empecilho para que alcancemos a pátria celeste. Diz o Aquinate:

O homem encontra-se entre as realidades deste mundo e os bens espirituais em que consiste a eterna bem-aventurança, de tal modo que, quanto mais se incline a um deles, mais se afasta do outro (...) Quem se apega às coisas deste mundo fazendo delas o fim da existência, a razão e a regra de seus [próprios] atos, afasta-se totalmente dos bens espirituais. (...) No entanto, para atingir esse fim não é necessário renunciar totalmente ao mundo, porque se pode chegar à bem-aventurança fazendo uso dos bens terrestres, [mas] com a condição de não fazer destes o fim [da existência]”. (Suma Teológica, IªIIª, q.108, a.4. resp).

Nesta mesma resposta da Suma, informa-nos Santo Tomás que os bens deste mundo são de três tipos: uns pertencem à concupiscência dos olhos e são as riquezas; outros, à concupiscência da carne e são os prazeres; e os terceiros à soberba da vida, e são as honrarias humanas. E é justamente para contrapor-se a essas três concupiscências que, de acordo com o Aquinate, o religioso faz os votos de:

Pobreza (contra a concupiscência dos olhos)
Castidade (contra a concupiscência da carne)
Obediência (contra a soberba da vida)

Tão visão nos aponta que a vida religiosa é, em si, muito superior à vida leiga, pois não aplica apenas os preceitos evangélicos (válidos para todos os homens), mas busca também obedecer estritamente aos conselhos evangélicos, direcionados às almas mais perfeitas no seguimento de Nosso Senhor. Vale ressalvar que a vida religiosa é superior quanto aos meios, dado que o fim último é para todos. E superior porque os negotia saecularia são, comumente, um impedimento para a consecução do fim último para o qual Deus nos criou: a bem-aventurança perfeita. Daí a importância — e às vezes a absoluta necessidade! — de desprezá-los. Eis aí a descrição do que seja o desprezo do mundo: usar dos meios para gozar com o fim. Se se inverte esta ordem, cai-se formalmente em pecado.

Na prática, sem o desprezo do mundo (no sentido acima descrito), o acesso do homem às verdades — das mais comezinhas às mais abstratas — será em inúmeras ocasiões obstado. Sem o desprezo do mundo, o homem cedo ou tarde cairá nos chamados respeitos humanos, e, para não desagradar a pessoas ou instituições, defraudará a verdade e obscurecerá a luz natural da mente. Querem um exemplo? Alguém que elogia ou critica os outros apenas na medida em que ajudam ou atrapalham aos seus próprios interesses ou aos do grupo a que serve. Ora, isto não é desprezar os valores do mundo, mas colocá-los acima da verdade objetiva. Por fim, sem o desprezo do mundo não há perfeita vida de oração e muito menos verdadeira oblação.

Pois bem, a interpretação que faz Jean-Pierre Torrel em seu Saint Thomas D’Aquin, maître spirituel (agora publicado no Brasil pela Loyola, numa bem cuidada edição), no trecho dedicado ao contemptus mundi, nos parece forçada — a começar pela sugestiva interrogação no título do capítulo: “Desprezo do mundo?”. No decorrer dessas páginas, Torrel chega a afirmar a “autonomia” da realidade criada (sic), e também a dizer que Santo Tomás faz uma avaliação “plenamente positiva” do mundo (sic). Para Torrel, da desconfiança do Angélico em relação às atividades seculares “não se pode fazer um juízo unilateral”. Nestas e noutras passagens, ele nos conduz a uma interpretação demasiado benevolente quanto aos valores do mundo, que não são outros senão os valores seculares — o que pode induzir o leitor desavisado à equivocada idéia de paralelismo entre vida laica e vida religiosa. Afinal, como dizia Servais Pinckaers, se eliminássemos a superioridade intrínseca da vida religiosa (como meio mais adequado e perfeito para conduzir-nos ao céu), por que razão alguém quereria tornar-se religioso? Sim, pois se a vida leiga está no mesmo plano que a religiosa e exige sacrifícios tão menores... por que alguém escolheria ser monge ou freira?

Da premissa de que as atividades das quais os monges se abstêm com os seus votos são, em si mesmas, lícitas, Torrel deduz que a sabedoria do mundo não pode ser reduzida a um simples meio. E todas as ocasiões em que, neste capítulo, ele cita alguma passagem mais dura de Santo Tomás com relação ao ponto em questão, afirma tratar-se de uma visão “do seu tempo” — dando-nos com isto a entender que não serve para o nosso tempo, embora diga, aqui ali, que tudo deve ser apreciado em função do fim, segundo o Doutor Comum.

Com todo o respeito a Torrel — conhecido estudioso da obra tomista e coordenador da edição francesa da Suma* —, a sua interpretação neste ponto beira o temerário. Entre outras coisas, porque o leva a enfatizar alguns bens terrestres que valem ser perseguidos “por si mesmos” (como a amizade, a fundação de uma família e conseqüente educação dos filhos, a manutenção da paz entre as nações, etc.), sem matizar as precondições para que tais bens se tornem de fato meios em relação ao fim último. Ora, não nos devemos esquecer de que há uma paz mundana (a qual nada tem a ver com a Pax Christi) que mata a alma, pois impugna a verdade por causa dos respeitos humanos; há uma amizade mundana da qual devemos fugir, se almejamos realmente a salvação, pois nos fixa nas coisas efêmeras de forma apaixonada; e por fim há uma educação altamente daninha, porque não é orientada aos valores primordiais.

