sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (I)

Bonifácio VIII


Sidney Silveira


A morte de Bonifácio VIII (1235-1303) marca a um só tempo o fim a Idade Média e o começo do lento e progressivo declínio da Cristandade[1].Marca a derrota da visão de mundo fundada na Sagrada Escritura — e defensora da ordenação das coisas materiais às espirituais — para uma concepção de total independência dos governos das nações com relação às leis eclesiásticas.


Em resumo, o sacrílego atentado sofrido por Bonifácio VIII em 1303, na cidade de Anagni (tramado pelos Colonnas, influente e terrível família romana), é um símbolo da sublevação do absolutismo nacionalista contra o universalismo cristão — coluna vertebral da política do Medievo —, como afirma o historiador Ricardo García-Villoslada. E mais do que isto: é o emblema de uma significativa mudança de vetor nas sociedades, que se consolidará nos séculos imediatamente posteriores ao pontificado de Bonifácio VIII, com a crescente perda do poder político e espiritual da Igreja:


Ø do sentido de transcendência para o de imanência;


Ø da fé para o indiferentismo religioso e, em seguida, para a apostasia;


Ø do espiritualismo para o sensualismo materialista;


Ø da moral ascética baseada no Evangelho para um hedonismo libertário de grande virulência antieclesiástica;


Ø do sentido coletivista — que visava ao bem comum — para um individualismo crescente, que descambará séculos depois nas democracias liberais;


Ø do objetivismo ontológico para o subjetivismo psicológico;


Ø do clericalismo fundado na supremacia espiritual do Papado para o laicismo de Estado, em suas várias conformações.


Em verdade, Bonifácio VIII é o último personagem de um tríptico papal que retrata fielmente a mentalidade do Medievo, no que tange às relações entre a Igreja e o Estado:


· o reformador Gregório VII (1020/1085) ensinara, em seus Dictatus Papæ, que o Romano Pontífice tem poder para eximir os súditos de qualquer nação da obediência a leis iníquas, e portanto da obediência a governantes tirânicos. Ele deu exemplo disto ao excomulgar e depor ninguém menos que o terrível e poderoso Henrique IV, sacro-imperador Romano-Germânico. “Em nome de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, e investido do Seu poder e autoridade, proíbo ao rei Henrique IV, que com inaudita soberba se lançou contra a Igreja, governar o reino da Itália e da Alemanha. Desobrigo a todos os cristãos do juramento de fidelidade que lhe prestaram e mando que ninguém lhe sirva como rei”. Em resumo: por ordem do Papa, devido às leis tirânicas, injustas e anticristãs vigentes naquele império, nenhum católico poderia obedecer ao rei, o que na prática foi o mesmo que depô-lo. Mas a história desse acontecimento extraordinário do pontificado de Gregório VII não é para este breve texto.


· Inocêncio III (1160/1216), cujo pontificado é um símbolo do que de mais alto e luminoso produziu a Idade Média — no tocante à consolidação da hierarquia sócio-política em que o Papa estava no cume da pirâmide, tendo abaixo de si príncipes e imperadores — postulara o seguinte: pode o Romano Pontífice, ratione et occasione pecatti, depor o rei e coroar outro, tendo em vista o fim último a que se destinam tanto os indivíduos como as sociedades: Deus.


· Bonifácio VIII propugnara que o poder espiritual da Igreja, dada a superioridade e transcendência do fim a que visa, que é o mesmo para todas as criaturas, pode e deve julgar o poder material se este se desvia, mas não pode ser julgado por ele. E que todas as criaturas racionais (de quaisquer religiões!) estão subordinadas ratione peccati ao Romano Pontífice.



Preâmbulos da crise bonifaciana


Como se verá adiante, não se trata de uma despótica teocracia universal que se imiscua em tudo — inclusive no que não lhe é devido intervir — como acusam historiadores modernos que ignoram completamente o que é a Igreja. Quem estuda os documentos do Magistério desses Papas sabe muito bem que os reis se submetiam ao Vigário de Cristo nos negócios que poderiam trazer danos espirituais aos indivíduos e às sociedades. E vale dizer que tal “poder” papal não era absoluto, no sentido de autocrático: o Romano Pontífice tinha acima de si a Cristo-Rei, cabeça invisível atuante misticamente na Igreja e no mundo — e neste contexto os reis, príncipes e imperadores eram os responsáveis pela salvaguarda do bem comum político, que formalmente não poderia divergir nem contrapor-se ao bem comum universal, cujo poder emana do alto.


O Papa e o imperador eram, pois, as duas cabeças que em harmonia governavam o hierarquizado mundo medieval, e se tal harmonia nem sempre foi um fato durante a Idade Média, ela foi sempre uma aspiração e um modelo para as sociedades e para os indivíduos. Um exemplo disso? O citado Henrique IV, ao ser excomulgado e deposto por Gregório VII, humilhou-se diante desse Papa, beijando-lhe os pés e penitenciando-se para receber a absolvição e não perder a coroa. Mas, homem tremendo que era, não se humilhou porque quis (como demonstram cabalmente as suas ações ao recuperar o cetro), mas sim porque os seus súditos simplesmente obedeceram ao Pontífice e deixaram de lhe prestar obediência. E o mesmo se pode dizer do rei Felipe II, de França, excomulgado por Inocênio III por abandonar a sua esposa, a linda dinamarquesa Ingeburga, para contrair segundas núpcias, à revelia do Papa, com Inês de Meraine. Na ocasião, durante 12 anos, quando Felipe chegava a qualquer cidade francesa os sinos não tocavam. Até que o rei obedeceu ao Papa, voltou para Ingeburga e foi perdoado, tirando a França da interdição que, por ordem do Pontífice, pesava sobre o país. O mesmo Inocêncio III mandou o rei espanhol Afonso IX separar-se da primeira e da segunda esposas, por razões de consangüinidade. O que Afonso IX fez.


