quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (VI)

Carlos Nougué
“O coração tem razões que a própria razão desconhece” ― bem poderia ser esse o lema de toda e qualquer ideologia. Seus apologistas, sejam comunistas, nazistas, gnósticos (como Joaquim de Fiori) ou liberais, são, como diz Hecquard (op. cit., p. 41), “muito mais afirmativos que demonstrativos”. A ação empreendida pelos paladinos das ideologias – as quais, a partir da negação de um regime político ou de um sistema econômico, buscam sempre substituí-los por outros, razão por que todas têm sempre caráter revolucionário –, tal ação, como escreve Julien Freund (ibid., p. 246), “tem necessidade de idéias simples, de frases absolutamente feitas, de ficções e até por vezes de mentiras”. Por isso o sentido profundo de toda e qualquer ideologia não pode ser senão este: “a vontade de poder de uma opinião simplesmente afirmada em face de outras opiniões e outros fins” (Julien Freund, idem; itálico nosso).

Em nossos termos: toda e qualquer ideologia, como produto que é do pensamento mágico quimérico (herdeiro, como já se disse, da mente cartesiana, que se pretende fundadora da realidade e, pois, substituta de Deus), busca instaurar revolucionariamente o impossível, e foi nesse sentido que escrevemos, em “O que é a história (III e final)”: “tanto o comunismo como a democracia liberal são, em sentido estrito, impossíveis. Além de monstruosos, que é o outro sentido da palavra ‘quimérico’”. Sim, porque a instauração revolucionária de algo quimérico ou stricto sensu impossível não pode senão gerar um aborto, uma monstruosidade. Aliás, vale para as mudanças sociais e econômicas o que, mutatis mutandis, vale para a guerra: assim como a guerra não será justa, entre outras razões, se o estado resultante dela for pior que o estado anterior a ela, assim também qualquer mudança social ou econômica será iníqua se o estado resultante dela for pior que o estado anterior a ela.

Como, porém, o Leitmotiv desta série é a economia liberal enquanto produto do pensamento mágico, temos de demonstrar, consoante tudo quanto se disse até aqui:

1) que a economia liberal é uma negação, e de quê;

2) que ela teve e tem caráter revolucionário;

3)
que o estado resultante de sua implantação é pior que o estado anterior a ela, e em que sentido;

4) que mesmo diante da economia liberal o realismo católico não assume uma postura revolucionária, o que, porém, mais que mostrar as propostas do Magistério infalível ante essa economia, e tendo por pressuposto algo análogo ao que diz o Padre Álvaro Calderón sobre a cultura (“Assim como só a carne puríssima da Virgem Maria foi apta para receber o Verbo de Deus, assim também só a ‘carne’ da cultura greco-latina era suficientemente sã para ser animada pela sabedoria do Evangelho e edificar a catedral da cultura cristã”), requer que mostremos:

5)
se a economia liberal é “carne” apta e sã para ser animada pela sabedoria evangélica (sabendo-se de antemão, segundo o mesmo Magistério, que não o é a economia comunista, sempre “intrinsecamente má”).

Antes, todavia, de procedermos a essas demonstrações e respostas, é preciso deixar claramente assentado que, ao falarmos de economia liberal como resultado de uma ideologia liberal econômica, não esquecemos que a economia liberal é essencialmente vinculada à democracia liberal (apesar de casos extraordinários, como o da China atual) e, sobretudo, ao liberalismo moral. Trata-se, pois, de uma compartimentação de razão, devida, como já se disse, ao Leitmotiv desta série, a qual compartimentação, porém, se resolverá perfeitamente na série “Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz”. Mas por isso mesmo, em razão de tal essencial vinculação, é que antes ainda de procedermos àquelas demonstrações e respostas temos de mostrar aqui pelo menos de que maneira central se dá tal vínculo, sem o que deixaríamos esta série sem premissas suficientemente claras.

Pois bem, tal vínculo se dá centralmente no fato de a sociedade democrática liberal ser, em verdade, como um todo e em cada um dos seus aspectos, uma autêntica e imensa sociedade anônima, cujo anonimato é assegurado tanto por um radical laissez-faire moral quanto por um maquiavelismo político cujo príncipe, para parafrasearmos Aristóteles, é a moeda enquanto substituta da ganância.