*
A minha querida amiga Milena, da Livraria Leonardo da Vinci, no Centro do Rio (tel. 21 2533 2237), informa-me que tem La Somme de Théologie de Saint Thomas coordenada por Torrel (em dois belos e copiosíssimos volumes em capa dura) à venda em sua loja. Para quem pode, vale a pena adquirir!!
Em tempo: Torrel enfatiza ser nosso dever "humanizar a terra" (cf. Sb., IX, 2-3). Ao que vale responder: não há como fazer isto sem antes "divinizar o homem" — alimentando-o com o Evangelho, que é a verdade divina revelada. O nosso mundo já está por demais mundanizado (perdoem-me a expressão redundante). Portanto, não melhora em nada a situação pôr o foco nas coisas terrestres sem subordiná-las necessariamente às divinas, sobretudo em se tratado de interpretação de textos do Doutor Comum da Igreja. A laicização do mundo não precisa que coloquemos mais lenha em sua (ínfera) fogueira...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (V)

Carlos Nougué
Acrescente-se às já vistas características das ideologias o que delas diz ainda Julien Freund (ibid., 421 ss.): sendo a ideologia um “pensamento de ação, não de conhecimento nem de explicação”, nela a idéia é “posta a serviço de uma força que lhe é exterior, e, se por acaso alguém [um seu defensor] se ocupar de sua coerência interna, não o fará por razões de racionalidade crítica e analítica, mas [tão-somente por razões] de maior eficácia prática. Aí está por que as ideologias são tão críticas com relação às opiniões e concepções adversas e concorrentes e tão pouco com respeito a si mesmas”.

Ora, os grandes filósofos antigos sem dúvida não só refletiram sob o “melhor regime”, buscando defini-lo racionalmente, mas também visavam à sua real aplicação ou implantação: Platão e sua cidade justa, Aristóteles e a constituição ideal etc. Em outras palavras, assim como em qualquer ideologia, também em suas doutrinas havia uma “visão de mundo” e uma “vontade voltada para o futuro”. Mas com uma diferença radical: enquanto as ideologias, como pensamento mágico quimérico que são, extraem tanto a sua visão de mundo como os seus projetos de futuro da própria mente de seus propugnadores (a mente pós-cartesiana, que se julga livre de Deus e fundadora da realidade), os antigos filósofos tiravam a sua visão de mundo ou das Idéias eternas ou da ordem do cosmos, e seus projetos de uma análise científico-comparativa do já existente.

É bem verdade que tal não impedia de todo a queda no quimérico. Assim, a pólis ideal de Platão peca precisamente por ser em parte (e parte grave) elaborada sem o reconhecimento da célula de toda e qualquer pólis: a família. Igualmente Aristóteles, conquanto em muito menor grau (dado seu radical realismo, que influenciará grandemente Santo Tomás de Aquino e, quanto ao que aqui nos interessa, o leva a analisar muito equilibradamente os regimes políticos), incorre no quimérico, ao dar à educação das crianças caráter exclusivamente público, em detrimento da família. Tais quedas têm uma explicação simples: embora esses grandes filósofos não fossem idealistas (chamar Platão de idealista é grande equívoco) e buscassem fundamentar seus projetos em realidades objetivas, careciam do conhecimento da realidade objetiva efetivamente fundadora de toda e qualquer outra realidade: Deus criador e regente do mundo, Deus e sua lei eterna, sua lei natural, sua lei positiva, Deus e sua providência.

O perfeito realismo econômico-social só verá a luz do dia, portanto, com a Igreja: precisamente porque é Ela a detentora do conhecimento da realidade primeira e última. É verdade que seu principal teólogo, Santo Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, ainda define o que para ele é o melhor regime, mas o faz ou em De Regno (pequena obra incompleta, onde considera a monarquia o melhor regime), ou em brevíssimos trechos da Suma Teológica (onde considera melhor o regime misto de monarquia, aristocracia e democracia). Não obstante, considerava bons vários outros regimes, muito ao contrário de qualquer ideólogo: já se ouviu um comunista dizer que a aristocracia é boa, ou um demoliberal dizer que a monarquia não-constitucional é boa? Mas a Igreja, seu Magistério infalível nunca disse que tal ou qual regime seria o melhor, embora tenha condenado, como já vimos em outro artigo, quer a democracia liberal, por se fundar numa negação e num afastamento de Deus, quer o comunismo, por “intrinsecamente mau”.

Mais que isso, porém: a Igreja nunca propôs nenhum regime político nem econômico em substituição a nenhum outro. Perseguida e martirizada no Império Romano, converteu-o. Derruído este pelas hostes bárbaras, chorou ela com Santo Agostinho a sua queda, mas ainda com o mesmo santo percebeu que podia e devia cristianizar os novos senhores. Em vez de lutar contra o ancestral pendor guerreiro dos bárbaros, transformou aqueles homens cruéis em soldados de Cristo, em defensores dos pobres, dos órfãos e das viúvas – surgia a cavalaria, instituição humana inigualável. Em vez de propor se eliminasse da noite para o dia o “direito de guerra”, antigo costume germânico que dava a qualquer senhor o direito de invadir terras alheias caso delas necessitasse (afinal, não defendia o próprio Aristóteles o direito de pilhagem?), em vez, pois, de propor tal quimera, instituiu progressivamente os dias dos santos, nos quais, por motivos agora mais que aceitáveis para aqueles cristãos rudes mas sinceros, não se podia guerrear...

(Continua.)

Em tempo 1: Em artigos próximos, falarei, por um lado, da escravidão antiga e da servidão feudal e, por outro, do que propôs o Magistério infalível ante as próprias democracia e economia liberais.