Os Papas medievais sempre fizeram questão de deixar claro que o poder humano e o divino não se contrapõem, e portanto as leis eclesiásticas e as civis não têm entre si nenhum antagonismo, mas complementaridade; assim, quando a Igreja atuava na ordem temporal, tinha em vista o bem sobrenatural. Para explicar isso grandes teólogos do período lançaram mão de uma analogia: sendo a alma ontologicamente superior ao corpo, a Igreja, que governa as almas, será superior ao Império e a qualquer Estado, que governa a ordem material. Entre o poder do Papa e o do rei haveria, pois, relação semelhante à que existe entre o sol e a lua: esta tem expressivo influxo em seu âmbito, mas reflete a luz que recebe do sol — princípio superior.


Em resumo, o Papa exerceria a sua autoridade sobre o rei de suas formas: a) de modo direto nas coisas espirituais; e b) de modo indireto nas coisas materiais atinentes à moral e aos costumes (e, portanto, à ordem política), ensinando, admoestando, exortando, corrigindo, condenando, intervindo quando necessário.


Pois bem. Feito este preâmbulo, comecemos por dizer que a derrocada de Bonifácio VIII resultará historicamente, em primeiro lugar, no absolutismo monárquico. Um absolutismo de conformação extremamente nacionalista, na medida em que as nações, cada vez mais desvinculadas do Romano Pontífice, perderão o sentido de irmandade transnacional sob a liderança da Igreja que caracterizava o Medievo, malgrado as lutas pelo poder inerentes à condição humana no presente estado[2].


Neste contexto, o embate entre Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, rei de França, representa o encarniçado cabo-de-guerra entre duas concepções políticas antagônicas. De um lado, a sociedade hierarquicamente organizada na qual as leis positivas têm três propósitos fundamentais: tornar os homens virtuosos, como afirmava Santo Tomás; preservar o bem comum; e, acima de tudo, conduzir os homens a Deus, tendo por instrumento a Igreja — custodiadora magisterial da verdade do Evangelho, divinamente revelada. De outro lado, sociedades libertárias tendentes ao caos e à entropia, nas quais as leis representam, no melhor dos casos, um útil — porém incômodo — obstáculo à liberdade humana, confundida tristemente com a vertigem de poder oriunda da cupidez dos homens. Lei positiva sem vínculo com a lei eterna, e por esta razão fundadora do humanismo político.


A propósito, nas sociedades pós-medievais desvinculadas da hierática sombra do Magistério da Igreja, a lei logo descambará num formalismo jurídico (com a tentativa de recuperar alguns aspectos do Direito Romano, ainda na época de Bonifácio VIII, como veremos) e não mais buscará tornar os homens melhores nem ensiná-los o bem, mantendo a ordem pela obediência à lei enraizada nos costumes, como concebia Aristóteles, mas apenas tentará frear a desordem com placebos legislativos; não buscará preservar o bem comum, que, deturpado em seus princípios, se transforma numa quimera irrealizável; e não se ordenará à lei divina como a seu fim, dado o apartamento entre os planos material e espiritual, defendido, já na aurora do século XIV, por Dante Alighieri no livro De Monarchia, que permaneceu por mais de seiscentos anos no Index Librorum Prohibitorum, por óbvias razões magisteriais.


Estamos, pois, no vértice entre dois mundos: o católico e o liberal. Este último, como afirmara o ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior, só se tornou historicamente possível graças à perda, no terreno ético-político, da noção cristã de Summum Bonum e conseqüente dissolução da idéia de bem comum. Neste contexto, o atentado que, em 1303, o já idoso Bonifácio VIII sofre de homens a quem podemos muito bem chamar de inimigos da Igreja representa “a violenta reação da carne às duras exigências do espírito cristão”, frase que pegamos de empréstimo ao Pe. Álvaro Calderón — utilizada no livro A Candeia Debaixo da Alqueire para demarcar a oposição entre a Idade Média e o Renascimento, sendo este último norteado por um espírito de apostasia e revolta.


Por razões que veremos adiante, a agressão ao Papa também serve como símbolo do ataque à unidade da Igreja, nas perspectivas política e doutrinária. E as conseqüências disto se consumarão, totalmente, no decorrer dos séculos:


Ø no plano político, a fratura que se deu no atribulado pontificado de Bonifácio VIII produziu, de forma efetiva, os seus frutos dois séculos mais tarde, quando com a reforma luterana começou a perder-se a unidade cristã entre as nações sob a égide da Igreja. E como os fatos históricos afloram na ambiência que lhes serve de esteio, vale aqui dizer que a reforma luterana teria sido impossível sem os questionamentos ao poder papal que cresceram em progressão geométrica após o pontificado de Bonifácio VIII;


Ø no plano doutrinário, os frutos só estarão definitivamente maduros com a consagração do laicismo político no seio da própria Igreja, sete séculos depois de Bonifácio VIII com o Concílio Vaticano II. Na ocasião, o liberalismo é entronizado intra Ecclesiam, e, com relação a este ponto, faça-se um importantíssimo registro: não fosse a bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII — impecável do ponto de vista doutrinal e também em sua formulação —, a separação entre a Igreja e o Estado na forma da lei certamente teria acontecido séculos antes, e não somente no século XX! Durante séculos a Unam Sanctam foi a incômoda pedra no sapato do espírito liberal que primeiramente atacou no terreno político, depois dentro da própria Igreja.


Ditas estas coisas, frisemos que uma das táticas do modernismo que dominou a hierarquia da Igreja e os seminários a partir do Vaticano II é recontar a história eclesiástica na perspectiva da nova mentalidade: ecumenista, laicista, antiapostólica, moralmente laxa, humanista, naturalista, etc. É denegrir, sem o menor escrúpulo, os feitos da Igreja no passado e a memória de personagens — clérigos ou seculares — que a defenderam nos planos material e espiritual. Neste contexto, como diz o citado Álvaro Caldeón, o pedido de desculpas do Papa João Paulo II pelos “erros” do passado não é propriamente um mea culpa perante o mundo, mas sim um culpa vestra, ou seja: a culpa seria da supostamente autocrática Igreja medieval, que quase nada teria a ver com essa Igreja tão comodamente adaptada ao espírito mundano, com essa Igreja cuja mentalidade foi modificada durante o seu longo pontificado, com espalhafatoso aplauso midiático do mundo. O pedido papal de desculpas não é (reiteremos!) a assunção de uma culpa histórica, mas a acusação à Igreja do passado, cujos pressupostos foram “desconstruídos” por João Paulo II ao longo de vinte e sete anos, na teoria e na prática.


