A Ricardo Dip
Sidney Silveira
“Sumo direito, suma injustiça”, diz o brocardo latino referindo-se ao formalismo legalista que, dando excessiva ênfase à letra, deixa totalmente de lado o espírito da lei.
Por melhor formulada e por mais afim à lei natural que seja, nenhuma lei humana é perfeita ao ponto de materialmente abarcar a totalidade dos casos possíveis, o que segundo Tomás de Aquino acontece não por deficiência dos princípios norteadores da lei, mas devido ao caráter contingente e imprevisto das relações humanas. De acordo com o grande mestre medieval, o legislador humano, ao contrário do divino, não tem como prever todos os casos singulares, razão pela qual o cumprimento da lei deve ser levado a cabo à luz dos bens a que ela visa, ou seja, deve-se sempre buscar, acima de tudo, a intenção do legislador para que a justiça não corra o risco de se perder.
Uma lei pode ser deficiente em si mesma, seja por má-formulação, seja pela dificuldade intrínseca das questões acerca das quais versa; ou acidentalmente, pela inconveniência ou injustiça que a sua estrita aplicação pode gerar. No primeiro caso, conforme costumava salientar o grande tomista da Escola de Salamanca Domingo de Soto, é necessária a interpretação, a ser feita pelas autoridades judiciárias; no segundo caso, é necessário aplicar a virtude da epiquéia, forma superior de equidade que discerne as excepcionalidades para realizar a justiça, mesmo quando seja necessário dispensar alguém do cumprimento da lei.
Vejamos o que diz o Aquinate sobre a falibilidade das leis humanas:
“Embora em alguns casos possa haver um defeito proveniente da observância da lei, isto por si não faz com que ela deixe de ser reta. Tal defeito não provém da lei razoavelmente formulada, nem do legislador que atuou conforme a matéria de que se trata, mas de uma deficiência proveniente da natureza das coisas. Assim é a matéria dos atos humanos, a qual não se dá universalmente de um só modo, visto que em alguns casos se diversifica. Portanto, devolver um bem é lícito em si e na maioria dos casos é bom, porém pode eventualmente ser algo mau, como quando se devolve a espada a um louco furioso”.[1]
Todo bom direito deve, pois, fugir ao legalismo estrito e ao literalismo, duas pragas que corroem os atos da justiça devido ao automatismo de caráter formalista na observância da lei. Digamos isto de outra maneira: as palavras são o corpo da lei; a intenção do legislador é a alma. Pôr ênfase no corpo em detrimento da alma é tentar fazer viver um cadáver. Quando, pois, as decisões judiciais se desvinculam da intenção do legislador, invariavelmente acontecem injustiças.
Voltaremos a isto.
No recente e notório caso futebolístico em que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) cumpriu o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, retirando os pontos de Flamengo e Portuguesa na última rodada do campeonato brasileiro, por atuarem irregularmente com jogadores suspensos, a aplicação das penas estava totalmente de acordo com a letra e também com a clara intenção do legislador (no caso, de quem formulou o Código). A unanimidade nas duas instâncias do STJD ilustra de maneira cabal a insustentabilidade das teses dos advogados de Flamengo e Portuguesa. Quanto ao Flamengo, particularmente, vazaram na imprensa e-mails do seu advogado no âmbito interno do clube, cujo teor era nada menos que a confissão expressa do erro de escalar um jogador sem condições de jogo.
Agora, o jurista Ives Gandra Martins aparece na grande imprensa para defender a tese de que o STJD “errou”, como em recente entrevista ao canal Sportv. A justificativa usada por ele é de um simplismo atroz — além de passar ao largo das irregularidades cometidas, como se estas fossem uma abstração totalmente alheia aos fatos. O Dr. Gandra menciona a subordinação do regulamento do Brasileirão (o referido Código Brasileiro de Justiça Desportiva) ao Estatuto do Torcedor, sob a alegação de que este último é lei federal. O problema de sua “tese” não reside nesta afirmação, em si correta, mas nas premissas ocultas e nas omissões espetaculares que contém. Sejamos econômicos nos exemplos.
Uma omissão:
> A Constituição Brasileira, em seu artigo 217, garante a “AUTONOMIA das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à organização e funcionamento” de suas atividades. Em breves palavras, no caso de que se trata, a subordinação do Código de Justiça Desportiva ao Estatuto do Torcedor não é por assim dizer "automática" pelo fato de este último ser lei federal, visto que a CBF e o STJD gozam de AUTONOMIA para organizar torneios (como o campeonato brasileiro de futebol) e torná-los exeqüíveis por meio de regras próprias, as quais, no caso em tela, foram aceitas por todos os participantes da competição.
Tal autonomia só se perderia — de acordo com o que se depreende do próprio artigo 217 da Constituição Federal, num de seus incisos —, se o Poder Judiciário decidisse em caráter definitivo algo contrariamente à decisão do STJD. Mas isto ainda não aconteceu! Foram concedidas liminares na Justiça Comum, que, a propósito, em sua imensa maioria, já foram cassadas. Reiteremos isto com outras palavras, a título de mero procedimento mnemônico: a competência da Justiça Desportiva para o caso de que se trata está garantida pela Constituição Federal, a menos que a Justiça Comum decida definitivamente o contrário.
Mas, Dr. Gandra, onde está mesmo o “erro” do STJD ao aplicar o regulamento?
Outra omissão:
> Na prática, não houve propriamente conflito entre o Estatuto do Torcedor e o Código de Justiça Desportiva no assunto de que se trata. Isto porque, ao falar de “publicidade”, o Estatuto do Torcedor não se refere à publicação dos fatos julgados, mas se refere, sim, ao fato de as sessões serem públicas, sem segredo de justiça. E não nos esqueçamos de que, no artigo 133 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, está definida a total desvinculação entre os efeitos IMEDIATOS da decisão e o ato de notificação. Mas reiteremos: em momento algum o Estatuto do Torcedor diz que a punição só vale a partir duma publicação. Apenas diz que a decisão do tribunal tem de ser tornada pública.
Aqui, a má-formulação do texto leva-nos a um dos casos acima citados em que uma lei pode ser deficiente, pois abre uma brecha; daí a necessidade de buscar-se a intenção do legislador. Mas esta, certamente, não é a de sobrepor-se aos atos dos órgãos desportivos competentes ao seu bel-prazer e indiscriminadamente, pois se assim fosse a Constituição Federal não garantiria a autonomia acima citada.
A opinião do Dr. Ives Gandra não tem respaldo nos textos e pressupõe uma colisão onde na verdade ela não existe.
Se valesse a sua tese, cairíamos no formalismo legalista que dá total razão ao ditado:
“Summum ius, summa iniuria”.
Em tempo: O Fluminense deve ficar atento a quaisquer manobras de "virada de mesa", como as que teses semelhantes à do Dr. Gandra acabam por incentivar, direta ou indiretamente.
Os amantes do velho esporte bretão agradecem se isto não acontecer.
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1- Tomás de Aquino, Sententia Libri Ethicorum, V, cap. 10, lec. XVI, n. 76.