Em tempo 2: Escrevi no final do artigo anterior que “a noção de ‘povo’ é produto do pensamento mágico: é uma idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera”. Precise-se: a noção liberal de “povo”. Sim, porque, em primeiro lugar, o démos grego, mais que um “conceito territorial e político [que] designa ao mesmo tempo uma porção de território e o povo que nele vive” (Émile Benevides, Le vocabulaire des institutions indo-européenes, II, c. 9, pp. 89 ss., apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 33), era um conceito territorial-religioso: designava uma porção de território e o povo que vivia nele sob a égide de um deus. Em segundo lugar, o termo “povo” passou a ter, já na Grécia, mas sobretudo em Roma e na Idade Média, a acepção algo imprecisa de “plebe”. E, em terceiro lugar, só com o liberalismo adquire a acepção vigente até hoje: a de conjunto da população, “cuja voz é a voz de Deus”. Na verdade, a acepção mesma de “Deus”, precisamente enquanto idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera. Já o veremos aprofundadamente.
Em tempo 3: Chega a tal ponto a cegueira de certos liberais econômicos, que eles são incapazes de ver até as conseqüências mais imediatas das premissas que sustentam. Afirmam eles, em diversos artigos, que a causa da crise econômica atual foi certa intervenção do Estado norte-americano em que ele baixou a taxa de juros e deu algumas garantias a quem tomasse certos tipos de empréstimo. Após isso, ainda segundo os nossos liberais, uma multidão incalculável de agentes econômicos (de grandes bancos a homens comuns) passou a especular indevidamente, com papéis podres e coisas que tais, aproveitando-se das facilidades criadas. Se não tivesse havido tal intervenção, prosseguem eles, não teria havido aquele desregramento nem, portanto, a crise atual. Logo, a culpa tanto da atual como de todas as crises é sempre do “intervencionismo” estatal, porque, deixados livres os agentes econômicos e intocada a lei da oferta e da procura, tudo se ajustará perfeitamente, incluindo os juros, as movimentações financeiras, as operações nas bolsas etc. Mas... como assim? Quer dizer, então, que a ganância desmedida e as operações indevidas dela decorrentes que se deram após aquela intervenção estatal facilitadora não se dariam se não houvesse nenhuma intervenção estatal? Ou seja, a não-intervenção estatal e o livre jogo de mercado são capazes, ao contrário da intervenção estatal, de eliminar da face da terra e da alma dos homens o vício da cobiça, o vício da ganância? Na verdade, o livre mercado tem, para os monomaníacos liberais, função muito semelhante à do Graal, da pedra filosofal ou do elixir da eterna juventude: é a sua quimera, é o fruto espantoso do seu pensamento mágico. Já se viu, porém, por outro lado, algum liberal chegar ao poder sem recorrer, em algum grau, à intervenção estatal na economia? Roberto Campos? Bush? Quem?

A quimera da liberdade econômica absoluta e a crise atual

Sidney Silveira

Diante da crise financeira mundial e do socorro de bilhões de dólares (e de euros) que vários países estão dando com o intuito de evitar uma quebradeira generalizada dos bancos, torna-se necessário discutir algumas premissas implicadas nas teses dos defensores de um mercado absolutamente “livre”, sem amarras de nenhum tipo.

A questão, no momento, não é saber se o Federal Reserve agiu mal ou bem ao reduzir, em 2001, as taxas de juros nos EUA, a fim de baratear empréstimos e financiamentos — o que aqueceu, entre outros, o mercado imobiliário e acabou levando inúmeras pessoas a especular*, ou seja: a pegar empréstimos bancários dando em troca as suas próprias casas como garantia hipotecária, para comprar imóveis a preços baixos (dado o aumento da demanda), vendê-los por um preço maior e lucrar com a diferença. A história, depois, já é conhecida: grandes hipotecárias começaram a emprestar dinheiro a maus pagadores, cobrando um juro elevado (dado o maior risco desse mercado, chamado subprime), o que elevou a inadimplência a níveis estratosféricos — depois, é claro, de venderem em pacote essas carteiras a bancos de investimento (a um juro ainda maior!), os quais ficaram com “papel podre” na mão** assim que o Federal Reserve se viu na contingência de aumentar os juros***, desaquecendo o mercado imobiliário (então artificiosamente aquecido pela ação desses especuladores). Algumas instituições bancárias ficaram insolventes, pondo em risco o dinheiro dos correntistas.

Os teóricos ultraliberais criticam o atual governo republicano (liberal) por baixar os juros e dar algumas garantias para quem fizesse empréstimos, dizendo que, com isto, interveio indevidamente e atuou mal (pois não deveria mexer nos juros, que devem ser, em teoria, “naturais” [hã?!]) —, quando na prática foram alguns agentes econômicos que, atuando livremente no mercado, especularam e levaram à situação dramática que hoje atinge a economia mundial. O problema não foi, portanto, um suposto intervencionismo estatal, mas a especulação desenfreada de alguns desses agentes, que, sem uma regulamentação de fato séria que pusesse um mínimo freio ao seu jogo ganancioso e daninho, atuaram livre ou liberalmente. E nem pode residir o problema no remédio que agora é proposto: a ajuda financeira aos bancos, que, aos olhos desses teóricos radicais, é uma “traição” do governo do liberal George Bush.

Que dizem muitos desses economistas? Simplesmente o seguinte: que quebrem os bancos e as empresas hipotecárias que entraram no jogo! O mercado se auto-ajusta. Ora, será que os propugnadores de tal quimera dimensionam o que aconteceria às pessoas (incluindo eu e você, que me lê) e às empresas em todo o mundo, se o sistema financeiro internacional viesse à bancarrota? Estarão eles certos e os governos dos principais países europeus totalmente equivocados em sua tentativa de salvar as suas respectivas economias da catástrofe?**** O fato é que, para resguardar a sua teoria, os ultraliberais não se preocupam com que o mundo inteiro desabe. Pelo menos são coerentes com alguns de seus “princípios”: se não existe o bem comum, por que deveríamos defendê-lo?