Pois bem, essa tática de recontar a história a partir de novas premissas eclesiais é aplicada de forma pertinaz a Bonifácio VIII — sem dúvida o Papa mais caluniado da história —, seja por inimigos internos ou externos da Igreja. E, dado o fato de que muito poucas pessoas recorrem às fontes primárias para sustentar os seus juízos históricos, até entre defensores da Tradição da Igreja hoje se encontram detratores deste notável Papa, infelizmente.


Assim, de Bonifácio VIII se diz — entre outras coisas — o seguinte:


Ø Foi ele o articulador da abdicação de seu antecessor, Celestino V. A propósito, antes de tudo vale dizer que Celestino V, ao tornar-se Papa, era um idoso monge apoiado por fanáticos franciscanos autodenominados de “espirituais”, adeptos do messianismo milenarista do herético monge cisterciense Joaquim de Fiore — condenado solenemente no IV Concílio de Latrão. Veremos em que sombrias circunstâncias se deu a canonização de Celestino V como Santo Confessor.


Ø Encarcerou o Papa renunciante de forma cruel, injustificável e insana, levando-o a morrer em condições desumanas — sob tortura física e psicológica. Alguns chegam a dizer que a cabeça de Celestino V teria sido partida ao meio, por ordem de Bonifácio VIII.


Ø Foi politicamente culpado pela ida do Papado a Avingon, e por quase criar um cisma.


Ø Proclamou documentos — como as bulas Clericis laicos e Una Sanctam — que se imiscuíam nas coisas seculares indevidamente, em razão de sua má-compreensão das relações entre a Igreja e o Estado.


Ø Foi um tirano opressor da liberdade política em várias nações européias.


Ø Exterminou cruelmente uma cidade inteira (Palestrina), levando à morte mulheres e crianças.


Ø Defendeu uma hierocracia universal, entendida de forma errônea por alguns cientistas políticos contemporâneos como “augustinismo político”.


Ø Dante o colocou no “inferno” em sua Comédia, e por razões justíssimas. A isto, mais à frente, além de explicarmos que Dante (cuja concepção política do livro De Monarchia foi condenada solenemente pela Igreja) não tem poder algum para colocar quem quer que seja no inferno real, mostraremos como o ódio do poeta a Bonifácio VIII se transformara numa patológica monomania. A propósito, como sói acontecer com os acusadores, com os caluniadores.


Veremos se estas e outras acusações contra Bonifácio VIII têm algum fundamento histórico, tomando por base três obras:


a) Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, famosa biografia de Luigi Tosti publicada em 1846. A obra foi reeditada recentemente e traz abundantíssima quantidade de fontes primárias. Ela pode ser lida por inteiro, numa antiga edição, neste link;


b) Historia de la Iglesia Medieval, do mencionado Ricardo García-Villoslada, escrita em meados da década de 50 do século passado. A propósito, Villoslada é também um pesquisador que traz à luz abundantes fontes primárias, sem as quais qualquer juízo histórico vira quase uma boataria;


c) Lives of the Popes. The Pontiffs from St. Peter to John Paul II, de Richard MacBrien, insuspeito professor de teologia da Universidade de Notre Dame. Digo “insuspeito” por ser um modernista da melhor cepa.


Por uma questão pedagógica, separaremos a nossa análise pelos tópicos acima, aos quais acrescentaremos outros, de acordo com a necessidade da explicação. Comecemos, pois, pela primeira dessas acusações e sigamos a ordem delas — sempre partindo dialeticamente de uma interrogação.


1- Articulador da abdicação de Celestino V?


Os acusadores imputam a Bonifácio VIII o crime de ser o malicioso articulador da abdicação de Celestino V — movido por ambições pessoais e políticas. Mas em que fontes se baseiam? Que documentos sustentam um juízo histórico tão terrível?


(continua)


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1-Não concordamos com os historiadores que pretendem levar à Idade Média até a queda de Constantinopla (1453), ou ao Descobrimento da América (1492), ou ainda à rebelião da reforma luterana (1517), pois estes acontecimentos são insuficientes para demarcar a mudança de mentalidade que é o divisor de águas entre as épocas medieval e moderna. Neste ponto estamos totalmente de acordo com Ricardo G. Villoslada, para quem o terminus ad quem da Idade Média é 1303, com a morte de Bonifácio VIII, embora divirjamos deste autor no que diz respeito ao conceito de hierocracia universal aplicado a este Papa.


2- Somos compelidos a registrar que as lutas intestinas pelo poder são encontráveis em absolutamente todas as épocas, desde a Antiguidade mais remota. E, como católicos, cremos que assim será até o final dos tempos, devido à mancha do pecado original. Na Idade Média, no entanto, havia uma contraforça espiritual que punha um freio (na medida do possível, é claro) à degradação humana: a Igreja e seu Magistério.

Da impecabilidade de Deus à pecabilidade humana (I)



Sidney Silveira

Veja-se acima um trecho de aula em que se aborda o tema do pecado. Primeiramente, a impecabilidade divina; depois, a do anjo (da qual já se postou o vídeo em que se fala do pecado de Lúcifer). Por fim, virá o pecado do homem no estado de inocência e, por fim, o do homem caído.

