domingo, 5 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (I)

Carlos Nougué
Dizia Santo Tomás no início da Suma contra os Gentios: “Refutar todos os erros é difícil, por duas razões. A primeira é que as afirmações sacrílegas de cada um dos que caíram no erro não nos são conhecidas a ponto de podermos tirar delas argumentos para confundi-los. Era isso, porém, o que faziam os antigos doutores para destruir os erros dos pagãos, cujas posições eles podiam conhecer, quer porque eles próprios tinham sido pagãos, quer, ao menos, porque viviam no meio dos pagãos [...]. A segunda razão é que alguns entre eles, como os maometanos e os pagãos, não estão de acordo conosco em reconhecer a autoridade das Escrituras, graças à qual os poderíamos convencer, enquanto com os judeus nós podemos disputar no terreno do Antigo Testamente, e com os heréticos podemos disputar no terreno do Novo Testamento. Maometanos e pagãos não admitem nem um nem outro. É preciso, então, recorrer à razão natural, à qual todos são obrigados a dar sua adesão. Mas a razão natural é falível com respeito às coisas de Deus. No estudo detido que faremos de tal verdade particular, mostraremos, pois, ao mesmo tempo, que erros esta verdade exclui, e que a verdade estabelecida pela via demonstrativa está de acordo com a fé da religião cristã”.

Pois bem, analogamente, tentaremos mostrar na série que começa aqui a falácia dos argumentos econômicos liberais. Não recorreremos nesta série ao Magistério da Igreja, nem a Santo Tomás de Aquino, nem a Platão e Aristóteles, pela simples razão de que esses não são terrenos comuns entre nós e os liberais. Mas, enquanto Santo Tomás supunha a possibilidade de adesão de muçulmanos e pagãos à razão natural, nós hoje, ante os liberais, temos um problema, digamos, anterior: eles simplesmente já não aceitam a razão natural, porque, como veremos, assim como os comunistas, aderiram a uma espécie de pensamento mágico. Temos pois de recorrer antes ao bom senso (ou “senso comum”, como alguns o preferem chamar) para tentar destruir, primeiro, o pensamento mágico.

O pensamento mágico típico crê encontrar na realidade relações causais, mas, de fato, e diferentemente da razão natural, não distingue concomitância de causalidade
. Por exemplo: alguém pode crer que o número 11 dá sorte porque ganhou algum torneio esportivo usando uma camisa de número 11. Procurará, a partir de então, fazer girar toda a sua vida em torno do número 11, e de fato, a cada passo, encontará entre o número 11 e a sorte uma relação de causalidade, enquanto, em verdade, tudo não havia passado de uma relação de concomitância: usar a camisa 11 e ganhar o torneio não tinham sido senão fatos simultâneos, sem nenhuma determinação mútua. O fato, no entanto, é que a algo que é apenas concomitante o supersticioso atribui caráter causal.

São muitos os produtos do pensamento mágico típico, entre eles a astrologia.

Mas, se, mais amplamente, se considera mágico todo aquele pensamento que vê relação causal onde de fato não a há, então nem todo o pensamento mágico se resume a superstição: quando, por exemplo, Engels dizia, na esteira de Darwin, que o que torna o homem homem é o fazer instrumentos, tal maneira de raciocinar e concluir é ainda pensamento mágico sem, todavia, ser superticioso: aqui não se confunde concomitância com causa, mas resultância, conseqüência, efeito com causa. Pensemos: qual é a causa e qual o efeito: o mamífero é mamífero porque mama, ou mama porque é mamífero? O homem é homem porque pensa, ou pensa porque é homem? Confiamos em que os motoristas não avançarão o sinal porque atravessamos a rua, ou atravessamos a rua porque confiamos em que os motoristas não avançarão o sinal? Ora, é claro que o mamar é efeito da causa ser mamífero, assim como o pensar é efeito da causa ser homem, e assim como o atravessar a rua é efeito da causa confiar. Logo, do mesmo modo, fazer intrumentos é efeito da causa ser homem. (Hão de argumentar: mas alguns macacos, como os chimpanzés, também fazem instrumentos... Sim, mas não se segue daí que sejam chimpanzés porque fazem instrumentos; antes fazem instrumentos porque são chimpanzés. Então têm os chimpanzés e os homens isto em comum: fazer intrumentos? Sim, senhor, e que isso não seja pedra de escândalo: temos os humanos muitas outras coisas em comum com os chimpanzés: temos corpo, e eles também; temos sangue, e eles também; temos olhos, e eles também; gritamos de dor, e eles também; etc. Aliás, também as aves têm corpo, sangue, olhos, e muitas gritam [ainda que não de dor], enquanto outras também fazem instrumentos, e até constroem belas casas, ou ao menos mais belas que muitos edifícios modernos... Isso para não falar que temos algo muito importante em comum com as abelhas e as formigas: o sermos sociais.)

Mas insistamos: qual é a causa e qual o efeito: os homens confiam uns nos outros porque trocam mercadorias entre si, ou trocam mercadorias entre si porque confiam uns nos outros? Os homens confiam uns nos outros porque usam a moeda como meio de troca, ou usam a moeda como meio de troca porque confiam uns nos outros, ou melhor, confiam em que a outra parte atribui valor justo à mercadoria em questão, permitindo assim a troca por meio de moeda? Se isto último não fosse a causa, nunca nos queixaríamos de um preço e, por essa razão, nunca deixaríamos de comprar uma mercadoria. Ora, quando não confiamos em que a outra parte atribui um justo valor a determinada mercadoria, não a compramos (se o podemos fazer, é claro...), ou seja: se não confiamos no outro, não se dá troca, não se realiza a relação de troca. Logo, a relação de troca é efeito da causa confiar.

Mas é exatamente o contrário o que afirma um dos papas do liberalismo econômico: Alain Peyrefitte. Para ele, a “sociedade de confiança” (a expressão é do próprio economista francês) só existe por causa da troca. Insistamos: para ele, a confiança é efeito da troca, assim como para Descartes o ser era efeito do pensar, e assim como para Engels o ser homem era efeito do fazer instrumentos.

(Continua.)

Em tempo 1: Como veremos ao longo desta série, o liberalismo econômico mescla duas vertentes do pensamento mágico: esta última que acabamos de ver, ou seja, a que toma o efeito pela causa, e a quimérica, que veremos nos próximos artigos. E compartilha ambas essas vertentes com o comunismo, como já dissemos. Um exemplo de quimera? O crer que, independentemente do homem, o próprio mercado acabará por se auto-regular até tornar-se o campo da própria justiça. Como se não houvesse a cobiça. Pois dizem os comunistas algo similarmente quimérico: depois da pior das ditaduras, a do proletariado, o Estado ruirá por si só!... Como se não houvesse o apego ao poder.

Em tempo 2: Mas pior é quando, nos liberais econômicos, à quimera se junta a irresponsabilidade. “Deixe-se explodir a economia, que assim se manterão os princípios liberais, e a economia se reordenará por si mesma” – dizem, referindo-se ao “traidor” Bush, o líder mundial dos liberais, por ter, com seu pacote bilionário, contrariado a tese mágica da capacidade de auto-regeneração do mercado. Incapazes de juntar causa e efeito (é este um dos traços da vertente quimérica do pensamento mágico), incapazes de ver a relação entre seu impossível liberalismo econômico e o drama material que se abate sobre os homens atualmente, preferem deixar que se agrave o drama para que assim “se salve” sua teoria... Irresponsáveis, sem nenhuma preocupação com o bem comum nem com o próximo – não há outras palavras, infelizmente, para defini-los.