Carlos Nougué
Dissemos no artigo anterior que “toda e qualquer quimera” (como a economia liberal) “é produto de uma ideologia”. Mas o que é precisamente “ideologia”?
Cunhado no livro Elements d’idéologie (1801) por Antoine Destutt de Tracy, discípulo de Condillac (ambos liberais e revolucionários), o termo exerce ali, segundo o próprio autor, o papel de “filosofia primeira” em substituição a qualquer metafísica e a qualquer religião. O que, porém, quer dizer precisamente De Tracy ao falar de “filosofia primeira”, já que não se trata de metafísica? Ora, esta sempre fora considerada a filosofia primeira por tratar, justamente, das coisas que são primeiras na realidade – Deus incluído, e acima de tudo. Pois a “ideologia” do francês tinha o exato sentido de “ciência das idéias”, e, como uma ciência ou filosofia se define pelo seu objeto, e como a “ideologia” de De Tracy se substituía à metafísica como “filosofia primeira”, logo, para o pensador, as coisas primeiras na realidade só podiam ser as mesmas “idéias”. A “ideologia” de De Tracy é, portanto, uma legítima continuadora do “Penso, logo sou” de Descartes, aquele mesmo segundo o qual, como vimos, o pensamento cria o homem que o pensa; e dela, da “ideologia” de De Tracy, se pode montar o seguinte “silogismo”* (antes um paralogismo**, ou um entimema no sentido aristotélico***): “Têm-se idéias, logo a realidade é”. Sim, porque considerar as idéias como as coisas primeiras da realidade é do mais puro pensamento mágico em sua segunda vertente, qual seja, a que toma o efeito pela causa.
Logo, porém, o termo “ideologia” ganharia outra acepção, pejorativa, graças (como conta Maxence Hecquard em seu admirável Les fondements philosophiques de la démocratie moderne, Paris, François Xavier de Guibert, 2007), graças a ninguém menos que Napoleão Bonaparte, que chamava sarcasticamente de “ideólogos” os “filósofos nebulosos afastados da realidade”. Não se sabe se conhecendo ou não a ironia napoleônica, o fato é que Marx e Engels censurarão, em A Ideologia Alemã (1845), a esses mesmos filósofos o fato de eles “descerem do céu para a terra” em vez de “se elevarem da terra ao céu”, donde decorre a famosa máxima marxista: “Já não se trata de entender a realidade, mas de transformá-la” – para, parafraseio-o eu, “fazer com que o homem seja como Deus e se torne senhor de um verdadeiro paraíso: o material terrestre”... O termo “ideologia”, no entanto, adquire duas novas acepções com os fundadores do materialismo histórico e dialético.
A primeira deriva de sua concepção de que toda e qualquer idéia emana, no homem, das condições de sua vida material. (E tem-se aqui outro exemplo de pensamento mágico, ainda de segunda vertente: nele, o efeito vida material é tomado como “causa” do inteligir humano, quando obviamente se trata do oposto – se assim não fosse, como um pequeno-burguês com fumos de nobre como Marx poderia defender o proletariado, se as suas condições materiais de existência não lhe permitiriam senão o pensar como um pequeno-burguês com fumos de nobre?) Ora, a ideologia, sempre segundo os dois alemães, falseia justamente tal relação, virando o homem ”de cabeça para baixo” e fazendo-o crer que são as idéias o que determina a sua vida material; e essa “falsa consciência” que é a ideologia, em especial a ideologia burguesa, não visa senão à “alienação das classes exploradas e oprimidas”. Desse modo, como diz Raymond Aron (Trois essais sur l’âge industriel, IIIe Partie, c. 2, p. 189, apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 38), a ideologia é “uma deformação interessada do real”.
Mas há em Marx, como nos faz ver ainda Raymond Aron, outra acepção de ideologia, a qual, digamos, é “axiologicamente neutra”, ou seja, é neutra em termos de valor (conceito que, como veremos daqui a alguns artigos, está na raiz do próprio liberalismo): a acepção de “conjunto dos edifícios intelectuais e morais”. Trata-se, em verdade, como diz Maxence Hecquard, da mesma acepção anterior sem, todavia, o julgamento de valor, sem o aspecto pejorativo. Pois bem, é esta mesma segunda acepção de ideologia, mas tal como desenvolvida penetrantemente, como veremos, pelo liberal Raymond Aron, o que nos servirá para mostrar que o liberalismo, seja o político-democrático, seja o econômico, é tão ideologia como o próprio comunismo, e, pois, tão pensamento mágico como ele.
* Silogismo: segundo Aristóteles, o modo fundamental do raciocinar humano, estruturado a partir de duas proposições, chamadas premissas, das quais, por inferência, se obtém necessariamente uma terceira, chamada conclusão. Veja-se um exemplo clássico de silogismo: “Todos os homens são mortais; ora, Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”.
** Paralogismo: raciocínio inválido ou falso.
*** Entimema: aqui, silogismo carente de rigor formal por elidir uma premissa que, se mostrada, patentearia a falsidade do raciocínio. Assim, se Descartes mostrasse seu “Penso, logo sou” com sua premissa maior obrigatória, o silogismo ficaria assim: “Para ser, é preciso pensar; ora, eu penso; logo, sou”, o que evidenciaria, a todas as luzes, a sua absoluta falsidade. E a evidenciaria para o próprio Descartes, porque não queremos crer que ele considerasse falso o seu próprio raciocínio... Antes cremos naquilo de “psicopatologia” de que falava Étienne Gilson.