Nazismo e comunismo, irmãos siameses



Sidney Silveira

Postei o vídeo acima no Facebook, e vi que muitas pessoas não o conheciam. Julguei então interessante indicar este documentário também aqui no Contra Impugnantes. Ao apresentar a história da União Soviética, ele mostra o infernal parentesco entre nazismo e comunismo, cujas raízes totalitárias e criminosas são comuns. Entre as diferenças, está o fato de o nazismo ter sido forjado numa loja maçônica, a Thule, e seus principais propugnadores serem ocultistas da pior estirpe, como se mostra no vídeo para o qual eu pus um link noutro texto do Contra Impugnantes.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Gramática e barbárie



Sidney Silveira


A santa ranzinzice dos bons gramáticos serve aos usuários de qualquer idioma como balizadora do que se convencionou chamar de “norma culta”. E muito mais que isso: sem a gramática, como diz o prof. Carlos Nougué — que está finalizando o primeiro volume de suas Lições de Português, a ser apresentado no próximo ano —, a língua tende à entropia, à dissolução, à impermanência. Em certo sentido, a gramática é a pedra angular da cultura de uma nação, na medida em que uniformiza os conceitos mentais implicados no uso virtuoso do idioma, sem o qual não há filosofia, nem direito, nem literatura. Até ao jornalismo, hoje tão facilmente adaptável a novidades, tão fomentador de impropriedades e barbarismos, tão useiro em difundir o mau uso do idioma, faz falta o norte gramatical.


Em poucas palavras, sem o vernáculo, que a gramática busca preservar, não há idioma comum. Lembremos que vernaculum, como ensinava Napoleão Mendes de Almeida, provém de verna, vocábulo latino que aludia ao escravo nascido na casa do senhor — e de “nascido na casa do senhor” passou a palavra a significar “nascido no país” ou “próprio do país”. Defender o vernáculo é, pois, defender a permanância da cultura de um país, a sua propriedade fundamental, a tradição sem a qual um povo perde o seu caráter, perde as marcas que o distinguem no tecido da história.


Se hoje os nossos jovens não conseguem ler sequer uma página de Machado de Assis ou do Padre Antônio Vieira sem quase ter uma concussão cerebral, é porque os gramáticos de alguma maneira naufragaram em sua tarefa. Um exemplo disto nós o podemos dar na recente e, ao nosso ver, absurda reforma ortográfica da língua portuguesa, que teve num gramático — Evanildo Bechara — um de seus defensores e fomentadores, estudioso da língua omisso com relação a mudanças tolas e injustificáveis que recusamos aceitar neste modesto espaço na internet, embora no cotidiano de nosso trabalho sejamos obrigados a adotar a intervenção imposta pelo Estado luliano (logo quem, Pedro Bó!) nos usos da língua pátria.


Se por trás das políticas de destruição do idioma, no Brasil e noutros países, está o objetivo de debilitar as identidades nacionais com o intuito de preparar o governo global — cujos tentáculos começam a nos alcançar —, não sabemos. Mas sabemos que, neste momento dramático da história humana, é preciso criar em cada país ilhas civilizatórias para preservar o que for possível, e isto passa necessariamente pelo DNA da língua, que é a gramática. Trabalho análogo ao que os monges irlandeses fizeram entre os anos 500 e 800, entesourando a tradição literária e cultural cristã em meio à barbárie crescente.


Sem a gramática, a língua seria um perpétuo e caótico devir, ao modo heraclíteo, seria impermanência pura, como diz o citado Prof. Nougué. A gramática — e não a lingüística — lhe garante a permanência na mudança sem a qual, como dissemos, nenhuma nação possui identidade própria.


Encerramos este breve texto destacando que tudo o que é usado por muitos, ao longo do tempo e em diferentes lugares tende naturalmente à entropia, se não existe um elemento normatizador — definidor de padrões comuns que, embora aceitem mudanças adventícias e acidentais, preservam o essencial, o quid est.


E este é o papel da gramática como preservadora da civilização. É seu papel de contenção, de dique à barbárie.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Estado de saúde do Prof. Nougué


Sidney Silveira

Como a coisa já está "rolando" pelos Facebooks da vida, resolvi publicar uma breve nota no Contra Impugnantes, para tranqüilizar os ânimos: de fato, ao fazer alguns exames médicos, o Prof. Carlos Nougué descobriu há uma semana que sofreu um pequeno infarto — o que afetou o funcionamento de parte do seu coração. Ele está em casa e, provavelmente, precisará diminuir o ritmo feérico de trabalho em que se mantém há anos. Hoje ele irá ao cardiologista. Mas reitero: ele está bem, dentro do possível. Darei notícias assim que as tiver.

Rezemos pelo total restabelecimento do meu querido amigo, verdadeiro irmão em armas.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Um santo Natal para todos



"E onde podereis depor este voto a favor da renovação da sociedade com mais tranquila segurança e confiança e com fé mais eficaz senão aos pés do ‘Desejado de todas as nações’, reclinado diante de nós no presépio, com todo o encanto da sua doce humanidade de menino, mas também com o enternecedor atrativo da sua incipiente missão redentora? Esta nobre e santa cruzada a favor da purificação e renovação da sociedade, em que lugar pode ter consagração mais expressiva e estímulo mais eficaz do que em Belém, onde, no adorável mistério da encarnação, apareceu o novo Adão, em cujas fontes de verdade e de graça tem que buscar a humanidade a água salutar, se não quiser perecer no deserto desta vida? ‘Todos recebemos de sua plenitude’ (Jo 1,16)".



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A graça, saúde da alma — a psicologia católica de Martín Echavarría

Sidney Silveira


Os hábitos operativos bons a que chamamos virtudes predispõem a natureza humana a alcançar o optimum. Nas palavras de Santo Tomás, são “o complemento das potências”, ou aquilo que as leva a atualizar com perfeição os atos aos quais tendem — daí as virtudes serem chamadas propriamente de força (“unde et vis dicitur"[1]). Neste sentido, a humildade é a força que leva alguém a refrear o apetite da própria excelência, chamado soberba; a temperança é a força que leva alguém a conter os desvios ou tendências más de seu temperamento, e a tal continência se dá o nome de autodomínio. Em todos os casos, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades em nível de excelência, como se afirmou noutro artigo.


Neste contexto, o homem virtuoso é alguém que logra habitualmente agir bem, mas não de forma súbita, não por alguma espécie de milagre, e sim porque desenvolveu em sua psique as forças necessárias para manter-se equilibrado — tanto quanto possível — diante dos problemas e desafios que a vida lhe impõe. Isto por um esforço continuado que pode levar anos. Em palavras simples: centrando-se, ele mantém a alma sã, o que significa conter os maus impulsos e alimentar os bons.