A lógica do mercado livre (na óptica míope dos liberais econômicos) é a lógica que rege o mundo, é o fundamento da "moral" e das relações entre as pessoas. Mas vejamos uma aplicação prática, específica, dessa “liberdade”. Meia dúzia de especuladores consegue elevar o valor nominal de ações que não têm o menor lastro, por meio de estratégias de divulgação de números irreais ou superdimensionando investimentos futuros. Com isso, logram que vários agentes econômicos — entre os quais grandes bancos e bancos de investimento — comprem essas ações. Em algum momento, os compradores vêem que se meteram numa canoa furada: ficaram com uma fortuna em “papel podre”, pois esses títulos não têm por trás empresas sólidas a lhes dar lastro. Como se disse, alguns dos compradores são bancos e precisam arcar com os compromissos que têm com os seus correntistas, tanto pessoas físicas como jurídicas. Se quebrarem, quebrarão com eles pessoas e empresas (dos setores do comércio, indústria, serviços, etc.). E, quebrando estas, quebram os seus credores, no país e no exterior. Eis, então, configurada uma recessão internacional de proporções incalculáveis. Dirá o liberal: “Tudo bem, faz parte do jogo do livre mercado; uns ganham, outros perdem”. Ocorre que, quem perde, neste caso, é o conjunto da população.

Onde está a culpa dos governos numa ação como essa? (que não é, infelizmente, rara como gostaríamos]?***** Foram porventura eles que aumentaram artificiosamente o valor de ações que não possuíam lastro real? Ora, o mercado estava absolutamente livre, sem intervenções, quando a coisa toda aconteceu. Como, então, colocar a culpa nos governos pela crise? Esta é a tese de muitos ultraliberais: o governo "intervencionista" foi o culpado pelos maus investimentos (nome chique para especulação!) no mercado imobiliário norte-americano. Inacreditável! Os caras fazem a “m”... e a culpa é do governo! Inacreditável mas previsível, pois, assim como os comunistas, os liberais costumam tirar quaisquer responsabilidades de suas costas e jogá-las na dos outros...

Na verdade, tais ideólogos, defensores da economia absolutamente livre, se esquecem da cobiça humana. Têm uma visão sonhadora — tola e irresponsável — do ser humano, e são incapazes de ver que a atual crise é produto, precisamente, do laissez-faire moral e econômico que toma conta do mundo já faz alguns séculos, cujas premissas fundamentais temos denunciado em vários textos do blog. É delas que o liberalismo econômico decorre: falsas idéias de individualidade, de consciência, de liberdade, de “autonomia” da consciência...

* Chamo “especulação” à ação de atuar diretamente sobre a oferta e a procura de bens e serviços de modo a alterá-la — ou melhor: tirá-la artificiosamente do curso em que vinha ou viria. Por exemplo: um cambista que põe na fila trezentos agentes para comprar ingressos de um espetáculo para revendê-los a um preço maior, especula. Ou seja, reduz, com a sua ação, a oferta dos ingressos nos pontos de venda, concentra-a em si e cobra um gordíssimo adicional pela revenda, sabendo que a demanda continuará alta. No caso do mercado imobiliário norte-americano, como o custo do dinheiro lá é baixo, torna-se fácil especular: fazer crescer a demanda do mercado (não apenas deste, mas de qualquer mercado) a partir da injeção de um dinheiro que, por trás, tem a lhe garantir apenas algumas hipotecas ou então dinheiro emprestado por terceiros à guisa de hipoteca. Se por alguma contingência a demanda desse mercado cai, tem-se uma crise generalizada!
** Esse papel podre eram os títulos hipotecários, que perderam valor assim que o mercado imobiliário se desaqueceu.
*** Levando às últimas conseqüências as premissas liberais, cabe perguntar: deveria haver uma autoridade monetária (no caso americano, o Fed)?
**** Os jornais de hoje informam que os Bancos Centrais dos países europeus liberaram mais de 1 trilhão (!!!!) de euros para salvar as suas economias.
***** Há anos, comecei no jornalismo fazendo a cobertura dos movimentos da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, onde vi de perto inúmeros ardis do mercado de ações (muitos dos quais são absolutamente "lícitos" para um liberal de mercado, que trabalha com boatos e informações de coxia). Graças a Deus, logo saí dessa área...
Em tempo: Em reportagem de uma página n'O Globo de hoje (14/10), o Nobel de Economia Paul Krugman lembra que Alan Greespan foi alertado a respeito dos riscos de empréstimos no mercado subprime, mas não fez nada, sob a alegação de que o mercado resolveria isto sozinho... Disseram-lhe, na ocasião, para restringir os empréstimos irresponsáveis (com uma regulamentação específica!), mas o Banco Central não interveio e deixou os agentes atuar livremente, ou melhor: liberalmente. E a culpa agora, segundo os ultraliberais, é do governo "intervencionista". Dá para acreditar?

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (IV)

Carlos Nougué
Como diz Maxence Hecquard (op. cit., p. 39), a definição que o liberal Raymond Aron dá de ideologia é tanto mais justa quanto menos precisa é. Isso porque, como escreve o próprio Aron, “as ideologias [...] sempre mesclam, com mais ou menos felicidade, proposições de fato e julgamentos de valor. Elas exprimem uma visão de mundo e uma vontade voltada para o futuro. Não caem diretamente sob a alternativa do verdadeiro e do falso, mas tampouco pertencem à ordem do gosto e das cores [...].” Não requerem “prova nem refutação; a análise dos fatos atuais ou a antecipação dos fatos do porvir transformam-se com o desdobramento da história e o conhecimento que temos dela. A experiência corrige progressivamente as construções doutrinais”.

