Carlos Nougué
Hoje tem certo curso a opinião de que algumas coisas que a Igreja condenava outrora já deixaram de ser condenadas por ela.
Esta é discussão grave, que requer um trabalho de fôlego muito mais amplo. Mas uma coisa já pode ser respondida aqui e agora, de forma breve: a verdadeira autoridade da Igreja é o seu Magistério. Não o são os teólogos, conquanto a um em especial o próprio Magistério tenha dado a autoridade específica de Doutor Comum da Igreja: Santo Tomás de Aquino. E explica-o: foi-lhe dada tal autoridade porque “a sua doutrina soa em uníssono com a Revelação divina e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé” [destaque nosso] (DS 3894).
Sendo assim, se um teólogo escreve que antigas condenações formais da Igreja estão circunscritas ao tempo em que foram feitas, isto é pura e simples interpretação dele, sem a mais ínfima autoridade magisterial.
Pois bem, dito isso, diga-se também que efetivamente tem certo curso hoje a opinião de que a democracia foi, de fato, condenada pela Igreja no século XVIII, porque, de fato, tinha caráter anticatólico, mas a partir de então deixou de ser condenada por ela precisamente por ter perdido tal caráter. Como nada pior que uma meia verdade, cujos efeitos daninhos sobre as almas podem ser ainda mais devastadores que os de uma inverdade, diga-se que esta opinião encerra uma falácia e uma falsidade histórica: a) a falácia de pôr sob uma só designação (democracia) coisas em verdade díspares; b) a falsidade histórica de esquecer o que disseram das democracias papas como, por exemplo, São Pio X e Pio XII (em pleno século XX!!!). Vejamos, de início, o ensinamento de São Pio X sobre o assunto, o qual, como não poderia deixar de ser, tem por fundamento a concepção católica da origem do poder.
Retomando a célebre frase de São Paulo: “Não há poder que não venha de Deus” (Rom, XIII, 1), afirma o santo Papa: “O Senhor [é] princípio de todo e qualquer poder e de toda e qualquer soberania” (Carta de 1913, VIII, 30). “A autoridade humana”, diz ainda São Pio X, “[é inoperante] se se esquece ou põe em dúvida que todo e qualquer poder vem de Deus” (Encíclica Jacunda sane, 155), e mais que inoperante, perigosa, “porque ela já não terá mais que um freio, a força, para governar todas as coisas” (idem).
Estabelecido, assim, que o reconhecimento da origem divina do poder (e da lei natural, acrescente-se, e da lei divina positiva) é a única verdadeira garantia contra a tirania, o ensinamento de São Pio X resolve, sobretudo na Carta sobre o Sillon (de agosto de 1910), a questão da delegação do poder. Extraiamos desta solução uma síntese: se o poder é diretamente delegado por Deus aos governantes, a escolha de um governante por eleição designa a pessoa desse governante, sim, mas não lhe pode delegar o poder de governar, sob pena de reduzir a autoridade a um mito (ver ibid., V, 130).
Ora, tudo isso conduz, naturalmente, à questão das formas de regime. E, quanto a isto, começa São Pio X por relembrar o que sempre dissera o Magistério: a Igreja não tem preferência por nenhum regime político. Como ensinara Leão XIII, “Não é vedado aos povos dar-se o governo que mais corresponda a seu caráter ou às instituições e costumes que eles receberam de seus ancestrais” (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).
Ora, se, como vemos, a Igreja admite a democracia (ou seja, o modo de designação do chefe de Estado por meio de sufrágio), ela porém condena, antes de tudo, o democratismo (ou seja, a ideologia que só admite a democracia como regime legítimo): “A democracia não goza de nenhum privilégio especial”, diz Leão XIII (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).
Mais que isso, porém: a Igreja condena também a democracia liberal, fundada que é na tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”, esse arremedo das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que São Pio X considerava um conjunto de “noções erradas e funestas” (Carta sobre o Sillon, V, 131), fruto do individualismo e do idealismo: “E eis”, escreve ironicamente o Papa, “a grandeza e a nobreza humanas ideais realizadas pela célebre tríade...” (ibid., V, 129). Parece-me ouvir os acordes ribombantes do coral da Nona Sinfonia de Beethoven...
E, dada a exigüidade de tempo e espaço, parece-me que com relação a São Pio X basta o já dito. Mas e com relação a Pio XII, a respeito do qual alguns dizem que era um entusiástico defensor da democracia? Outra meia verdade, porque, em primeiro lugar, a democracia que Pio XII considerava aceitável não era a democracia “absoluta”, mas una forma popular moderada; em segundo, ele nunca a proclamou a única forma boa de regime; em terceiro, ele dizia que ela não devia ser condicionada pela idéia de liberdade, mas sim pela de bem comum; em quarto, ela supunha a constituição não de uma massa igualitária, mas de um povo hierarquicamente ordenado; em quinto, requeria uma autoridade real, derivada e submetida a Deus; em sexto, compreendia um corpo legislativo composto de homens seletos, espiritualmente superiores e de caráter íntegro [como na democracia atual, sem dúvida...] que se considerassem representantes de todo o povo e não mandatários de uma massa; etc., etc., etc. ― como, aliás, já dizia Santo Tomás, e sobretudo como sempre dissera o Magistério. E leia-se de Pio XII especialmente as palavras de Summi Pontificatus referentes ao processo de descristianização do mundo, que se entenderá essencialmente tudo quanto acabamos de dizer.
Em tempo: Falando criticamente do romantismo e citando a Bíblia, dizia o Papa Pio X que a Igreja sabe perfeitamente “quanto os sentimentos e os pensamentos da alma humana são inclinados ao mal” (Gên, VIII, 21, em Carta sobre o Sillon, V, 137).