(Continua.)

Em tempo 1: Para começarmos a tratar, como anunciado, da servidão medieval, leiamos este trecho algo longo do extraordinário Luz sobre a Idade Média, de Régine Pernoud: “Na divisão um pouco sumária que muitas vezes foi feita da sociedade medieval, só há lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania, o arbitrário e os abusos de poder, do outro os miseráveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito [...]; tal é a idéia que evocam ― e não apenas nos manuais de história para uso das escolas primárias – as palavras ‘nobreza’ e ‘terceiro estado’. O simples bom senso basta, no entanto, para dificilmente admitir que os descendentes dos terríveis gauleses, dos soldados romanos, dos guerreiros da Germânia e dos fogosos escandinavos se tenham reduzido durante séculos a uma vida de animais encurralados. Mas há lendas tenazes; o desdém pelos ‘séculos obscuros’ data, aliás, de antes de Boileau.

“Na realidade, o terceiro estado comporta uma série de condições intermediárias entre a liberdade absoluta e a servidão. Nada de mais diverso e mais desconcertante que a sociedade medieval e as propriedades rurais da época: a sua origem absolutamente empírica dá conta dessa prodigiosa variedade na condição das pessoas e dos bens. Para dar um exemplo, na Idade Média, ainda que o emparceiramento do domínio represente a concepção geral do direito de propriedade, existe no entanto aquilo que o nosso tempo já não conhece de todo: a terra possuída em franca propriedade, o alódio [...] ou alódio livre [...], isento de todo e qualquer dever e de imposições de qualquer espécie; isso se manteve até a Revolução, quando os alódios ou quaisquer terras declaradas livres deixaram de fato de existir, já que tudo foi submetido ao controle e às imposições do Estado. Notemos ainda que na Idade Média, quando um camponês se instala numa terra e nela exerce a sua arte durante o tempo da prescrição [...], isto é, o tempo de perfazer o ciclo completo dos trabalhos dos campos, desde a lavragem até a colheita, sem ser perturbado, é considerado o único proprietário dessa terra” (itálico nosso).

Pois bem, concluamos da citação sobretudo isto: foi a revolução francesa, junto com a revolução industrial inglesa (que, como veremos, ao contrário do que se quer fazer crer, foi das revoluções mais cruéis), foi portanto a revolução francesa, a mesma que propriamente fundou o mundo liberal, quem eliminou a propriedade da terra totalmente livre (ou seja, livre também de impostos), ao submeter tudo, toda a vida econômico-social, ao controle e às imposições do Estado. Começamos a ver aí o que chamamos uma quimera, um aborto, uma monstruosidade revolucionária: dizendo-se universalmente libertadora, dizendo-se porta-bandeira da deusa Liberdade, dizendo-se vanguarda das liberdades econômicas e políticas, a revolução funda o oposto do que promete: funda a era do Estado propriamente totalitário, e totalitário ainda que formalmente baseado no sufrágio universal.

Em tempo 2: Você sabia que a corvéia medieval, ou seja, o imposto pago pelo servo em forma de tempo de trabalho (não-remunerado) para o senhor, correspondia em média a 10% de sua produção anual? E hoje em dia? Eis um quadro: dentre os 25 países avaliados em determinado estudo, a carga tributária do Brasil (37,82% do PIB) só fica atrás da registrada pela Suécia (50,7%), Noruega (44,9%), França (43,7%) e Itália (42,2%). Mas veja-se que a carga tributária no próprio paraíso da economia liberal, os EUA, é de 25,4%. E concedamos, per absurdum, que o conjunto dos impostos arrecadados nesses países se transforme em benefício para os próprios contribuintes. Pois também a corvéia medieval redundava em muitíssimos benefícios para os servos, como veremos em artigos próximos.

Em tempo 3: Você sabia que o tão malfalado “direito de pernada” medieval, que, segundo o que aprendemos, era o direito do senhor feudal de desfrutar de qualquer esposa servil em sua primeira noite de núpcias (sem o marido, naturalmente), não era nada disso? Veremos no próximo artigo o que era de fato, para também começarmos a ver a enormidade da mentirosa campanha de difamação de que foi vítima a Idade Média.