Aí está, em primeira instância, por que o pensamento democrático liberal (e o econômico liberal, indissociável daquele) é tanto ideologia como o comunismo: porque pertence à mesma “realidade nebulosa” (o termo é de Maxance Hecquard) que ele. E o reconhece, ao fim e ao cabo, o próprio Aron não só ao definir o discurso democrático como algo entre a “formação de uma atitude histórica ou de uma hierarquia de valores” e um “sistema global de interpretação do mundo histórico-político”, mas também ao confessar que seu slogan “o fim da idade ideológica” não era senão uma forma de combater a ideologia stalinista e que, portanto, o conceito de ideologia pode ser reivindicado “quer como expressão permanente do pensamento digno do nome de filosofia” (ao modo da “ideologia” de De Tracy, vista no artigo anterior), “quer como uma inspiração necessária à ação eficaz” (ou seja, aplica-se também ao pensamento democrático) (Raymond Aron, L’Opium des Intellectuels, c. 7, p. 246, apud Maxence Hecquard, ibid.).

Mas, mais precisamente, o que é esse “sistema global de interpretação” que inspira necessariamente uma “ação eficaz”? Em que, suposto o enquadramento tanto do pensamento liberal como do comunista naquela “nebulosa” que exprime “uma visão de mundo e uma vontade voltada para o futuro”, em que se diferencia ideologia, toda e qualquer ideologia, quer das doutrinas político-econômicas dos antigos, de Platão, Aristóteles, Cícero, quer das doutrinas político-econômicas da Igreja? Em outras palavras: não seriam estas doutrinas, as dos antigos e as da Igreja, igualmente ideologias? Não envolveriam também elas uma “visão de mundo”? E não envolveriam elas, igualmente, uma “vontade voltada para o futuro”, como, por exemplo, a busca por parte de Aristóteles da melhor constituição para Atenas?

Para começar a responder a isso, recorramos antes de tudo às precisões que Julien Freund faz ao conceito de ideologia em L’essence du politique (pp. 4 ss., apud Maxence Hecquard, ibid., pp. 39-41): sendo uma “doxologia”, ou seja, “uma opinião que versa sobre os fins”, a ideologia é “uma idéia tornada desejo, aspiração”. Não se dirige à razão, mas apenas ao coração (digo-o parafraseando a Hecquard), e, embora privilegie sempre determinada realidade (uma classe, como o comunismo; uma raça, como o nazismo; ou o povo, como o demoliberalismo), tem “pretensão à universalidade”.

Mas estes mesmos traços contraditórios que definem toda e qualquer ideologia devem ser desdobrados, da seguinte maneira:

a) o ser uma idéia que não se dirige à razão implica duas coisas: a “negação da razão” e a “vontade de poder” (“a ideologia exige o poder”, diz Hecquard), dois dos principais alicerces sobre os quais se ergue o mundo nascido da negação da Cristandade;

b) o ser uma parcialidade que almeja a universalidade também implica, por seu lado, duas coisas:

a parcialidade do olhar ideológico, conquanto permaneça tal qual, ou seja, uma parcialidade, tende necessariamente ao autoritarismo por sua mesma pretensão à universalidade: para que uma parte “se torne” o universo, tem de forçosamente eliminar a(s) outra(s) parte(s) (assim como não há nada mais absoluto, ou absolutista, que o pensar que “tudo é relativo”) – afinal, como diz Hecquard, “qualquer universalidade que não seja Deus é redutora”;

tanto o “gnothi seauton” (“conhece-te a ti mesmo”) de Sócrates como as condições teóricas do pensamento desinteressado não podem ter lugar em nenhuma ideologia, porque, como diz Hecquard, “já não se trata de aperfeiçoar uma cabeça e um coração”, mas “de convencer uma massa”.

Como assim, perguntará um liberal? Não é o “povo” em si mesmo uma totalidade, uma universalidade? Que o diga, na esteira de Rousseau, Jacques Maritain, outro bravo defensor da democracia liberal: segundo ele, a democracia também tem seus “heréticos”, seus “blasfemadores”, ou seja, aqueles que infringem “as práticas democráticas comuns”, os quais, ainda segundo o democatólico, devem ser combatidos com a máxima energia (L’homme et l’État, c. 5, I, n. 2, p. 613, in Œuvres complètes, IX, Fribourg-Suisse, Saint-Paul, Paris, 1990). Na verdade, também a noção de “povo” é produto do pensamento mágico: é uma idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera.

(Continua.)

Em tempo 1: Não foi deixada de lado a série “Comunismo e liberalismo – rebentos da mesma raiz”. Sucede apenas que a atual crise econômica mundial, causada pelo rompimento da bolha financeira em que se desenvolve a economia liberal, urgia se mostrasse a falácia do pensamento mágico de que esta decorre. Mas trata-se, em verdade, de séries complementares, sendo a atual parte antecipada da outra. Logo, pois, voltaremos a ela.

Em tempo 2: Estranhou a uma querida amiga a afirmação de que o entimema cartesiano “Penso, logo existo” teria por premissa maior “Para ser, é preciso pensar”, donde a afirmação de que, segundo tal raciocínio, “o pensar cria aquele que o pensa” (até porque, digo alimentando-lhe a estranheza, o próprio Descartes nega que se tratasse de entimema). Naturalmente, nos três artigos anteriores vali-me, como arma do bom senso contra o pensamento mágico, de provas chamadas per absurdum, com as quais se mostra a veracidade de uma proposição pela falsidade evidente das conseqüências da proposição contraditória. Mas fica aqui uma promessa: uma série exclusivamente sobre o pensamento de Descartes e seu papel fundador da modernidade liberal, na qual se verá, desenvolvidamente, que o dito sobre o Cogito cartesiano corresponde à realidade. Deixo, porém, desde já, uma “dica”: substitua-se o “Penso” enquanto “pensar em ato” pelo “Ser” enquanto “Ato puro” ou “pensamento de pensamento”, ou pelo “ente” enquanto “primum cognitum” (primeira coisa que se conhece) – não se exija coerência do fundamentalmente incoerente ou “psicopatológico” –, e se constatará o que em essência digo: o pensamento de Descartes é pensamento mágico de segunda vertente, ou seja, aquele que toma o efeito pela causa, ou o conseqüente pelo antecedente.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Anarquismo, outro fruto do orgulho liberal

Sidney Silveira

Duas coisas mostrou o Nougué em seu último e estupendo artigo:

1ª) Toda QUIMERA é produto de uma ideologia.
2ª) Toda IDEOLOGIA nasce de uma radical negação da realidade.

