Sidney Silveira
Como vimos, o laicismo liberal-maçônico prega a absoluta independência entre os planos espiritual e material — na prática, a separação entre Estado e Religião. Mas, antes de conseguir emprestar alguma credibilidade a essa sua tese laicista, foi preciso atacar, de modo sistemático, ao longo de 200 anos, a noção de Estado, fazer deste uma espécie de “inimigo” dos indivíduos, uma superestrutura estanque no seio da pólis (só de ouvir essa palavra o liberal tem comichões!), e enfim propagar a idéia de que o Estado é necessariamente uma instância coercitiva para as liberdades individuais. Em suma: consolidar a tese de que o Estado é alheio às pessoas, e de que o “bem comum” é uma ilusão. Essa tese ganhou o mundo ocidental, e não me deterei em enumerar aqui os seus variados ideólogos, nem os principais matizes da teoria, para não perder o foco. Depois, indicarei uma interessante bibliografia.
Transformado o Estado, artificiosamente, em algo “mau”, tornou-se mais fácil defender que se separasse da Igreja, “para o bem desta” (tese diametralmente oposta à de Leão XIII, em Libertas Praestantissimum, nºs. 24 a 28, e em Immortale Dei, nº 28). Transformado o Estado, artificiosamente, em algo alheio às pessoas, tornou-se mais fácil difundir a idéia de que ele deve ser também alheio ou indiferente ao bem das almas (tese considerada nefasta pelo próprio Leão XIII, cuja autoridade magisterial nenhum católico pode pôr à prova, sem defraudar o mesmo Magistério); transformado o Estado em mera instância coercitiva para as “liberdades individuais”, tornou-se mais fácil desvincular conceitualmente, no seio das sociedades, a lei eterna da lei positiva humana, passando-se ao largo da lei natural — da qual a Igreja é defensora milenar; transformado o Estado em uma superestrutura estanque no seio da pólis, tornou-se possível defender doutrinas econômicas que visam ao permanente aumento da reprodutibilidade dos bens materiais sem subordinar estes aos bens espirituais, mas ao contrário: de subalternos, eles se tornaram “fundamento” do cristianismo, graças ao livre mercado (dá-me náuseas ver um liberal dizer que um dos “pressupostos” do cristianismo é a liberdade de mercado, sobretudo se é liberal “católico”).
A Igreja, por sua vez, sempre defendeu o seguinte:
a) No plano individual (contra os mais variados gnosticismos), a harmonia entre corpo e alma, estando os bens do corpo, contudo, subordinados aos bens da alma;
b) No plano social (contra o liberalismo), a harmonia entre bens materiais e espirituais, e entre o todo e as partes nas sociedades — estando os bens materiais subordinados aos espirituais, e o bem das partes ordenado ao bem do todo.
Para dar corpo à sua tese, os liberais contemporâneos dizem que a Igreja, na época em que o Estado era confessional, meteu os pés pelas mãos — e dão até exemplos históricos aparentemente verazes. Acontece que confundem Estado confessional com cesaripapismo, quando não com agostinismo político, entre outros. Reparem muito bem: não digo que eles se confundem, mas que confundem, o que é mui distinto. A estes vale responder que não se trata, em absoluto, de uma coisa nem de outra, mas de algo que a Igreja sempre defendeu: a natural primazia do espiritual sobre o material, do eterno sobre o temporal, do absoluto sobre todos os relativos. E vale dizer que o Estado confessional implica tão-somente que o Estado, preservando a sua área de autonomia, protege a verdadeira religião (a propósito, terá Santo Agostinho escrito o seu De Vera Religione à toa?), tolerando, se for o caso, todas as demais.
Uma sociedade que não subordina o material ao espiritual, a lei positiva à lei eterna, o econômico ao político e este ao celeste — ou seja: que não busca politicamente fins transpolíticos, como diz Barrera em seu livro magistral — é, para dizer o mínimo, uma sociedade enfermiça, e de uma enfermidade não menos que terminal.
Transformado o Estado, artificiosamente, em algo “mau”, tornou-se mais fácil defender que se separasse da Igreja, “para o bem desta” (tese diametralmente oposta à de Leão XIII, em Libertas Praestantissimum, nºs. 24 a 28, e em Immortale Dei, nº 28). Transformado o Estado, artificiosamente, em algo alheio às pessoas, tornou-se mais fácil difundir a idéia de que ele deve ser também alheio ou indiferente ao bem das almas (tese considerada nefasta pelo próprio Leão XIII, cuja autoridade magisterial nenhum católico pode pôr à prova, sem defraudar o mesmo Magistério); transformado o Estado em mera instância coercitiva para as “liberdades individuais”, tornou-se mais fácil desvincular conceitualmente, no seio das sociedades, a lei eterna da lei positiva humana, passando-se ao largo da lei natural — da qual a Igreja é defensora milenar; transformado o Estado em uma superestrutura estanque no seio da pólis, tornou-se possível defender doutrinas econômicas que visam ao permanente aumento da reprodutibilidade dos bens materiais sem subordinar estes aos bens espirituais, mas ao contrário: de subalternos, eles se tornaram “fundamento” do cristianismo, graças ao livre mercado (dá-me náuseas ver um liberal dizer que um dos “pressupostos” do cristianismo é a liberdade de mercado, sobretudo se é liberal “católico”).
A Igreja, por sua vez, sempre defendeu o seguinte:
a) No plano individual (contra os mais variados gnosticismos), a harmonia entre corpo e alma, estando os bens do corpo, contudo, subordinados aos bens da alma;
b) No plano social (contra o liberalismo), a harmonia entre bens materiais e espirituais, e entre o todo e as partes nas sociedades — estando os bens materiais subordinados aos espirituais, e o bem das partes ordenado ao bem do todo.
Para dar corpo à sua tese, os liberais contemporâneos dizem que a Igreja, na época em que o Estado era confessional, meteu os pés pelas mãos — e dão até exemplos históricos aparentemente verazes. Acontece que confundem Estado confessional com cesaripapismo, quando não com agostinismo político, entre outros. Reparem muito bem: não digo que eles se confundem, mas que confundem, o que é mui distinto. A estes vale responder que não se trata, em absoluto, de uma coisa nem de outra, mas de algo que a Igreja sempre defendeu: a natural primazia do espiritual sobre o material, do eterno sobre o temporal, do absoluto sobre todos os relativos. E vale dizer que o Estado confessional implica tão-somente que o Estado, preservando a sua área de autonomia, protege a verdadeira religião (a propósito, terá Santo Agostinho escrito o seu De Vera Religione à toa?), tolerando, se for o caso, todas as demais.
Uma sociedade que não subordina o material ao espiritual, a lei positiva à lei eterna, o econômico ao político e este ao celeste — ou seja: que não busca politicamente fins transpolíticos, como diz Barrera em seu livro magistral — é, para dizer o mínimo, uma sociedade enfermiça, e de uma enfermidade não menos que terminal.