terça-feira, 31 de maio de 2011

Frutos espirituais

Sidney Silveira

Como salienta o Nougué hoje no blog do SPES - Seminário Permanente de Estudos Sociopolíticos Santo Tomás de Aquino, dois frutos espirituais já desabrocharam em nosso grupo: serão monges! Um vai para o Mosteiro da Santa Cruz, em Nova Friburgo (RJ) e o outro para os dominicamos contemplativos de Avrillé, na França, que editam a importante revista Le Sel de la Terre. Também no SPES faz-se referência à dispobibilização (em PDFs) de 10 livros raros no blog A Grande Guerra.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Trecho do livro "Jesus Cristo e os filósofos"

Sidney Silveira
Sem ter como escrever para o Contra Impugnantes por estes dias, transcrevo abaixo um trecho do livro Jesus Cristo e os Filósofos, do Pe. Eugenio Cantera (com o corte em um parágrafo em que, inadvertidamente, ele citava Lamennais). Vale muito a pena ler este pedaço... A propósito, o livro inteiro é encontrável neste link. Outra coisa: não tive como expurgar o texto de todos os erros de português da tradução, por falta de tempo; mas o que importa, neste caso, é o conteúdo.


(....)


Cristo é a verdade, a verdade lógica, a verdade ontológica e a moral. A verdade ontológica, porque esta é a realidade das coisas conforme as idéias arquétipas da divindade, e no verbo que é Cristo, essa realidade e conformidade são perfeitas, radicam no ser subsistente, ato puríssimo sem mescla de potencialidade alguma. É a verdade lógica que não é outra coisa que o conhecimento adequado e perfeito da realidade inteligível, e em Deus esta adequação é suprema; conhecendo a si mesmo, conhece todas as coisas, que são graus de imitabilidade de sua essência criadora. É verdade moral, porque sua palavra é a expressão sincera do seu pensamento; Jesus não pode enganar-nos porque é a santidade mesma, incapaz de mentir ou de fazer mal. Jesus é a fonte de toda a verdade e luz de toda a inteligência; é a verdade substancial de que participam todos os seres [1]. Não somente é Jesus a verdade existente ab aeterno; é também a verdade revelada no tempo, comunicada aos homens por meio das ciências, das letras e das artes. Revelou-se igualmente como luz em Adão e os Patriarcas, em Moisés e os Profetas; porém aquela luz era participada, efêmera, não bastava para dissipar as trevas espalhadas pelo mundo.


Novamente se revelou sem sombras e sem figuras; apresentou-se Ele mesmo, descobrindo-nos de uma vez os tesouros da verdade e as riquezas da graça com a efusão definitiva da luz, da vida e da inteligência divina.


«Aprouve à sabedoria e bondade de Deus, diz o Concílio Vaticano I [2], revelar-se a si mesmo e descobrir-nos os eternos decretos da sua vontade por meio sobrenatural conforme estas palavras do apóstolo: «Deus que em outro tempo falou a nossos pais pelos profetas em diferentes ocasiões e de muitas maneiras, falou-nos ultimamente, nestes dias, por meio de seu Filho Jesus Cristo » (Hebr. I, 1 e 2 ).


O homem separando-se de Deus pelo pecado, ficou submerso nas trevas, esqueceu o caminho do céu prometido aos servos fiéis. Cristo veio para salvar-nos, para ensinar ao homem a verdade obscurecida pelas sombras do erro, adulterada pelas superstições gentílicas. «Eu sou, diz Ele, o caminho que conduz ao Pai»[3]; «eu sou a luz e vim para que todo aquele que crê em mim não ande nas trevas, mas tenha a luz da vida»[4]. «Eu sou o princípio de todas as coisas falando convosco» [5]. «Eu sou a verdade mesma [6]; vim para dar testemunho da verdade»[7]. Jesus é o único mesmo, porque é o único que possui a verdade e a revela aos homens. «Vós me chamais Senhor Mestre, e dizeis bem, porque eu o sou»[8]; «um só é o vosso Mestre: o Cristo» [9].



4. Em Cristo se encerram todos os tesouros da ciência e sabedoria divina, e por conseguinte os tesouros da verdade [10]. É a verdade na ordem teológica, porque todas as verdades na teologia se referem a Cristo, como raios de um mesmo foco, encontram nele sua explicação e complemento.


Os Dogmas e Mistérios de nossa santa religião estão intimamente ligados entre si; Cristo é o laço de união que os compendia e resume. A Trindade é o primeiro Mistério, Dogma capital, fonte da vida divina. Pois bem; esse Mistério Jesus Cristo o revelou. Expressa-o em seu Evangelho e brilha com esplendor no fato da encarnação. O Pai de tal modo ama o mundo que entrega seu Filho unigênito; O Espírito Santo forma o corpo puríssimo do Salvador, e, efetuada a Redenção, aplica os méritos de Cristo às almas que nele crêem. E a encarnação supõe o pecado original que arrebata o homem do estado de santidade em que estava colocado e abre um vácuo que somente o sangue do Homem Deus poderia encher. De nada, porém, nos serviria essa redenção de Jesus se não fosse possível aproveitarmo-nos de seus méritos infinitos. Daí a justificação que purifica as manchas da alma e converte o pecador em amigo de Deus; os sacramentos, lances de amor, sete fontes de graça que regam e fecundam os espíritos, depositando neles germes de virtude e anelos puríssimos de perfeição; a glorificação do corpo e da alma, fim último da redenção. E como a encarnação tinha por objeto salvar a humanidade em todos os tempos e lugares, e Cristo não havia de permanecer sempre visivelmente na terra, funda a Igreja, sociedade visível que continua sua missão, a Igreja que brota do lado de Cristo, dispensadora de suas graças e órgão infalível da verdade. Cristo revela e explica os dois problemas mais profundos da ordem teológica; a criação, a redenção e a Igreja; é causa da criação, autor da redenção e fundador da Igreja.