E acrescento eu: o liberalismo é uma das ideologias mais quiméricas que há, pois não apenas inverte as relações causais no plano político-econômico, como também se demonstrou nos textos anteriores — mas o faz em razão da orgulhosa recusa de qualquer autoridade exterior que está na base de todos os tipos de liberalismo. Atitude de desobediência, do diabólico non serviam. E trata-se de uma desobediência que não é fruto de fraquezas ou ignorância, mas de uma negação consciente, sistematizada, teorizada e (o que é pior) difundida de forma bastante sedutora — com promessas de liberdade para incautos que caem na rede.

Vejamos hoje mais um de seus filhos: o ANARQUISMO. Ora, lembram-se do que diziam os anarquistas do século XIX? Nada menos do que o seguinte: o homem deve adotar uma radical atitude antiautoritária, repudiar qualquer tipo de hierarquia “imposta” e qualquer tipo de domínio de uma pessoa ou grupo de pessoas sobre os demais. Mudemos o ponto de observação e ponhamos isto noutras palavras: desobedeça ao seu pai, desobedeça ao seu professor, desobedeça ao policial, desobedeça à autoridade legitimamente constituída e, trocando em miúdos, desobedeça a tudo o que quiserem lhe “impor” (a propósito, é do anarquista Henry David Thoreau o “clássico” Desobediência Civil). Obedeça apenas às suas necessidades e à sua própria consciência. Alguém dirá: exagero, exagero... Ah é? Então vamos lá. Mas, por favor, sem nos estendermos por demais, porque a coisa é tediosa.

Defendiam os anarquistas de diferentes matizes um organismo social baseado na “igualdade” e no supremo valor da “liberdade” (eis as palavrinhas mágicas dos liberais revolucionários de novo!). Um dos slogans dessa teoria política foi hasteado pela bandeira do federalismo libertário (alguma semelhança com a idéia de uma ordem "livre”?). De acordo com Kropotkin — um de seus mais quiméricos ideólogos —, o federalismo libertário deita raízes na tese de que o homem deve dar plena satisfação a TODAS as suas "necessidades". Só isso! O federalismo libertário não admite relações de submissão, pois, se o homem se submeter a algo exterior à sua consciência, defraudará a radical “liberdade” que o constitui (pus a palavra entre aspas porque já se mostrou à exaustão, neste espaço, que o liberalismo e todas as teorias que dele provêm sequer imaginam o que seja propriamente a liberdade humana, pois a concebem apenas no plano político).

Quando instados a responder à objeção de que, partindo de tal base teórica, a sociedade cairia na mais caótica anomia (ou seja, na absoluta ausência de normas), os anarquistas de ontem e de hoje em geral se saem com uma pérola: “Você não entendeu, meu caro. Eu disse que é possível, sim, haver governo, e eu mesmo admito que haja um, mas o melhor seria que não houvesse nenhum”. O que responder a um cabeça-oca irresponsável como esse?

Admitem os anarquistas alguma fé? Sim, desde que não seja institucionalizada, mas fruto do subjetivismo individual, da consciência que sozinha busca a Deus. Daí o anticlericalismo que, em geral, encontramos nos seus principais ideólogos (não há como tratar, neste reduzido espaço, da arraia-miúda). Anticlericalismo, na verdade, herdado do protoliberalismo.

Outra coisa: que alguns anarquistas, como Proudhoun, se digam “antiliberais”, e se alinhem entre os simpáticos a algumas formas de socialismo, deve-se antes de tudo à sua recusa em contemplar o radical fundamento da própria doutrina (lembram-se do artigo sobre a cegueira da mente?). Quimérico como os demais difusores da doutrina, Proudhon só consegue vislumbrar os malefícios da organização econômica liberal — o que demonstra o materialismo em que soçobravam as suas idéias. Mas as causas fundamentais de tal organização escapam-lhe, tristemente.

Para o anarquista, o mundo é uma idéia. O mundo é como uma idéia. É a sua idéia. E ai de quem o tentar corrigir! Até porque ninguém, de acordo com o seu parecer, teria tal “direito”. Quiséramos nós adverti-lo de que, para defender essa postura, em boa parte das ocasiões de sua própria vida só lhe restará o cinismo, a obstinada recusa em ver as coisas como são.

Para os anarco-liberais, o melhor — o ideal! — seria cada indivíduo refazer, por si mesmo, toda a moral (já que toda moral “extrínseca” dá-lhes engulhos). Mas como isto é formalmente impossível, há entre eles quem pregue que a moral seja apenas para a massa, mas não para os “iluminados” — entre os quais geralmente se incluem os mesmos propugnadores da teoria, a quem tudo seria permitido. Realmente...

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (III)

Carlos Nougué
Dissemos no artigo anterior que “toda e qualquer quimera” (como a economia liberal) “é produto de uma ideologia”. Mas o que é precisamente “ideologia”?