Ignorar os traços do caráter virtuoso é um dos dramas de várias correntes da psicologia contemponânea que, buscando explicar toda a sorte de patologias humanas, não conseguem curar as enfermidades psíquicas (ou seja: as dores da alma), até porque fundamentalmente não crêem no estado de sanidade. Mas, como ensina o psicólogo tomista Martín Echavarría, o homem virtuoso — tomado como modelo a ser buscado na práxis da psicologia — tem algumas marcantes características:


Ø O centro de sua personalidade está constituído pela luz da razão, que guia o seu caminho com objetividade: é prudente.


Ø Ele não possui impulsos imoderados na afetividade. Pelo contrário: é temperado e humilde.


Ø Não se retrai diante de um bem árduo a conquistar, nem se deixa levar pelo temor ou pela tristeza diante dos perigos. Quer dizer: é forte. E, com essa fortaleza, aspira a coisas grandiosas e se move em direção a elas com segurança e confiança. É magnânimo.


Ø Ele ordena a ação não apenas para o seu próprio bem individual, mas tem em vista o bem comum — de acordo com a lei natural e a lei civil. É equitativo em suas relações com outras pessoas, e portanto é justo. Ora, exatamente por ser justo ele é reverente para com a fonte dos todos os bens (Deus), bem comum de todo o universo: é, pois, religioso[2].


Ø É um sujeito capaz de estabelecer relações interpessoais profundas, amando aos outros verdadeiramente. É, portanto, capaz de amizade[3].


Não nos estendamos nos exemplos, o que seria contraproducente. Fiquemos com o fato de que as virtudes, ao se atualizarem, eliminam os vícios contrários e, assim, vão curando a alma e gerando nela um profundo senso de realidade. Isto leva o homem a ter maior consciência de si e, por conseguinte, das coisas e pessoas que o circundam.


Por esta razão afirma Echavarría que o homem ao qual podemos chamar de normal é prudente, temperado, humilde, forte, confiante, justo, religioso, capaz de estabelecer autênticas amizades e, portanto, amar — experimentar um êxtase a partir da inexpugnável intimidade de sua alma. Faça-se apenas a ressalva de que normal, aqui, não é o resultado de uma análise estatística dos comportamentos humanos em determinado grupo, pois se 99% das pessoas de uma comunidade são taradas e assassinas, isto não quer dizer que sejam “normais”. Normal, na perspectiva de Echavarría, significa o estado saudável da alma que predispõe à felicidade, embora não se identifique com ela simpliciter [4].


Somente um psicólogo tomista poderia estender com profundidade a práxis da psicologia a algo que está fora e acima da alma, tendo em vista que o bem ao qual está destinado o homem (e portanto a alma, que é seu constitutivo formal próprio) é sobrenatural. Assim, embora as virtudes éticas e dianoéticas possam ser chamadas analogicamente de “saudáveis”, somente a graça pode com propriedade ser considerada saúde da alma. Isto por ser ela o hábito entitativo que dispõe a alma à recepção do bem supra naturam, Deus, fim último de todas as criaturas. Neste sentido, diz Echavarría, são é, exclusivamente, o santo, quer dizer, o que recebeu a sanidade por meio das virtudes teologais infusas.


Em resumo “a saúde anímica em sentido estrito acontece por meio uma vida santa ou que tenda à santidade”, como ensinava o psicólogo católico Rudolf Allers, uma das referências de Echavarría e mestre de Viktor Frankl, mas bastante superior a este, como se torna evidente pelos muitos apontamentos arrolados por Echavarría em seu La Práxis de La Psicología. Seja como for, a infusão das virtudes teologais representa, em termos práticos, a ação terapêutica da graça na alma do homem, e embora o psicólogo católico não tenha potência para subministrar a graça, porque não é sacerdote, pode e deve no entanto trabalhar para predispor a alma à recepção dessa virtude infusa por Deus.


Não nos enganemos: Echavarría não confunde de maneira alguma psicologia com teologia, mas sabe perfeitamente que o juízo último sobre todas as coisas das quais se ocupa a psicologia pertence à teologia[5]. Assim, mesmo ao centrar-se em aspectos naturais atinentes à alma, a psicoterapia não pode lograr sua cura sem o auxílio da graça. Isto porque “sem a graça, não sabemos o que é a normalidade plena”[6].


É para nós uma grande alegria divulgar no Brasil um autor da estatura de Martín Echavarría. Esse genial psicólogo e filósofo católico está construindo com o seu vigoroso trabalho uma obra monumental e única — que certamente ainda dará muitos frutos para o estudo da psicologia nas próximas décadas.


Em breve, divulgaremos a íntegra do vídeo de sua palestra no evento “Santo Tomás, médico da alma”, que tivemos a honra de organizar.



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1- Santo Tomás, Quaestiones De Virtutibus in communi, a.1.


2- Não nos custa lembrar que a religião é o primeiro (e principal) ato de justiça do homem para com Deus, segundo o Aquinate.


3- Cfme. Echavarría, Martín. La Práxis da Psicologia y sus Niveles Epistemológicos según Santo Tomás de Aquino, Editorial Ucalp: 2009. p. 332.


4- Em resumo: a felicidade não consiste em ser virtuoso, embora nesta vida a virtude seja um pré-requisito para o estado de felicidade. “A felicidade perfeita só pode estar na visão da essência divina” (Santo Tomás, Suma Teológica, I-II, q. 3, art. 8, resp.).


5- Echavarría, Martín. Op. cit., pg. 700.


6- Echavarría, Martín. Op. cit., pg. 701.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Colégio São Bento e Santa Escolástica, do Mosteiro da Santa Cruz, é reaberto em alto estilo


Carlos Nougué


[em nome do Mosteiro da Santa Cruz e do SPES]

O Colégio São Bento e Santa Escolástica, do Mosteiro da Santa Cruz (Nova Fribugo/RJ), foi reaberto e começará a funcionar novamente no ano que vem, de início apenas com o ensino fundamental (o antigo primeiro grau ou primário), mas agora em alto estilo.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Evento "Santo Tomás, médico da alma": certificados da SBFM prontos!