Cristo é a verdade na ordem filosófica. Jesus não é um sábio que raciocina suas teorias e erige escolas públicas de discussão e doutrinas; é o Mestre por excelência que restaura as verdades filosóficas, incorporando-as de novo ao patrimônio da investigação racional. Já vimos como os filósofos amontoaram escombros sobre escombros, e os gênios mais esclarecidos não lograram desprender-se daquele emaranhado de erros que infestava tudo.


Deus e o homem, as relações mútuas que os enlaçam; a religião e a ordem, os deveres que se impõem às criaturas, a alma, a vida, o direito, a justiça, a autoridade, a liberdade, são conceitos que Jesus iluminou com os raios da sua sabedoria, depurando-os da vil escória do paganismo. Os que rechaçaram as influências de Cristo caíram nos abismos do erro; só os que acatam seus ensinos possuem uma concepção íntegra da verdade filosófica.


Cristo é a verdade na ordem histórica. De sua fronte brotam raios de luz que ao projetar-se sobre a inteligência humana engendram nela um mundo de idéias, vivificando as ciências, banhando-as com os resplendores de sua divindade, com as luzes radiantes de seu verbo. A inteligência de Jesus opera constantemente sobre a inteligência cristã, todos os sábios procuram inspiração nas suas luzes. A inteligência de Jesus, diz Gibier, é o que anima a eloqüência de São Paulo, a dialética de Orígenes, a erudição de Jerônimo, a ciência de Santo Agostinho, a unção de Santo Ambrósio. Ela move a pena de São Leão e São Gregório, faz dos lábios de São Basílio uma lira harmoniosa e lábios de ouro dos lábios de São João Crisóstomo [11]. Os pensamentos místicos de São Boaventura, as profundas concepções de Santo Tomás de Aquino, o gênio de Bacon, os deslumbramentos de Lúlio, brotaram ao calor da inteligência de Jesus, farol luminoso das ciências e dos sábios. Onde senão nesse sol divino incendiaram seu astro João da Cruz e Luiz de Leõn, Zorrilla, Galan e tantos vates da Espanha Cristã? Não foi essa chama ardente que iluminou a Teresa de Jesus para escrever suas Moradas e inspirou a Cano seus lugares teológicos e a Soarez suas profundas «Disputaciones Metafísicas»?



Quem senão Cristo inspirou A Cidade de Deus, a Suma Teológica, o Discurso sobre a História Universal, o Protestantismo comparado ao Catolicismo e outras obras imortais, monumentos do saber humano? Não foi o ideal cristão que formou em nossos dias as inteligências robustas de Balmes e Donoso, de Lacordaire e Ozanan, de Secchi e Pasteur, de Pidal e Menendez Pelayo?


5. E se do campo da ciência passamos ao das artes, Cristo se nos apresenta como o protótipo da beleza, da ordem e da poesia. A beleza, dizia Platão, é o esplendor da verdade, o esplendor da ordem, segundo outros filósofos, algo de imaterial que imprime na própria matéria um selo de espiritualidade encantadora. E sendo Jesus Cristo a verdade essencial, por necessidade tem que ser a beleza. A beleza intelectual de Cristo não tem limites, porque é a mesma verdade; sua beleza moral não reconhece fronteiras, Cristo é a mesma santidade.


E que diremos de sua beleza física, de sua pessoa, de sua fisionomia?


«O Verbo, diz Nicolas, poesia de Deus na eternidade, é o poeta da criação no tempo; o mundo é seu poema» [12]. Pois bem; todas essas belezas, reflete-as Jesus na sua humanidade sacratíssima, expressão viva e sensível de sua divindade.


Dir-se-ia que sua alma santíssima assoma-lhe aos olhos, aos lábios, ao rosto, ao corpo todo, banhando-o nas cores do céu. No estábulo de Belém como na cruz do Calvário, na oficina de Nazaré, no deserto, no Tabor, no templo, em sua vida toda. Jesus é o mais belo dos filhos dos homens [13].


A majestade de sua fronte, o candor de seus olhares, a doçura de suas palavras, a formosura de sua face, tudo revelava que Ele era o ideal da beleza, da poesia e do amor. Os artistas esforçaram-se por reproduzir figura tão excelsa, porém, fracassaram em suas tentativas. Impossível exprimir nas telas e nos mármores a vasta inteligência que revela a fronte do Senhor, representar seus olhares com aquela expressão que lhe dava a penetração de profeta, a autoridade de Mestre, a ternura de amigo; nos seus lábios a bondade infinita de sua alma, a generosidade de seu coração, pródigo de consolo, esperança e perdão; nos rasgos de sua fisionomia a firmeza de seu caráter, a plenitude de dons e virtudes que ornavam seu belíssimo espírito. Sempre o original ficou a uma altura imensamente superior à cópia; a beleza de Cristo arrebata e seduz, porém, não pode a língua humana descrevê-la ou explicá-la. Inspirou, porém, às artes as suas mais belas concepções, enriqueceu-a com quadros brilhantes de luz, com horizontes de harmonia, com poemas heróicos, com epopéias sublimes; idealizou a matéria infundindo-lhe um sopro de espiritualismo cristão. Cristo é o manancial da beleza como o é da verdade.


6. A inteligência de Jesus não só brilha sobre a fronte do sábio, iluminando as altas regiões da ciência; desce também às inteligências tenras e inexperientes, aos espíritos puros e humildes, comunicando-lhes a ciência das maiores verdades religiosas. Mediante essa comunidade de princípios, de idéias fundamentais, Cristo criou a unidade intelectual do mundo, cujos Dogmas, livremente aceitos por toda classe de inteligências, deram origem a uma sociedade espiritual e indivisível que funda no mesmo ideal os indivíduos, as raças e os povos. A unidade de doutrina é privilégio exclusivo da doutrina cristã; daí nasce sua força, sua eficácia e sua autoridade.