Dissemos no artigo anterior que “toda e qualquer quimera” (como a economia liberal) “é produto de uma ideologia”. Mas o que é precisamente “ideologia”?
Cunhado no livro Elements d’idéologie (1801) por Antoine Destutt de Tracy, discípulo de Condillac (ambos liberais e revolucionários), o termo exerce ali, segundo o próprio autor, o papel de “filosofia primeira” em substituição a qualquer metafísica e a qualquer religião. O que, porém, quer dizer precisamente De Tracy ao falar de “filosofia primeira”, já que não se trata de metafísica? Ora, esta sempre fora considerada a filosofia primeira por tratar, justamente, das coisas que são primeiras na realidade – Deus incluído, e acima de tudo. Pois a “ideologia” do francês tinha o exato sentido de “ciência das idéias”, e, como uma ciência ou filosofia se define pelo seu objeto, e como a “ideologia” de De Tracy se substituía à metafísica como “filosofia primeira”, logo, para o pensador, as coisas primeiras na realidade só podiam ser as mesmas “idéias”. A “ideologia” de De Tracy é, portanto, uma legítima continuadora do “Penso, logo sou” de Descartes, aquele mesmo segundo o qual, como vimos, o pensamento cria o homem que o pensa; e dela, da “ideologia” de De Tracy, se pode montar o seguinte “silogismo”* (antes um paralogismo**, ou um entimema no sentido aristotélico***): “Têm-se idéias, logo a realidade é”. Sim, porque considerar as idéias como as coisas primeiras da realidade é do mais puro pensamento mágico em sua segunda vertente, qual seja, a que toma o efeito pela causa.
Logo, porém, o termo “ideologia” ganharia outra acepção, pejorativa, graças (como conta Maxence Hecquard em seu admirável Les fondements philosophiques de la démocratie moderne, Paris, François Xavier de Guibert, 2007), graças a ninguém menos que Napoleão Bonaparte, que chamava sarcasticamente de “ideólogos” os “filósofos nebulosos afastados da realidade”. Não se sabe se conhecendo ou não a ironia napoleônica, o fato é que Marx e Engels censurarão, em A Ideologia Alemã (1845), a esses mesmos filósofos o fato de eles “descerem do céu para a terra” em vez de “se elevarem da terra ao céu”, donde decorre a famosa máxima marxista: “Já não se trata de entender a realidade, mas de transformá-la” – para, parafraseio-o eu, “fazer com que o homem seja como Deus e se torne senhor de um verdadeiro paraíso: o material terrestre”... O termo “ideologia”, no entanto, adquire duas novas acepções com os fundadores do materialismo histórico e dialético.
A primeira deriva de sua concepção de que toda e qualquer idéia emana, no homem, das condições de sua vida material. (E tem-se aqui outro exemplo de pensamento mágico, ainda de segunda vertente: nele, o efeito vida material é tomado como “causa” do inteligir humano, quando obviamente se trata do oposto – se assim não fosse, como um pequeno-burguês com fumos de nobre como Marx poderia defender o proletariado, se as suas condições materiais de existência não lhe permitiriam senão o pensar como um pequeno-burguês com fumos de nobre?) Ora, a ideologia, sempre segundo os dois alemães, falseia justamente tal relação, virando o homem ”de cabeça para baixo” e fazendo-o crer que são as idéias o que determina a sua vida material; e essa “falsa consciência” que é a ideologia, em especial a ideologia burguesa, não visa senão à “alienação das classes exploradas e oprimidas”. Desse modo, como diz Raymond Aron (Trois essais sur l’âge industriel, IIIe Partie, c. 2, p. 189, apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 38), a ideologia é “uma deformação interessada do real”.
Mas há em Marx, como nos faz ver ainda Raymond Aron, outra acepção de ideologia, a qual, digamos, é “axiologicamente neutra”, ou seja, é neutra em termos de valor (conceito que, como veremos daqui a alguns artigos, está na raiz do próprio liberalismo): a acepção de “conjunto dos edifícios intelectuais e morais”. Trata-se, em verdade, como diz Maxence Hecquard, da mesma acepção anterior sem, todavia, o julgamento de valor, sem o aspecto pejorativo. Pois bem, é esta mesma segunda acepção de ideologia, mas tal como desenvolvida penetrantemente, como veremos, pelo liberal Raymond Aron, o que nos servirá para mostrar que o liberalismo, seja o político-democrático, seja o econômico, é tão ideologia como o próprio comunismo, e, pois, tão pensamento mágico como ele.
* Silogismo: segundo Aristóteles, o modo fundamental do raciocinar humano, estruturado a partir de duas proposições, chamadas premissas, das quais, por inferência, se obtém necessariamente uma terceira, chamada conclusão. Veja-se um exemplo clássico de silogismo: “Todos os homens são mortais; ora, Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”.
** Paralogismo: raciocínio inválido ou falso.
*** Entimema: aqui, silogismo carente de rigor formal por elidir uma premissa que, se mostrada, patentearia a falsidade do raciocínio. Assim, se Descartes mostrasse seu “Penso, logo sou” com sua premissa maior obrigatória, o silogismo ficaria assim: “Para ser, é preciso pensar; ora, eu penso; logo, sou”, o que evidenciaria, a todas as luzes, a sua absoluta falsidade. E a evidenciaria para o próprio Descartes, porque não queremos crer que ele considerasse falso o seu próprio raciocínio... Antes cremos naquilo de “psicopatologia” de que falava Étienne Gilson.