Cunhado no livro Elements d’idéologie (1801) por Antoine Destutt de Tracy, discípulo de Condillac (ambos liberais e revolucionários), o termo exerce ali, segundo o próprio autor, o papel de “filosofia primeira” em substituição a qualquer metafísica e a qualquer religião. O que, porém, quer dizer precisamente De Tracy ao falar de “filosofia primeira”, já que não se trata de metafísica? Ora, esta sempre fora considerada a filosofia primeira por tratar, justamente, das coisas que são primeiras na realidade – Deus incluído, e acima de tudo. Pois a “ideologia” do francês tinha o exato sentido de “ciência das idéias”, e, como uma ciência ou filosofia se define pelo seu objeto, e como a “ideologia” de De Tracy se substituía à metafísica como “filosofia primeira”, logo, para o pensador, as coisas primeiras na realidade só podiam ser as mesmas “idéias”. A “ideologia” de De Tracy é, portanto, uma legítima continuadora do “Penso, logo sou” de Descartes, aquele mesmo segundo o qual, como vimos, o pensamento cria o homem que o pensa; e dela, da “ideologia” de De Tracy, se pode montar o seguinte “silogismo”* (antes um paralogismo**, ou um entimema no sentido aristotélico***): “Têm-se idéias, logo a realidade é”. Sim, porque considerar as idéias como as coisas primeiras da realidade é do mais puro pensamento mágico em sua segunda vertente, qual seja, a que toma o efeito pela causa.

Logo, porém, o termo “ideologia” ganharia outra acepção, pejorativa, graças (como conta Maxence Hecquard em seu admirável Les fondements philosophiques de la démocratie moderne, Paris, François Xavier de Guibert, 2007), graças a ninguém menos que Napoleão Bonaparte, que chamava sarcasticamente de “ideólogos” os “filósofos nebulosos afastados da realidade”. Não se sabe se conhecendo ou não a ironia napoleônica, o fato é que Marx e Engels censurarão, em A Ideologia Alemã (1845), a esses mesmos filósofos o fato de eles “descerem do céu para a terra” em vez de “se elevarem da terra ao céu”, donde decorre a famosa máxima marxista: “Já não se trata de entender a realidade, mas de transformá-la” – para, parafraseio-o eu, “fazer com que o homem seja como Deus e se torne senhor de um verdadeiro paraíso: o material terrestre”... O termo “ideologia”, no entanto, adquire duas novas acepções com os fundadores do materialismo histórico e dialético.

A primeira deriva de sua concepção de que toda e qualquer idéia emana, no homem, das condições de sua vida material. (E tem-se aqui outro exemplo de pensamento mágico, ainda de segunda vertente: nele, o efeito vida material é tomado como “causa” do inteligir humano, quando obviamente se trata do oposto – se assim não fosse, como um pequeno-burguês com fumos de nobre como Marx poderia defender o proletariado, se as suas condições materiais de existência não lhe permitiriam senão o pensar como um pequeno-burguês com fumos de nobre?) Ora, a ideologia, sempre segundo os dois alemães, falseia justamente tal relação, virando o homem ”de cabeça para baixo” e fazendo-o crer que são as idéias o que determina a sua vida material; e essa “falsa consciência” que é a ideologia, em especial a ideologia burguesa, não visa senão à “alienação das classes exploradas e oprimidas”. Desse modo, como diz Raymond Aron (Trois essais sur l’âge industriel, IIIe Partie, c. 2, p. 189, apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 38), a ideologia é “uma deformação interessada do real”.

Mas há em Marx, como nos faz ver ainda Raymond Aron, outra acepção de ideologia, a qual, digamos, é “axiologicamente neutra”, ou seja, é neutra em termos de valor (conceito que, como veremos daqui a alguns artigos, está na raiz do próprio liberalismo): a acepção de “conjunto dos edifícios intelectuais e morais”. Trata-se, em verdade, como diz Maxence Hecquard, da mesma acepção anterior sem, todavia, o julgamento de valor, sem o aspecto pejorativo. Pois bem, é esta mesma segunda acepção de ideologia, mas tal como desenvolvida penetrantemente, como veremos, pelo liberal Raymond Aron, o que nos servirá para mostrar que o liberalismo, seja o político-democrático, seja o econômico, é tão ideologia como o próprio comunismo, e, pois, tão pensamento mágico como ele.

* Silogismo: segundo Aristóteles, o modo fundamental do raciocinar humano, estruturado a partir de duas proposições, chamadas premissas, das quais, por inferência, se obtém necessariamente uma terceira, chamada conclusão. Veja-se um exemplo clássico de silogismo: “Todos os homens são mortais; ora, Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”.

** Paralogismo: raciocínio inválido ou falso.

*** Entimema: aqui, silogismo carente de rigor formal por elidir uma premissa que, se mostrada, patentearia a falsidade do raciocínio. Assim, se Descartes mostrasse seu “Penso, logo sou” com sua premissa maior obrigatória, o silogismo ficaria assim: “Para ser, é preciso pensar; ora, eu penso; logo, sou”, o que evidenciaria, a todas as luzes, a sua absoluta falsidade. E a evidenciaria para o próprio Descartes, porque não queremos crer que ele considerasse falso o seu próprio raciocínio... Antes cremos naquilo de “psicopatologia” de que falava Étienne Gilson.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (II)

Carlos Nougué
Como vimos no artigo anterior, o liberalismo econômico (como, aliás, todo e qualquer liberalismo, como teremos oportunidade de mostrar) funda-se em duas espécies de pensamento mágico. A primeira é a que toma o efeito pela causa. Tal espécie de pensamento não é privilégio desse liberalismo: ao contrário do que se dá com a razão natural e, pois, com o realismo filosófico, é característica de todos os idealismos, tomada esta expressão em sentido lato. Assim, para Descartes o efeito pensar é “causa” do ser; para Kant e Hegel o efeito idéias (ou a Idéia) é “causa” da realidade; para Darwin e Engels o efeito fazer instrumentos é “causa” do ser homem; para Karl Marx, Engels e Lênin o efeito violência de classe é “causa” (ou “parteira”) da história; e para o liberalismo econômico, como já vimos, os efeitos troca, moeda e mercado são “causas” da confiança entre os homens.