Admiramos as lutas espantosas que essa religião sustentou na história para conservar incólumes seus dogmas e os triunfos que alcançou de todos os seus inimigos. O segredo da vitória consiste em sua unidade doutrinal. Em discussão contínua com os sofistas, em luta permanente contra o erro, ensinando publicamente suas doutrinas para que todos as examinem e discutam, a Igreja atravessou dezenove séculos sem retroceder jamais, sem contradizer-se nunca, sem mudar uma vírgula dos seus dogmas, sem mutilar a verdade. Fato portentoso, explicável unicamente se se admite que a verdade da Igreja é a verdade de Cristo, e Cristo é a verdade imutável, indivisível e eterna.


Os pensadores mais ilustres sonharam com a idéia de associar as inteligências humanas mediante uma comunhão de princípios e crenças. Tentaram também esta unidade mental os legisladores, estadistas e guerreiros. Porém, quem logrou êxito em sua empresa? Quem conseguiu infundir tal entusiasmo por suas doutrinas de maneira que elas permanecessem inalteráveis contra a ação destruidora da paixão e do tempo? Ninguém.


Perguntai a Aristóteles pelos dogmas de Platão, e vereis como Ele os combate e refuta; exigi de Anaxágoras uma profissão dos princípios filosóficos de Tales, e o encontrareis como um rebelde da escola jônica; buscai em Pitágoras o eco de seus mestres, e vos oferecerá um sistema original, calcado na harmonia e no numero. O fenômeno se repete na história moderna. Descartes, Kant, Cousin, Moleschot, Spencer, Fouillé e outros mestres do racionalismo recrutaram multidão de prosélitos, de discípulos entusiastas de suas teorias e sistemas, porém, nenhum logrou impor-se às sociedades estabelecendo um credo comum para as inteligências. Se das escolas racionalistas passamos às heterodoxas veremos os mesmos esforços e os mesmos fracassos. Ario no século IV encontrou estabelecida esta unidade de crenças e quis rompê-la apoiado no tríplice poder da força, da ciência e da autoridade. A missão aparentemente era fácil; o Evangelho mesmo viria em auxílio do grande heresiarca.


Logo se convenceram seus partidários da impossibilidade da empresa.


A resistência foi enorme, invencível a dificuldade; a Igreja expulsou do seu seio o presbítero apóstata, demonstrando com isto, que é impossível a unidade espiritual baseada no erro, longe de Cristo. Lutero, no século XVI, repetiu o ensaio; pretendeu fundar uma Igreja nova com dogmas e leis comuns.


Agitou-se a Europa, moveu-se o mundo, porém, o resultado de tantos trabalhos é hoje conhecido; em três séculos de tal maneira a Reforma multiplicou e modificou seus símbolos e confissões, que ninguém se põe de acordo com os princípios de Lutero, pois que mais de quinhentas seitas diferentes nasceram no seio da Reforma.


Porque este fracasso de todos os que ensaiaram fundar uma república intelectual, unindo os entendimentos pela profissão dos mesmos dogmas, crenças e doutrinas? Porque não há outra verdade que o Cristo, e esta verdade está unicamente na Igreja; porque não pode haver unidade fundamental onde não há idéias fundamentais, dogmas imutáveis, livremente aceitos e comuns a toda sorte de inteligências; e esta universalidade, esta imutabilidade própria da verdade radica em Deus, que é o Cristo, Salvador do mundo e Redentor do gênero humano. Os sistemas dos sábios se desmoronaram porque eram construções sem fundamento, organismos sem vida, ilusões do homem, não criação de Deus. Jesus Cristo fundou essa unidade intelectual; suas doutrinas são hoje ensinadas, e acatadas com o mesmo respeito, com a mesma fidelidade que tiveram seus primeiros discípulos.


Prega-se em todos os países o seu Evangelho sem aumentar nem diminuir um til; seus dogmas nós os admitimos como saíram dos lábios de Cristo, sempre imutáveis, sempre os mesmos; milhões de fiéis repetem diariamente o símbolo dos apóstolos, o mesmo que recitavam os mártires diante do tirano, os ascetas no deserto, os fiéis nas catacumbas; cremos o que creram Inácio e Policarpo, Irineu e Justino, Basílio e Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho; nossa fé é idêntica à de Pedro e à de todos os santos. E esta fé e esta doutrina é a que ensinou sempre a Igreja em suas escolas e concílios, e os Pontífices em suas bulas e encíclicas, a mesma que ensinam hoje e propagam os Bispos e sacerdotes, os doutores e fiéis, todos os cristãos sem exceção alguma. A mesma fé, idênticos dogmas, idênticos sacramentos... Eis aí a verdadeira unidade espiritual estabelecida por Jesus Cristo, sinal certo e indubitável de que só Ele é a verdade, e somente em sua Igreja e em seus ensinos podemos encontrá-la.


7. Assim se explica como em torno de Jesus se uniram as ciências e as artes para render-lhe vassalagem; como unicamente à sombra da cruz florescem as inteligências, e afastadas de Cristo caem nas mais densas trevas.


(...) A verdade de Cristo, que é a verdade católica, tem a seu favor a autoridade das mais poderosas inteligências da humanidade. Não só as ciências eclesiásticas lhe pertencem por completo; nas próprias ciências físicas conta Jesus como uma plêiade brilhantíssima de sábios eminentes que creram nele e afirmam sua verdade. Físicos tão ilustres como Volta e Ampère, Röntgen e Brandly; químicos tão distintos como Lavoisier e Berzellius, Liebig e Dumas; astrônomos tão célebres como Copérnico e Galileu, Kepler e Newton; matemáticos como Leibnitz e Cauchy; Geólogos como Lapparent; Naturalistas como Linneu, e tantos outros cujos nomes seria ocioso enumerar e que figuram escritos com caracteres de ouro na história do pensamento humano. Todos esses grandes homens, diz Canet, a glória e a luz do seu século, firmaram com sua vida e com seus imortais escritos a crença no símbolo dos apóstolos [14]. Acreditaram em Cristo e confessaram que foi Ele quem trouxe ao mundo a luz, a redenção e à vida.