Sidney Silveira


De volta ao Brasil após um ciclo de conferências em diferentes cidades espanholas — e de passagem pelo Rio de Janeiro por estes dias —, o Prof. Ricardo da Costa trouxe-me os certificados da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (SBFM) para os participantes do evento "Santo Tomás, médico da alma", que ficaram muito bonitos. Peço aos que residem fora da cidade do Rio de Janeiro e que estiveram presentes naquele agradável dia de palestras o seguinte: enviem para o email eventotomista@gmail.com o endereço completo (incluindo o CEP), para postarmos o certificado. Aos que moram no Rio, basta mandar uma mensagem para sidney@edsetimoselo.com.br; entregarei pessoalmente.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Economia e moral: é a usura lícita?

Sidney Silveira

Depois que Max Weber expôs, em 1904, a tese de que o êxito do capitalismo se deveu às atitudes religiosas propiciadas pelos reformadores do século XVI, concretamente os da linha calvinista, muita água passou debaixo da ponte. O fato é que a sua famosa tese levou incontáveis teóricos a dar por líquida e certa a idéia de que o protestantismo favorece a instauração de sistemas econômicos baseados na “liberdade”, ao passo que o Catolicismo favoreceria os sistemas “autoritários”, fechados, “estatais”. Como não poderia deixar de ser, a tese de Weber teve especial acolhida no mundo anglo-saxão, embora hoje sejam facilmente encontráveis — mesmo nos países de fala inglesa — estudos que criticam os seus pressupostos.


A primeira conseqüência da grande disseminação do livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber foi o quase total esquecimento da produção da Escola de Salamanca no século XVI — ou seja: a dos tomistas espanhóis da chamada “Segunda Escolástica”, contemporânea do Concílio de Trento. Um dos primeiros a chamar a atenção para isto foi o insuspeito economista Joseph A. Schumpeter, que em sua História da Análise Econômica dedica um capítulo aos doutores domincanos desse período, embora de forma bastante superficial. É contudo digna de nota a conclusão de Schumpeter a certa altura do livro: com esses estudiosos católicos do século XVI a economia conquistou existência autônoma. E mais: são eles os fundadores da economia científica!


Um desses tomistas é Pedro Fernández, teólogo tridentino, membro — juntamente com o genial Domingo Bañez — da Escola de Salamanca em seu momento de maior pujança intelectual: daquela época, além de Bañez, citem-se Melchor Cano, Pedro de Sotomayor, Bartolomé de Medina e Domingo de Gusmán como estudiosos da obra de Santo Tomás que se transformaram em catedráticos em Salamanca e deixaram vários escritos importantes sobre temas diversos. Além, é claro, de Francisco de Vitoria, falecido quando esses teólogos estavam começando a sua trajetória.


Não é o caso de se fazer neste texto uma valoração sobre cada um desses escolásticos da época tridentina — alguns dos quais se afastaram do espírito e da letra da síntese magistral do Aquinate em pontos capitais. Importa-nos chamar atenção para o fato de que se trata de filósofos e teólogos cuja obra em temas que hoje chamaríamos de “econômicos” tem extraordinário alcance. É este justamente o caso de Pedro Fernández, que ocupou vários cargos magisteriais a pedido pessoal do Papa Pio V e foi conselheiro de Santa Teresa de Ávila em assuntos referentes à reforma do Carmelo, além de reitor da Universidade de Salamanca.


Um dos seus escritos é o Comentário à Suma Teológica (II-II, questões 77 e 78), publicado recentemente em edição bilíngüe pela EUMSA, com excelente apresentação de Teodoro López e Idoya Zarroza Huarte. Faz ali Pedro Fernández uma profunda análise sobre um dos tópicos mais discutidos na obra do Doutor Comum: a licitude ou ilicitude dos contratos de usura, significando este termo a cobrança de valores monetários pelo uso do dinheiro emprestado. É mais ou menos o que hoje entendemos por contrato de mútuo, em que credor e devedor acordam o pagamento de juros sobre um empréstimo x de dinheiro. Aqui, trata-se daquilo que esses escolásticos chamavam de bens fungíveis, ou seja, que se consomem no primeiro uso pelo intercâmbio com outras coisas, ou com dinheiro mesmo. Em poucas palavras, fundamentalmente o dinheiro seria um tipo de bem que não produz outra utilidade além do seu próprio uso, daí a sua “fungibilidade”.


No parecer do Aquinate, a bem da justiça, nos contratos de mútuo que regulam os empréstimos de bens fungíveis não se deve cobrar valor algum pelo uso da coisa emprestada, pois isto configuraria claramente pecado de usura. Não quer isto dizer que não reconheça o Santo Doutor outra finalidade possível para o dinheiro, como a das transações comerciais em que ele tem uma utilidade tal que é possível lhe estimar um preço. A aceitação do comércio como atividade lícita e socialmente benéfica, a propósito, fez o Angélico afastar-se de Aristóteles neste ponto, aceitando a usura (nos termos acima definidos) em alguns casos pontualíssimos. Ocorre o seguinte: como para o Aquinate seria uma verdadeira aberração separar as questões econômicas do horizonte moral em que se dão os atos propriamente humanos, importava-lhe antes de tudo indagar sobre os princípios morais implicados nesse tipo de transação econômica.


Para justificar a licitude da usura em alguns casos — sempre tendo no horizonte a tese do mestre medieval —, alguns dominicanos da Segunda Escolástica recorrem a cinco pressupostos:


> O dannum emergens: a compensação do dano monetrário que o credor sofre em virtude do empréstimo que fez;


> O lucrum cessans: o ganho que o credor teria, se não tivesse emprestado o dinheiro;


> O periculum sortis: o risco de não recuperar o dinheiro emprestado;


> A poena conventionalis: o estabelecimento de uma cláusula que permita ao credor exigir uma quantidade de dinheiro, a título de mora, se o empréstimo não é pago no tempo acordado entre as partes;


> O titulus legis civilis, que se refere à legitimidade de um interesse razoável fixado na lei civil.