Hoje tem certo curso a opinião de que algumas coisas que a Igreja condenava outrora já deixaram de ser condenadas por ela.
Esta é discussão grave, que requer um trabalho de fôlego muito mais amplo. Mas uma coisa já pode ser respondida aqui e agora, de forma breve: a verdadeira autoridade da Igreja é o seu Magistério. Não o são os teólogos, conquanto a um em especial o próprio Magistério tenha dado a autoridade específica de Doutor Comum da Igreja: Santo Tomás de Aquino. E explica-o: foi-lhe dada tal autoridade porque “a sua doutrina soa em uníssono com a Revelação divina e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé” [destaque nosso] (DS 3894).
Sendo assim, se um teólogo escreve que antigas condenações formais da Igreja estão circunscritas ao tempo em que foram feitas, isto é pura e simples interpretação dele, sem a mais ínfima autoridade magisterial.
Pois bem, dito isso, diga-se também que efetivamente tem certo curso hoje a opinião de que a democracia foi, de fato, condenada pela Igreja no século XVIII, porque, de fato, tinha caráter anticatólico, mas a partir de então deixou de ser condenada por ela precisamente por ter perdido tal caráter. Como nada pior que uma meia verdade, cujos efeitos daninhos sobre as almas podem ser ainda mais devastadores que os de uma inverdade, diga-se que esta opinião encerra uma falácia e uma falsidade histórica: a) a falácia de pôr sob uma só designação (democracia) coisas em verdade díspares; b) a falsidade histórica de esquecer o que disseram das democracias papas como, por exemplo, São Pio X e Pio XII (em pleno século XX!!!). Vejamos, de início, o ensinamento de São Pio X sobre o assunto, o qual, como não poderia deixar de ser, tem por fundamento a concepção católica da origem do poder.
Retomando a célebre frase de São Paulo: “Não há poder que não venha de Deus” (Rom, XIII, 1), afirma o santo Papa: “O Senhor [é] princípio de todo e qualquer poder e de toda e qualquer soberania” (Carta de 1913, VIII, 30). “A autoridade humana”, diz ainda São Pio X, “[é inoperante] se se esquece ou põe em dúvida que todo e qualquer poder vem de Deus” (Encíclica Jacunda sane, 155), e mais que inoperante, perigosa, “porque ela já não terá mais que um freio, a força, para governar todas as coisas” (idem).
Estabelecido, assim, que o reconhecimento da origem divina do poder (e da lei natural, acrescente-se, e da lei divina positiva) é a única verdadeira garantia contra a tirania, o ensinamento de São Pio X resolve, sobretudo na Carta sobre o Sillon (de agosto de 1910), a questão da delegação do poder. Extraiamos desta solução uma síntese: se o poder é diretamente delegado por Deus aos governantes, a escolha de um governante por eleição designa a pessoa desse governante, sim, mas não lhe pode delegar o poder de governar, sob pena de reduzir a autoridade a um mito (ver ibid., V, 130).
Ora, tudo isso conduz, naturalmente, à questão das formas de regime. E, quanto a isto, começa São Pio X por relembrar o que sempre dissera o Magistério: a Igreja não tem preferência por nenhum regime político. Como ensinara Leão XIII, “Não é vedado aos povos dar-se o governo que mais corresponda a seu caráter ou às instituições e costumes que eles receberam de seus ancestrais” (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).
Ora, se, como vemos, a Igreja admite a democracia (ou seja, o modo de designação do chefe de Estado por meio de sufrágio), ela porém condena, antes de tudo, o democratismo (ou seja, a ideologia que só admite a democracia como regime legítimo): “A democracia não goza de nenhum privilégio especial”, diz Leão XIII (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).
Mais que isso, porém: a Igreja condena também a democracia liberal, fundada que é na tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”, esse arremedo das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que São Pio X considerava um conjunto de “noções erradas e funestas” (Carta sobre o Sillon, V, 131), fruto do individualismo e do idealismo: “E eis”, escreve ironicamente o Papa, “a grandeza e a nobreza humanas ideais realizadas pela célebre tríade...” (ibid., V, 129). Parece-me ouvir os acordes ribombantes do coral da Nona Sinfonia de Beethoven...
E, dada a exigüidade de tempo e espaço, parece-me que com relação a São Pio X basta o já dito. Mas e com relação a Pio XII, a respeito do qual alguns dizem que era um entusiástico defensor da democracia? Outra meia verdade, porque, em primeiro lugar, a democracia que Pio XII considerava aceitável não era a democracia “absoluta”, mas una forma popular moderada; em segundo, ele nunca a proclamou a única forma boa de regime; em terceiro, ele dizia que ela não devia ser condicionada pela idéia de liberdade, mas sim pela de bem comum; em quarto, ela supunha a constituição não de uma massa igualitária, mas de um povo hierarquicamente ordenado; em quinto, requeria uma autoridade real, derivada e submetida a Deus; em sexto, compreendia um corpo legislativo composto de homens seletos, espiritualmente superiores e de caráter íntegro [como na democracia atual, sem dúvida...] que se considerassem representantes de todo o povo e não mandatários de uma massa; etc., etc., etc. ― como, aliás, já dizia Santo Tomás, e sobretudo como sempre dissera o Magistério. E leia-se de Pio XII especialmente as palavras de Summi Pontificatus referentes ao processo de descristianização do mundo, que se entenderá essencialmente tudo quanto acabamos de dizer.
Em tempo: Falando criticamente do romantismo e citando a Bíblia, dizia o Papa Pio X que a Igreja sabe perfeitamente “quanto os sentimentos e os pensamentos da alma humana são inclinados ao mal” (Gên, VIII, 21, em Carta sobre o Sillon, V, 137).