8. Esta luz nova, limite das revelações divinas; esse espírito de verdade comunicado ao homem por Cristo, longe de eclipsar a luz da razão natural, a embeleza e aumenta de um modo extraordinário, visto que estende seus domínios a um mundo de verdades reveladas que jamais poderia descobrir por si mesma.


O erro capital do racionalismo, o vício essencial da filosofia moderna, diz Orti y Lara, consiste na identificação desses dois Verbos na absurda e ímpia pretensão de atribuir à razão humana a virtude suprema e absoluta de entender a verdade, virtude própria da inteligência divina do Verbo eterno de Deus [15]. Para os racionalistas, o espírito humano não é o sujeito que percebe a verdade, mas a própria verdade percebida; não é uma potência determinada pelo objeto inteligível, mas o fundamento da verdade, a medida das coisas.


Quando se afirma, como fazia Kant, que a verdade é pura emanação da mente, e as leis da natureza, formas internas do nosso entendimento; quando se atribui ao pensamento humano o poder de criar a realidade dos seres, fazendo o objeto inteligível produto exclusivo do «eu» pessoal, como opina Fichte; quando, avançando um passo mais, se quer fundir em um elemento comum essências contraditórias, identificando em um princípio absoluto naturezas distintas, como desejava Schelling, ou coroando essa série de negações com uma negação definitiva, se nos propõe a idéia hegeliana como síntese suprema da ciência, espécie de zona neutra, onde se confundem o ser e o não ser, a potência e o ato, o efeito e a causa; quando se admite «a priori» um princípio gerador das coisas, fonte de toda a verdade, que tudo explica e produz deste o átomo até Deus, chame-se esse princípio Inconsciente (Hartmann), Vontade (Schopenhauer), Atividade (Wundt), Idéia — Força (Fouillée), Esforço Vital (Bergson), ou como se quiser; quando se afirma tudo isso, parece que se estabelece diversidade de princípios, quando em rigor é idêntico o fundamento comum, a origem dessas aberrações monstruosas. No fundo dessas doutrinas palpita o mesmo pensamento. A filosofia, do «eu» erigindo-se em mestra do gênero humano, a razão individual emancipada de toda autoridade, o verbo interior do nosso espírito suplantando o Verbo divino, o orgulho do homem usurpando a Deus suas prerrogativas e excelências. Todos os que proclamam a emancipação do pensamento e negam a Jesus Cristo o direito de reinar sobre as inteligências, partem de uma premissa errônea. Crêem que a razão é causa da verdade, regra do dever, quando pelo contrário, a verdade preexiste nas coisas como uma irradiação da mente divina que as concebe e procria.


9. A razão não cria a verdade, descobre-a; a verdade não é uma concepção livre do entendimento nem produção espontânea do espírito; a razão investiga, busca o que é, não o que pode ser; inquire a realidade que é causa da verdade em nós. «O ser mesmo das coisas, diz o doutor Angélico, causa a verdade no entendimento» [16]. A verdade é reprodução, reflexo do exterior; os objetos que existem fora de nossa alma despertam a atividade natural da potência cognoscitiva e constituem a medida da verdade que encerram seus atos.


«Está impressa, Senhor, sobre nós, dizia Davi, a luz de teu rosto»[17].


Esta luz não pode operar sem o concurso do objeto que a determina e atua. Nosso entendimento é uma atividade potencial que necessita ser excitada pelo influxo dos fantasmas sensíveis; é como um espelho em que se refletem os objetos com perfeita fidelidade, sem acrescentar-lhes nem tirar coisa nenhuma. Essa atividade intelectual não é como a de Deus. Esta é essencial, que engendra a inteligibilidade dos seres; criadora que produz a verdade eterna, cuja luz, depois de iluminar com clarão infinito os seios misteriosos da Trindade beatíssima, reverbera palidamente nas criaturas; soberana, onde têm sua origem os possíveis, que sem sair de si mesma contém a plenitude do ser com todas as suas perfeições.


A verdade ontológica é a realidade das coisas, «id quod est», como diz Santo Agostinho [18]; e esta verdade essencial possuem as coisas por sua conformidade com o entendimento divino que as criou. A verdade lógica ou formal deriva da anterior; é como diz Santo Tomás, a adequação do entendimento com a coisa [19]; e ainda que esta verdade resida no entendimento, depende também do objeto, porque essa relação que medeia entre ambos não é arbitrária; as coisas são o que são, independentemente do sujeito pensante, e ainda dado que este desaparecesse, a verdade das coisas subsistiria, porque são essencialmente verdadeiras no entendimento divino, no qual têm seu princípio e sua razão, sua norma e sua medida, seu ser e sua existência. Assim como a visão sensível se verifica com submissão a leis invariáveis, independentes de nossa vontade, assim também a visão intelectual se produz obedecendo a leis fixas e constantes. O olho é livre para olhar ou não um objeto visível; porém, uma vez que o contemplou, se o encontra convenientemente iluminado e situado a devida distância, a visão se verifica necessariamente. O olhar não cria nem influi na realidade; percebe-a e a reproduz tal qual aparece no exterior. Do mesmo modo a razão se move num círculo vastíssimo, voa por regiões imensas; porém ela não fez esses mundos nem pode modificá-los à sua vontade; reflete unicamente a luz que os ilumina, o esplendor que irradia o Verbo de Deus sobre os objetos, os quais de um modo intencional, porém positivo e eficaz, determinem nossa mente ao conhecimento dos mesmos.


A verdade se nos impõe de uma maneira irresistível; é objetiva, não mera emanação de nossas faculdades.


Daí se infere quão irracionalmente procedem aqueles que defendem como um dogma a liberdade de pensar, eximindo o entendimento de toda lei na investigação da verdade. O livre pensamento é um absurdo que nos rebaixa ao nível dos brutos, porque nega a mesma razão que não pode conhecer a verdade sem sujeitar-se a leis imutáveis, cuja infração leva consigo o erro.