Santo Tomás não chega a tal casuística. E, no tocante especificamente ao lucrum cessans, argumenta o Aquinate que ele é por si ilícito porque “uma compensação por dano baseada no que já não se lucrará com o dinheiro emprestado não pode ser estipulada em contrato, dado que não se pode vender o que ainda não se possui e cuja aquisição poderia ser impedida por uma multidão de outros motivos”. Isto significa simplesmente o seguinte: o pagamento de compensações monetárias a título de lucro cessante se baseia, entre outras coisas, na mera pressuposição de ganhos certíssimos no caso de o empréstimo não ser feito. Isto para Santo Tomás seria uma caução indevida, entre outras coisas por ser uma cobrança atual baseada em algo que está apenas em potência.


A propósito da usura em linhas gerais, vejamos a famosa passagem da Suma na qual o Aquinate diz o que transcrevemos abaixo, após recorrer ao livro do Êxodo — segundo o qual “se emprestares a alguém do meu povo, a um pobre que vive ao teu lado, não o fustigarás como um cobrador, nem o oprimirás com juros” (Ex. XXII, 25):


Receber juros por um dinheiro emprestado é por si injusto, pois [neste caso] se vende o que não existe, e isto constitui uma desigualdade manifestamente contrária à justiça. Para evidenciá-lo, devemos considerar que o uso de certos objetos se confunde com o seu consumo. Consumimos vinho utilizando-o como bebida, e o trigo, como comida. O uso de tais coisas não se deve separar de sua própria realidade, pois a quem se concede o uso se concede o próprio objeto. Por isso, o empréstimo dessas coisas transfere o domínio sobre elas. Quem pretendesse vender o vinho separadamente do uso dele venderia a mesma coisa duas vezes, ou venderia o que não existe. Portanto, pecaria manifestamente por injustiça. Pela mesma razão, comete injustiça quem empresta vinho ou trigo exigindo [duas] compensações: uma, a restituição da própria coisa; outra, o preço do seu uso, chamado usura (aliam vero pretium usus, quod usura dicitur). Por outro lado, há coisas cujo uso não se confunde com o seu consumo. Assim, o uso de uma casa consiste em habitá-la, não em destruí-la. [Aqui] Pode-se fazer uma cessão distinta do uso e da propriedade. (...). Mas o dinheiro foi principalmente inventado, segundo o Filósofo, para facilitar as comutações, e assim o uso próprio e principal do dinheiro é ser consumido ou dispendido, pois se gasta nas transações. Por isso, é ilícito receber um preço pelo uso do dinheiro emprestado, que se chama usura. E como se está obrigado a restituir o que é injustamente adquirido, está-se obrigado a restituir o que foi recebido como usura”. (Suma, II-II, q. 78, resp.)


Como se trata de “matéria opinável” do ponto de vista do Magistério da Igreja, não é nenhum pecado capital para um católico divergir do Doutor Comum neste tópico, e é o que faz Pedro Fernández corajosamente, pois esta não era uma posição majoritária no seu tempo. Argumenta o teólogo salmantino que o dinheiro investido em um negócio, por exemplo, tem maior valor que o dinheiro não investido, razão pela qual quando um comerciante empresta a alguém um dinheiro que retirou do seu negócio, deixando com isto de obter os lucros inerentes ao negócio, é lícito que cobre por lucros cessantes, o que não configuraria usura. E aponta outros casos em que a cobrança de juros seria lícita.


Seja como for, todos esses grandes teólogos tinham em vista algo que passa totalmente ao largo do tecnicismo econométrico hoje encontrável em teses de economistas das mais diferentes linhas: a ganância humana. Ganância, a propósito, oriunda do pecado original. Ciente disto, mesmo nos casos em que há justificativas para o contrato de usura, Pedro Fernández salienta que ele é perigosíssimo e pode viciar-se por vários motivos, e em várias circunstâncias.


Eis algumas delas:


> Por parte da coisa, quando se vende uma coisa de per si não vendável (caso dos bens espirituais);


> Por parte do vendedor, nos casos em que estes estejam proibidos devido à sua condição (por ex.: religiosos de ordens mendicantes);


> Por parte do comprador, quando este compra algo que não pode adquirir (por ex.: um menor que compre cachaça), ou, se adquire, é para usos ilícitos ou contra o próximo;


> Por parte do lugar, se se vende algo dentro de uma igreja (si fiat in ecclesia);


> Devido ao tempo, se a venda tem lugar em dias santos;


> Devido ao modo, quando não é ordenado pela reta razão, caso dos contratos cujos termos extrapolam os limites da justiça;


> Devido ao fim, se se vende a coisa com um fim intrinsecamente mau (por ex.: material de curetagem para a prática de aborto).


Todas essas considerações parecerão extemporâneas ou anacrônicas para qualquer economista do nosso tempo que não tenha boa formação católica. Seja como for, vale registrar o seguinte: para Santo Tomás, acima de quaisquer casuísticas estão dois fatores preponderantes: a usura é um ato contrário à caridade e implica uma desconfiança na Providência Divina.


Foi isto o que, há uns cinco anos, tentei explicar a um amigo abastado que me emprestou uma quantia razoável cobrando-me juros mais que razoáveis — o que aceitei devido à minha penúria proverbial e à necessidade circunstancial de pôr as mãos naquele dinheiro. Na ocasião, eu me questionei se não seria pecado aceitar o dinheiro naquelas condições, e agora confesso sentir certo alívio ao reler na Suma que receber empréstimo em condições usurárias é lícito quando se trata de socorrer as necessidades próprias e alheias, mesmo sendo pecado para quem empresta. E a minha urgência era, então, urgentíssima.


Em matérias tão suscetíveis a gerar polêmicas, como esta, as circunstâncias históricas devem ser consideradas e postas à luz dos princípios que regem os atos propriamente humanos, ou seja, os que nos distinguem de todos os outros animais na escala zoológica. No caso de que se trata, se pensarmos que hoje toda a economia mundial é, no sentido escolástico, usurária, mesmo que não cheguemos a uma resposta definitiva ao problema devido à dificuldade de materialmente ter acesso a todos os dados, vale recorrer à imagem de que o usurário é muito, muito parecido com o personagem do Evangelho a quem o patrão perdoou uma grande dívida, mas que depois foi cobrar do seu colega uma dívida irrisória...


