Sidney Silveira
Não existe ciência do irrepetível. A razão é simples: sem um conjunto de experiências e dados devidamente catalogados pela inteligência, não pode haver conhecimento em sentido estrito. Isto acontece em qualquer área de estudos, mesmo naquelas em que a certeza alcançável é de natureza interpretativa — às vezes cambiante —, como no caso da ciência histórica, sempre imperfeita na reconstrução do passado porque depende de fontes que, no decorrer do tempo, podem mostrar-se insuficientes, quando cotejadas com descobertas recentes ou analisadas a partir de novos métodos hermenêuticos. Seja como for, não é o ato de compulsar mil documentos o que faz um historiador; mas o compulsá-los à luz de princípios interpretativos seguros.
Com a ciência política passa-se algo análogo. Participar da política por meio de um ativismo desordenado não é ser político, na expressão forte do termo, assim como não é o ato de fornicar com dez clientes por dia o que dá a uma prostituta a clara visão do que seja o sexo, em sua rica dimensão psicossomática e espiritual. Em suma, repetir o irreal é uma forma maligna de irrepetibilidade metafísica — maneira eficaz de jogar a verdade científica para uma instância inalcançável, porque a inteligência naufragou na tentativa de divisar o uno no múltiplo, a essência em meio aos acidentes. Numa situação tal, dar testemunho da verdade é impossível até quando os dados estão cristalinamente diante do sujeito; então, as evidências tornam-se inevidentes por uma espécie de hipoplasia da potência intelectiva. E a pessoa não entende a densidade do real porque se incapacitou para tanto.
Este déficit cognitivo torna-se patologia coletiva quando a política, as artes e a religião se desvinculam dos princípios universais configuradores daquilo que chamamos de “civilização”. Então os homens de bem vivem o pior infortúnio possível: suportar a corrupção em nível alarmante e patógeno, e assim terem o seu campo de ação pública reduzido. Advirta-se que tomamos a expressão “ação pública” não no sentido de atuação partidária, distintiva das caóticas democracias liberais em que nos cabe sobreviver — nas quais as leis deixaram de ser regra da razão ordenada ao bem, para expressar a vontade ou os interesses de grupos de pressão. Ação pública, nesta configuração, é alçar a voz a uma altura suficiente para fazer sair do letargo moral as pessoas com poder decisório. Mas isto, numa sociedade da informação, é difícil quando os canais da imprensa estão vedados ao Spoudaios, o homem maduro para a compreensão das verdades mais elevadas, segundo Aristóteles, pois desenvolveu as suas potencialidades em grau de excelência.
Em síntese, quando o ódio à excelência se dissemina no tecido social a ponto de aniquilar a cultura superior, a unidade somática da Pólis se desfaz num processo de putrefação similar ao que acontece com um corpo sem vida. A esta altura, o verdadeiro sábio compreende que a raison d’être do povo — que é ordenar-se aos bens superiores, e destes a Deus — se esfumou completamente. E o seu papel passa a ser o de fazer a descida ao caos para abrir nele fendas por onde possa penetrar a luz das verdades imperecíveis, e os homens possam dela voltar a alimentar-se.
O simbolismo dessa descida representa um sacrifício de vida cuja nobreza sequer pode ser reconhecida pelos beneficiários da ação, agonicamente presos na situação acima descrita, de incompreensão acerca das verdades mais elementares. Eles então ridicularizarão o sábio e o tomarão por tolo, por hipócrita ou por maligno, e poucos deles estarão aptos a compreender o estupendo bem recebido — mas só após terem massacrado o homem de valor que os favorecera. A propósito, é esta a advertência de Sócrates àqueles que o condenaram injustamente: os atenienses não mais teriam quem os defendesse de seus próprios erros e taras políticas.
Sócrates e os gregos antigos não conheceram o sacrifício universal da Cruz, feito com o sangue meritório pelo qual o próprio Deus Encarnado remiu o homem. Não conheceram o fato de que a política alcança a sua verdadeira razão de ser tão-somente quando se deixa conduzir pelas verdades divinamente reveladas, com as quais Deus rega os montes das alturas e com os frutos de Sua sabedoria sacia a terra, conforme afirma o Salmo 104, comentado esplendidamente por Santo Tomás de Aquino.
Sem essa sabedoria divina a governar os homens, a inimizade política torna-se o único caminho possível. E este leva ao ódio e à dissolução social de que se valem os políticos maquiavélicos para manterem tiranicamente o poder e o butim dos bens públicos, com um descaro semelhante ao do atual governador do Rio de Janeiro (apenas a título de exemplo), santarrão que gasta milhões para andar de helicóptero com o dinheiro do contribuinte e alega não cometer nada de impróprio.
A propósito, o Brasil atual vem sendo governado por um grupo político que, em toda a linha, trabalha para destruir os pilares da civilização — e nisto se distingue de todos os grupos letalmente corruptos que até então estiveram no poder em nosso país: distingue-se pela capacidade de aparelhar o Estado; distingue-se pela organização de uma militância disposta a qualquer coisa para cumprir os desígnios da Nomenklatura; distingue-se pelos braços internacionais de fomento à agenda globalista; distingue-se por usar da mentira política com a sistematicidade típica de quem procura perpetuar-se no poder recontando a história do país à imagem e semelhança dos seus falsos princípios; distingue-se pelo incentivo, direto ou camuflado, a todos os tipos de profanação das coisas religiosas.
Esta é, pois, a hora de alguns homens de bem e de formação intelectual e moral superior sacrificarem o próprio conforto, em favor da sociedade em adiantado estado de decomposição na qual desgraçadamente vivem. Arriscarem tomar partido em favor da civilização, mesmo à custa da perda de seus empregos; mesmo à custa das difamações; mesmo à custa de calúnias e de todos os tipos de martírio moral.
É claro que só podem fazer isto subindo à altura dos valores universais que abrem os olhos do espírito e impedem a disseminação do sonambulismo moral que gera situações políticas como a nossa. E não com caras pintadas e palavras de ordem ensaiadas por engenheiros sociais que fazem a formidável mágica de transformar multidões em agrupamentos teleguiados.
Que a antevisão da derrota pessoal e política não lhes arrefeça o ânimo. Afinal, só o alimento da sabedoria pode construir um dique à sociedade corrupta, e, como ensina Platão, estar a alma enganada ou ignorar o ser verdadeiro das coisas significa que a mentira tomou posse da parte mais elevada da pessoa.[1]
Ora, quando na política prevalecem homens tais, é melhor sucumbir na luta do que na omissão.
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1- Cfme. Platão. República, 382a-b.