A idéia não se engendra sem o fantasma sensível; assim como o coração não é independente do bem que o cativa e atrai, tampouco o entendimento da verdade que o ilustra. Um pensamento livre é um absurdo, uma contradição; tudo na natureza tem suas regras e suas leis; e não as terá o pensamento que é a causa mais nobre e excelsa no homem? Nossa potência intelectual pode receber em si todas as formas, é uma participação da luz divina, porém, finita e limitada, e, portanto dependente de Deus. Por íntimas que sejam as analogias do Verbo teológico e do Verbo filosófico, distinguem-se ambos pela diversidade de natureza a que devem sua origem.


Deus, compreendendo sua essência, forma e produz em si mesmo uma concepção inegável, que é seu Verbo. Do mesmo modo que quando nós pensamos ou concebemos um objeto, formamos uma concepção da coisa pensada, e essa é nosso verbo. Porém entende de uma maneira muito mais perfeita que o homem, e daqui nasce a superioridade do seu Verbo sobre o nosso.


Deus conhece a realidade vendo-se a si mesmo como realidade infinita e perfeitíssima; e como em Deus o entender é a substância do sujeito inteligente, Deus entendendo-se a si mesmo, diz Santo Tomás, produz uma concepção em que Ele mesmo se repete [20]. A produção do Verbo em Deus é uma geração verdadeira, e o Verbo pelo mesmo fato que é Verbo, é realmente uma hipóstase subsistente, seu Filho, igual ao Pai, em que está representado o existente e o possível, por quem foram feitas todas as coisas, as visíveis e invisíveis.


A produção do verbo no homem é uma geração imperfeita, porque nem o entender em nós é nossa substância, nem a concepção engendrada pela mente é uma reprodução substancial do sujeito pensante, senão uma forma ideal, um fenômeno intencional do espírito. Nosso verbo é semelhante, não idêntico ao verbo divino, imagem do objeto entendido, nem sempre representação inteligível dele, como sucede no Verbo divino, cuja idéia procede unicamente do Pai.


10. A distância que separa os dois verbos é imensa, a mesma que separa a inteligência finita e a infinita. O Verbo é a imagem adequada e perfeita da ciência perfeitíssima de Deus, é o mesmo pensamento divino compreendendo a essência própria e suas perfeições infinitas. O verbo humano é a expressão ou imagem das coisas que em ato entendemos, não das que podem ser entendidas, muitas delas impenetráveis aos olhos do homem. O Verbo divino como imagem perfeita e adequada da substância do Pai, é Deus mesmo, a verdade mesma ideal e real, a fonte de toda entidade. O verbo humano sendo imagem de uma realidade finita e imperfeita, é por necessidade, finito e imperfeito, verdade participada; não é causa das coisas nem medida do ser, mas deve ser medido por elas para determinar-se ao ato e engendrar mentalmente a visão da verdade real. Não é um original, mas uma cópia maculada, pálido reflexo do sol que fulgura na mente do Altíssimo engendrando o Verbo divino desde toda a eternidade. Este verbo augusto é substancial, incriado, Deus de Deus, luz de luz, pensamento que esgota a inteligibilidade dos seres pela absoluta compreensão dos mesmos; o verbo humano é acidental, criado, circunscrito a uma esfera determinada, distinta da potência que o engendra.


Aquele procede sempre por intuição, é esplendor sagrado que deslumbra e subjuga, nossa inteligência; esta procede por demonstração, deduz ou induz com submissão às leis do espaço e do tempo, desce dos princípios às conclusões ou ascende dos fatos ao conhecimento dos princípios universais por uma multiplicidade de atos que declara sua imperfeição intrínseca. Não conhece senão abstrata e indeterminadamente; logo não pode ser princípio de verdade, nem origem da sabedoria humana, o que é próprio somente de Deus, do Verbo encarnado, que se chama Jesus Cristo.


Basta o que ficou dito para destruir pela sua base o criticismo kantiano, ponto de partida da filosofia moderna, em que as inteligências modernas beberam o vírus da impiedade. Se o verbo filosófico é por si uma entidade finita e imperfeita, uma luz débil e trêmula que reflete parcialmente a verdade oculta nos fenômenos sensíveis, é impossível levantar sobre tão fraco fundamento o edifício dos conhecimentos humanos. A razão não pode ser autônoma, a esfera de nossos conhecimentos não pode limitar-se ao campo de nossas afeições subjetivas; existem horizontes mais amplos cujos limites nos são desconhecidos. A verdade não está em nós: está em Deus, que a reflete sobre o mundo; reside em Cristo, trono da sabedoria e fonte das ciências humanas”.

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[1] Santo Tomás, Contra Genti., lib. I, cap. 62; III, cap. 57; I, q. XIV, art. 4.
[2] Sess. III, c. 2.
[3] João, XIV, 6.
[4] Ibid. XII, 46.
[5] Ibid. VIII, 12.
[6] Ibid. VIII, 25.
[7] Ibid. XIV, 6.
[8] Ibid. XVIII, 37.
[9] Ibid. XIII, 13.
[10] Colos., II, 3.
[11] Jésus-Christ, t. I, pg. 336.
[12] Estúdios filosóficos sobre el Christianismo, t. IV, pg. 310.
[13] Ps. XLIV, 3.
[14] La liberté de penser et la libre pensée, pg. 55.
[15] El Racionalismo y la humanidad, pg. 77.
[16] I, q. XVI, art. 1.
[17] Ps. IV, 7.
[18] Soliloq., II, cap. 5.
[19] I, q. XVI, art. 2.
[20] I, q. XXVII, art. 2.