Noutra oportunidade, voltaremos ao tema.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A ciência política segundo Tomás de Aquino



Sidney Silveira

Eis, acima, um trecho de aula em que se fala da ciência política segundo o Aquinate. Ou seja, da política como ciência prática arquitetônica que estuda o governo da multidão em ordem ao bem comum. Bem, como no vídeo se pega uma parte em que há a frase "O Estado é natural", vale remeter os leitores à origem natural do Estado segundo Santo Tomás, para colocar as coisas em seu devido contexto.

Ofuscação (outra pequena estória)

Ofuscação


A Elias Canetti



Uma torrente incoercível de imagens acossa a mente de Plácido, sugerindo-lhe agir de imediato. Em verdade, tudo ali parece contribuir para a sua recente e súbita tomada de decisão: a incongruência deste corredor vazio, a lâmpada defeituosa que acende e apaga em ritmo pusilânime, a porta às escâncaras no final do caminho, a música que atravessa as paredes e lhe agride os ouvidos com uma melodia descompassada, vinda sabe-se lá de onde. De forma aparentemente inexplicável, estes e outros fatores se lhe afiguram como um chamado ao qual ele não pode ser indiferente e perante o qual não deve estagnar, como acontece com as pessoas cuja vontade se tornou enfermiça, tolhedora da ação. A de Plácido, ao contrário, alcança um estonteante ápice e será difícil prever as conseqüências do que nascerá da força desse querer.


O homem caminha esgueirando-se pelos cantos, com as mãos retesadas e a menina dos olhos a se movimentar num frêmito oscilante. É como se por este pequeno orifício de diâmetro regulável, situado belamente entre a córnea e o cristalino, vazasse mais luz do que a retina pode suportar, dado o descomunal esforço de Plácido para aguçar a vista e pôr às claras qualquer coisa suspeita. Seja como for, nada agora parece interpor-se entre ele e o seu objetivo imediato. Nada parece ser capaz de aplacar o medo solene que o arroja a fazer a coisa necessária, de acordo com o seu momentâneo parecer. A esta altura, nem mesmo o esgotamento nervoso que torna os seus músculos pesados e doídos o fará mudar de resolução. Com tal pensamento ele vai ultrapassando as diferentes entradas desse amplo corredor, em busca da porta final.


Talvez por uma espécie de êxito fraudulento da imaginação, Plácido vê projetadas no chão algumas sombras esguias de pessoas que parecem ensaiar movimentos ritmados, e isto o faz diminuir o passo ainda mais. Haveria nele algo da coragem onírica com a qual uma pessoa enfrenta inimigos inexistentes, mas o fato é que a realidade estava à sua frente dando-lhe evidências inequívocas, e isto era suficiente para ele preparar-se com a diligência exigida pela situação. Num esforço para certificar-se da própria sanidade, ele abre e fecha os olhos diversas vezes para ver se essas sombras são reais ou coisa da sua cabeça, mas lhe falta tempo para aderir a conclusões. Por isso continua sem olhar para trás, caminhando com as costas praticamente coladas à parede, como lhe sugere a prudência.


Vozes sussuradas começam a ser ouvidas por Plácido atrás de uma das portas fechadas, pois da que está aberta ao final do corredor a única coisa perceptível são as velas a compartilhar a sua trêmula e escassa luminosidade com a defeituosa, porém potente, lâmpada elétrica que ele divisara ao chegar ali. Não há como discernir o que conversam em segredo essas pessoas, mas o tom geral parece de sarcasmo. Há no lugar um rumor sibilino semelhante a panos que roçam nalguma superfície áspera, mas Plácido em verdade jamais saberá ao certo do que se trata, e vai prosseguindo o seu trajeto sem fazer da incerteza um impedimento. Na vertigem dos pequenos mistérios o homem avança em seus objetivos e temores, com as lacunas sendo preenchidas pela confiança, que são vestígios aos quais se apega a vontade.


Plácido estava na metade do caminho quando a lâmpada problemática apagou-se de vez, deixando o corredor iluminado apenas pela réstia de claridade oriunda da única porta ali aberta. Isto de imediato o fez caminhar com atenção para não tropeçar em algo no ambiente tornado escuro. Os seus passos, antes inaudíveis, passam a emitir um som que o incomoda, e ele então começa a andar na ponta dos pés para não ser flagrado por algum possível espectador. Aquela tênue luz de velas mantém o padrão do seu otimismo, mas ainda não é hora de dar por certa a vitória porque, em suas conjecturas, há obstáculos a superar, como dá mostras o elevador que passa novamente pelo andar trazendo a possibilidade de alguém surgir repentinamente, o que poria tudo a perder.


Não havia testemunhas ao engendrar-se o plano, mas neste momento até os objetos inanimados parecem invadir a consciência de Plácido, o que lhe traz certa angústia. Isto no entanto perde a importância quando ele se aproxima da derradeira porta, por cuja abertura vê a biblioteca. Ainda a certa distância, sua impressão é de simetria, ordem, harmonia, apesar da pouca luz ambiente que incide sobre as grossas prateleiras de jatobá, acima das quais repousam livros de lombadas gastas. Essas imagens subitamente desaparecem quando Plácido dá os seus últimos passos por aquele corredor, e não erraria quem o tomasse por sonâmbulo no momento em que chega à porta e recebe um livro das mãos do homem de longas barbas e hábito branco e preto, que estava à entrada sorrindo com enigmática expressão.


Ao abrir com avidez o antigo volume, Plácido é acometido de um formigamento que ameaça paralisar as suas mãos, obrigando-o a fazer força para folhear as primeiras páginas. Neste momento um espasmo facial lhe contrai o rosto e dificulta a leitura, mas não importa, ele porá fim à sua busca custe o que custar, livrando-se da desconfiança com a qual desde sempre se escondera de si mesmo.


Quando Plácido intui a força do verbo que dera vida àquele livro, a sua vista é tomada por cegante claridade, e ele só consegue captar o sentido das coisas presentes, passadas e futuras no instante em que o seu corpo tomba, chocando-se inanimado contra o chão empoeirado.


(Sidney Silveira)