O absurdo de tudo isso salta aos olhos (e se não feriu os olhos de seus propugnadores é porque, como disse Étienne Gilson, o problema de grande parte do pensamento moderno é de “psicopatologia”). Imagine-se, por exemplo, o “Penso, logo sou” de Descartes: o pensamento cria aquele que o pensa... É mais ou menos como um embrião gerar aquele que o gera, ou um alimento engendrar aquele que o ingere. Do mesmo modo, como o produzir instrumentos pode produzir aquele que os produz, ou seja, o homem? É mais ou menos como crer que a habilidade do joão-de-barro para construir sua linda casinha é capaz de construir o próprio joão-de-barro. E como é possível que a troca de mercadorias, esse mágico cavalo-de-batalha (ou será um cavalo alado?) do liberalismo econômico, possa causar a confiança que, em verdade, ela pressupõe? É mais ou menos como uma mãe dizer a seu filhinho: “Aceite, querido, balas de qualquer estranho na rua, que assim vocês estabelecerão uma bela relação de confiança mútua”...

Mas por que tanto insiste o liberalismo econômico nesta verdadeira aberração? Para justificar o seu grande objetivo, qual seja, a construção de uma economia absolutamente de mercado, com agentes econômicos absolutamente livres, sem nenhuma trava por parte da moral, nem da religião, nem do Estado. De nada! Dizia Von Mises: “A produção material é o que de mais importante faz o homem”. Dizem seus seguidores: “Bancos, atuem e lucrem livremente!” “Empresas, atuem e lucrem livremente!” “Alguns falirão? Trabalhadores passarão necessidades? Famílias se verão na rua da amargura? Tudo passageiro, porque, no final, o mercado, fundado na [sacrossanta] lei da oferta e da procura, se auto-regulará perfeitamente, e trará para todos a felicidade geral!” Deixemos de lado, por ora, o talvez maior escândalo desta tese, precisamente porque amoral: o fato de o paraíso prometido ser material, e não espiritual (como, em seu Jardim, daria saltitos de alegria Epicuro ao ouvir tal promessa!). Concentremo-nos, aqui, no ângulo estritamente econômico da tese, para mostrar que, em verdade, ela preenche todos os requisitos da segunda vertente, anunciada mais acima, do pensamento mágico: a vertente quimérica.

O que é uma quimera nos termos que, aqui e agora, nos interessam? Dizem, pouco mais ou menos, os dicionários: “produto da imaginação; fantasia, utopia, sonho”. Mas aprofundemos, filosoficamente, a definição: “qualquer projeto de sociedade futura baseado não em uma lei eterna, nem na ordem do cosmos, nem em nenhuma realidade social preexistente, mas em mera idéia nascida, voluntariosamente, na cabeça de seu(s) propugnador(es)”. Ou seja, toda e qualquer quimera é produto de uma ideologia. (No próximo artigo veremos que o liberalismo é tão ideologia quanto o comunismo, e isso segundo a própria definição de ideologia de um dos mais importantes pensadores liberais do século XX: Raymond Aron). Fecha-se assim o círculo (como a cobra que morde o próprio rabo...): depois de se fazer do efeito causa, elimina-se toda e qualquer causa real, para substituí-la por uma “causa” ideal. E, justo por não ter alicerces reais, tal “causa” merece perfeitamente as aspas: ela não causa senão uma deformação, uma monstruosidade, um aborto, sempre distante daquilo que se ideou. Uma prova? A atual e gravíssima crise econômico-financeira mundial, engendrada integralmente nos porões amorais do liberalismo econômico.

O livre mercado, o livre lucro, a livre usura bancária sempre gerarão o que agora vemos (e vamos sentir na carne), porque seus propugnadores, em seu idílico Parnaso, esquecem o que qualquer homem do povo sabe perfeitamente: porque muitos homens são gananciosos, o dinheiro traz infelicidade. É o bom senso, é o senso comum quem o diz.

Mas, por favor, não se diga que somos contra a propriedade privada, contra o lucro, contra o mercado, porque nos bastará, para desmenti-lo, pôr aqui, na íntegra, os documentos do Magistério infalível relativos ao assunto. (Ademais, tenha-se um pouquinho de paciência, a paciência da verdadeira ciência, que já mostraremos nesta mesma série as teses do realismo filosófico com respeito à economia.)

O que importa, aqui e agora, é insistir no caráter ideal (e pois ideológico) do liberalismo econômico. E tampouco nos venham falar de Platão: o idealismo platônico, conquanto equivocado por dar existência substancial às idéias, sempre se fundou em algo que ele considerava real ou extramental (aquelas mesmas idéias substancializadas). Além disso, é Platão o primeiro formulador de algo fundamental em filosofia: a noção de participação. Demos um exemplo: uma coisa é mais ou menos boa porque está mais ou menos próxima da Idéia de Bem, ou seja, porque participa mais ou menos da Idéia de Bem.

Ora, segundo alguns liberais, sua corrente, “ao contrário da comunista, aceita que uma economia pode ser mais ou menos liberal”. Imagino, antes de tudo, que os próprios comunistas, de mãos dadas com os liberais, tenham de aplicar à China atual a noção de mais ou menos: será o gigante asiático mais ou menos comunista, ou mais ou menos capitalista? Comunistas e liberais que o digam, porque de fato a coisa é complicada: a China, ao que parece, é maximante comunista em termos estatais, e maximamente liberal em termos econômicos... Mas o que importa aqui é que, se os liberais aplicam a noção de mais ou menos às economias liberais, é porque têm algo como modelo de que possam tais economias participar mais ou menos. Com respeito à sociedade, tinha Platão por modelo as Idéias do Hiperurânio e os deuses; Aristóteles, o Primeiro Motor Imóvel e a ordem do cosmos; os católicos, a lei eterna, a lei natural e a lei divina positiva. E os liberais? Pois a sua própria e exclusiva mente!

(Continua.)