Liberalismo e Catolicismo: livro do Pe. Roussel no blog do SPES

Sidney Silveira

O blog do SPES - Seminário Permanente de Estudos SocioPolíticos Santo Tomás de Aquino postou neste final de semana o livro Liberalismo e Catolicismo, do Padre Roussel, que numa linguagem simples e em poucas páginas formula as principais incompatibilidades entre o liberalismo e a Igreja Católica — algumas delas arroladas em textos do Contra Impugnantes. Leia-se a obra do Pe. Roussel neste link.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Qualquer que escandalizar um desses pequeninos (...), melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma mó (...) e que o lançassem no fundo do mar".

Mt. (XVIII, 6)


Sidney Silveira

E o inacreditável kit gay era mesmo para crianças, como já sabíamos. E sabíamos em grande parte graças ao deputado Jair Bolsonaro, que no caso de que se trata foi heróico, corajoso, uma voz no Congresso a representar a grande maioria da população brasileira contra um lobby financiado bilionariamente.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Palestra de lançamento do livro "O Êxtase da Intimidade"




Livraria da Travessa (Travessa do Ouvidor, 17, Centro - Rio de Janeiro)


Sidney Silveira

Agradeço a todos os amigos que compareceram ao evento de lançamento do livro "O Êxtase da Intimidade - Ontologia do Amor Humano em Tomás de Aquno", do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, nesta terça (24/05), na Livraria da Travessa, no Centro do Rio. Em breve — assim que eu me entender com a câmera! — diponibilizarei o vídeo da palestra aos leitores do Contra Impugnantes.

Em tempo: Ser meu amigo está acarretando algumas sanções eclesiásticas (ou, pelo menos, constrangimento). Alguns amigos padres e seminaristas entraram em contato comigo para desejar um bom lançamento, mas disseram que não compareceriam — decerto por medo de represálias — devido a futricas modernistas de bastidor... Paciência, nobres: os cães ladram e a caravana passa.

Evento tomista em São Paulo transferido para julho

Sidney Silveira

Aos amigos que, nesta semana, me enviaram mensagens indagando acerca do evento do dia 28/05, em São Paulo, um aviso: a pedido do Pe. Renato Leite, este dia de atividades centradas na obra de Santo Tomás de Aquino foi transferido para o final de julho. Outras informações serão dadas adiante aqui mesmo no Contra Impugnantes e, também, no Fratres in Unum.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Novas “Jornadas” da FSSPX

Carlos Nougué
As "Jornadas 2011" da FSSPX, no Seminário de La Reja, versarão sobre o tema da “Política Católica”, e terão entre seus expositores o Padre Álvaro Calderón. Ou seja, versarão sobre o próprio tema que nos levou à fundação do SPES - Seminário Permanente de Estudos Sociopolíticos Santo Tomás de Aquino, e contarão com aquele por quem nos orientamos constantemente, o Padre Calderón. Vejam o cartaz das Jornadas aqui.

Traduzimos abaixo o e-mail de convite às Jornadas, e reproduzimos, em PDF, o próprio folheto da FSSPX sobre este evento da maior importância.

“Caros amigos,
Enviamos-lhes o folheto e o convite para as JORNADAS 2011. Aos jovens pedimos que se inscrevam O QUANTO ANTES para facilitar a organização.
A todos: que rezem pelo sucesso destas Jornadas; convidem seus conhecidos e parentes e nos ajudem a pagar os numerosos gastos gerados por estas Jornadas.
Desde já muito obrigado a todos, e que Deus os bendiga copiosamente.”

domingo, 22 de maio de 2011

Palestra "O Amor em Santo Tomás de Aquino", nesta terça-feira (24-05)



Sidney Silveira

Acontece nesta terça-feira (24-05), a partir das 18h, na Livraria da Travessa (Travessa do Ouvidor, 17, Centro, Rio de Janeiro), a palestra "O Amor em Santo Tomás de Aquino", por mim proferida a propósito do lançamento do livro O Êxtase da Intimidade, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz.

Todos os amigos cariocas estão convidados a compartilhar este momento e tomar um vinho conosco.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Raimundo Lúlio e Maomé, no IX EIEM


Giovanni da Modena (afresco "O Juízo Final")


Sidney Silveira


O Prof. Ricardo da Costa disponibilizou em seu site o breve texto sobre Maomé que servirá de base para a palestra que ministrará no IX EIEM - Encontro Internacional de Estudos Medievais, em Cuiabá — evento a realizar-se entre os dias 04 e 07 de julho deste ano. O "ecumênico" Lúlio...

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sobre demônios e endemoniados (IV)

Sidney Silveira


O conhecimento diabólico do futuro


Sabemos que os entes operam no limite das potências radicadas na forma específica do seu ato de ser, que é participado. Assim, apesar de Charles Darwin, no dia em que o macaco resolver um teorema de matemática pura, entender as relações geométricas implicadas numa variante do jogo de xadrez e, por fim, redigir algo tão extraordinário como o PL 122 que circula pelos corredores de nosso Legislativo, teremos encontrado o elo perdido da teoria da evolução. Mas como a metafísica aconselha-nos a não ser tão otimistas, fiquemos por ora com a certeza de que, nos entes, o operar segue o ser (operatio sequitur esse), e, portanto, nada pode atuar além de suas possibilidades ontológicas. E isto também se aplica aos demônios: a sua operação é demarcada pela forma entitativa que lhes é própria, o que nos leva a uma série de questões relevantes, se se trata de estudar como tais criaturas podem agir sobre o homem. Uma delas implica o ato do conhecimento, que neles é mais perfeito do que em nós.


Pois bem, conhecer é apossar-se da forma inteligível do ente em ato, além de ser um movimento acidental da potência intelectiva. Esta máxima gnosiológica, no entanto, não elucida todos os modos próprios deste tipo especial de relação chamada “conhecimento”. Ressalte-se, neste ponto, que uma coisa é o conhecimento atual — ou presencial, para alguns tomistas. Este acontece quando o intelecto tem a clara visão de determinado inteligível. Por exemplo, o médico que, após a análise de um conjunto de exames à luz dos princípios por ele conhecidos, constata o câncer do paciente. Neste caso poder-se-ia dizer que a inteligência do médico o câncer, presencia-o, ou seja, apossa-se formalmente desta realidade extramental (quer dizer: que está fora de sua mente). Então o médico pode afirmar: eu sei, aqui e agora, que este meu paciente tem um câncer. Em síntese, dá-se nesta hipótese a adequação entre a inteligência a coisa.


Ocorre que conhecer algo não é apenas conhecer as causas de que depende. Posso muito bem conhecer as causas de uma coisa, mas não elucidar a sua essência e não esgotar a inteligibilidade do seu modo de operar (aqui, dada a nossa humana forma de conhecer, não custa lembrar que só temos a notitia veritatis da essência de uma coisa quando descortinamos quais são as suas operações próprias, e não por uma espécie mágica de intuição direta). Daí que exista também um tipo de conhecimento ao qual podemos chamar de conjectural, ou seja: um saber que parte de premissas claras e seguras, mas ainda não é atual, no sentido de que: a) a realidade cognoscível ainda não se atualizou na ordem do ser, e, portanto, trata-se de uma mera probabilidade; b) ela atualizou-se, mas o cognoscente ignora algumas de suas notas distintivas; c) ela atualizou-se, mas o cognoscente não conhece a totalidade da série causal ali implicada; etc.


Não é o caso, neste texto, de examinar todos os tipos de conhecimento, mas cito os dois acima — o presencial e o conjectural — para abordar um problema a propósito do tema em questão. Pois bem, tendo os demônios as formas inteligíveis das coisas infundidas em sua mente por Deus desde o instante em que foram criados como anjos, eles não extraem das coisas o conhecimento, como nós, mas contemplando-as apenas atualizam o conhecimento que desde sempre tiveram acerca delas. Por exemplo: antes de haver o ente gato, eles já conheciam a forma inteligível gatesca que lhes havia sido posta na inteligência por Deus, razão pela qual Santo Tomás de Aquino, fazendo uso de uma linguagem analógica, chega a afirmar em alguns textos que as coisas têm mais ser na inteligência dos anjos do que em si mesmas.


Ocorre o seguinte: conhecer o quid est do gato não é conhecer este ou aquele gato (pois o conhecimento quiditativo também se distingue do presencial, como me ensinou o meu querido amigo Luiz Astorga, um metafísico de alto coturno, para usar uma metáfora militar dos tempos de antanho), razão pela qual a questão espinhosa no tomismo sempre foi saber como os demônios, conhecendo desde sempre as essências ou quididades, conhecem também os entes singulares. Esta questão é correlata a outra — a que nos interessa aqui, pois estamos em meio a uma investigação teológica: até que ponto podem os demônios conhecer o futuro? E, conhecendo-o, como poderiam atuar sobre o homem, para perdê-lo?


Noutros textos assinalamos que Deus, sendo Ser infinito, simplícimo, conhece tudo presencialmente, ou seja, tem a posse perfeita de todos os inteligíveis em ato porque todos têm a sua fonte n’Ele mesmo e nada existe fora do Ser, quer dizer: à parte de Deus. Daí afirmar-se que Deus, conhecendo-Se em ato perfeitamente, conhece tudo o que é, o que foi, o que será e o que seria — em grau sumo e sem defecção de nenhum tipo. Por sua vez, dos anjos (e por conseguinte dos demônios), que não são Ato Puro simplícimo de ser, dado que têm composição de ato e potência, de substância e acidentes e de essência e ser, podemos dizer que:


a) tendo em sua inteligência todas as formas inteligíveis das coisas criadas, eles conhecem virtualmente tudo no plano natural, embora não de forma instantânea (num só ato), e sim sucessiva, com um antes e um depois;


b) eles não esgotam a inteligibilidade do Próprio Ser, que é Deus, pois a inteligibilidade deste é tão inesgotável e infinita quanto o seu Ser, e nenhum ente finito pode abarcá-la;


c) eles não conhecem a ordem da Divina Providência, que sobrepassa toda natureza criada.


Acrescente-se a isto o fato de que os demônios (como qualquer criatura) precisam transitar da potência ao ato para atuar, na exata medida em todo ente, não sendo ato puro de ser, é composto, e tudo o que tem composição opera por meio de faculdades, e estas, por sua vez, estão em potência em relação aos seus objetos formais próprios. No caso do demônio, criatura angelical, a sua inteligência, mesmo tendo as formas inteligíveis das coisas já infundidas nela, está em potência para adquirir novos conhecimentos ou atualizar os que virtualmente já possui. Assim, pode um anjo conhecer um novo conteúdo inteligível sobrenatural, revelado diretamente por Deus, por exemplo; pode conhecer algo novo comunicado por um anjo de hierarquia superior, que conhece as mesmas coisas por meio de formas inteligíveis mais universais; etc.


Tendo em vista tudo o que foi assinalado até aqui, com relação ao modo elevado de conhecimento angélico — e portanto demoníaco —, diga-se que a criatura espiritual conhece as coisas de três formas principais: 1ª.: o já citado conhecimento presencial (a posse do inteligível hic et nunc, numa fulgurante intuição direta das essências das coisas); 2ª.: o conhecimento certo (o futuro necessário, deduzido das causas essencialmente ordenadas)1; 3ª.: e o conhecimento conjectural, também mencionado (o futuro contingente, deduzido de causas acidentalmente ordenadas). Neste último caso, é possível ao anjo errar, pois, embora as suas deduções sejam precisas ao extremo, não abarcam a completude dos modos de ser da realidade, daí Santo Tomás ter provado que somente Deus pode conhecer perfeitamente os futuros contingentes, pois tudo para a Sua inteligência é presença; só Ele, pois, é omnisciente.


Finalizando o quadro, podemos dizer que um evento futuro pode ser conhecido em si mesmo, ou nas causas de que depende. O primeiro modo só cabe a Deus, Ser perfeitíssimo e, portanto, superior a qualquer ordem temporal — pois Ele não apenas é eterno, mas é a própria eternidade sem a qual sequer poderia haver tempo, como mostra o Nougué no segundo DVD da série A Síntese Tomista, intitulado “O Tempo e a Eternidade em Santo Tomás de Aquino”. Sendo assim, o futuro para Ele não há.


Com relação ao segundo modo, vale reiterar o que ficou acima assentado, mas com outras formulações:


Ø Certos sucessos ou eventos dependem de causas necessárias, ou seja, não podem não acontecer num dado contexto (por exemplo, a aurora). Este e qualquer outro futuro necessário pode ser conhecido perfeitamente pelo demônio, cuja inteligência agudíssima penetra os segredos da natureza;


Ø Outros sucessos ou eventos dependem de causas acidentais radicadas em algumas tendências do ente. Trata-se aqui do futuro conjecturável, que não pode ser conhecido perfeitamente pelo demônio, mas em muitos casos pode ser deduzido com grande probabilidade de acerto, mas não mais que isto. A propósito, o demônio somente tentou a Cristo porque o seu conhecimento acerca da pessoa de Nosso Senhor era conjectural, e não presencial apodíctico, como se afirmou alhures;


Ø Por fim, outros sucessos provêm de causas imprevisíveis, ou seja, que podem produzir este ou aquele efeito de forma indiscriminada (por exemplo, diante de um mesmo fato, um homem converte-se à fé e o outro se perde). É o chamado futuro livre ou contingente, que não está à mão de nenhuma criatura prever.


Ditas estas coisas, concluamos dizendo que o conhecimento do demônio acerca da natureza humana é superior ao do próprio homem, mas ainda há mais: o conhecimento presencial dos demônios acerca de um enorme conjunto de acidentes individuantes deste ou daquele homem é também elevadíssimo. Por exemplo, ao contemplar um indivíduo qualquer, um demônio — cuja inteligência não possui o obstáculo da matéria — conhece todos os seus detalhes corporais (ex.: se há alguma artéria entupida, a quantidade de sangue circulante no corpo, os dentes bons e cariados, etc.).


Ora, como boa parte dos pecados têm ressonância no corpo, um demônio com poucas informações consegue muitas vezes ter a clara visão da situação espiritual de um homem (se é tendente à gula, à luxúria, à ira, etc.). Daí que, conhecendo essas tendências viciosas, bastará a ele apresentar ou sugerir as imagens que induzirão o homem a atualizá-las.


O que os satanazes não podem, de maneira alguma, é prever com grau máximo de certeza se o homem tentado cairá ou não, pois, como ficou acima dito, só Deus conhece os futuros contingentes.


(continua)





[1] Quem me adverte com relação ao conhecimento certo (intermediário entre o presencial e o conjectural) é também o nobre amigo Luiz Astorga, que atualmente está se doutorando com uma tese sobre o estatuto ontológico das formas inteligíveis angélicas. Um tomista de quem todos ainda ouviremos muito falar no Brasil.

domingo, 15 de maio de 2011

Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, consagrada ao Imaculado Coração de Maria



Sidney Silveira

Graças a uma iniciativa dos monges do Mosteiro da Santa Cruz, em Nova Friburgo (RJ), que tem a D. Tomás de Aquino como prior, esta cidade serrana fluminense (que sofreu com o terrível flagelo das enchentes, há poucos meses) foi consagrada — no dia 13 de maio!! — ao Imaculado Coração de Maria. Leia-se a notícia no blog do Seminário Permanente de Estudos Sociopolíticos Santo Tomás de Aquino - SPES, onde há também algumas fotos deste acontecimento maravilhoso para os cidadãos friburguenses.

sábado, 14 de maio de 2011

O sistema das pequenas detrações

Sidney Silveira


Com honrosas exceções, a chamada “vida acadêmica” no Brasil é hoje o mais lúgubre cemitério da inteligência. Não que os que lá estejam sejam propriamente burros, pois a última coisa a dizer de pessoas maquiavélicas é que são burras; mas sem dúvida essas trágicas personagens compõem o quadro de uma singular estupidificação coletiva. Contempladas de uma perspectiva espiritual, são antes de tudo dignas de compaixão, pois se tornaram vítimas do próprio estupor, da autocastração de suas potências superiores. Quem conhece bem as lides dos departamentos acadêmicos (sobretudo nas universidades públicas brasileiras), entende perfeitamente o que digo: politicagem, conluios, favorecimentos ilícitos, detrações e mentiras de todo tipo; enfim, muito pouco há ali que nos remeta ao nobre fim da academia: produzir ciência em sua acepção mais elevada.(1) Com exceção, como se disse, dos heróicos esforços isolados.


Algo análogo se pode dizer de alguns intelectuais católicos hoje atuantes na universidade, nos seminários modernistas ou em institutos de filosofia bancados financeiramente por gente cujo interesse é contrário aos fins da Igreja. Praticam sem nenhum pudor uma espécie particular de bullying (para usar uma expressão em voga) contra estudiosos ligados à Tradição, ou seja, contra os que dizem – publicamente, como é o correto – um veemente “não” às absurdidades doutrinárias, pastorais e litúrgicas da Igreja pós-Conciliar. “Cuidado com fulano, que ele fala mal do Papa”; “Sicrano é cismático porque apóia a FSSPX”; “Aquele outro é sedevacantista enrustido”. Obviamente não se dão o trabalho de destrinchar racionalmente tais assertivas (verdadeiros slogans mentais nos quais escolheram acreditar), nem respondem às objeções, talvez por não quererem ver o tamanho de sua omissão em matéria grave. No fundo, esses choramingas lembram-me uma musiquinha regravada pelo palhaço Tiririca (eleito recentemente deputado federal em nosso maravilhoso sistema político): “O Tunico me bateu!”.


Certamente esses professores não são como os esquerdistas da academia, pois ao menos têm o Evangelho em seu horizonte. Mas, apesar de não chegarem ao nível de baixaria dos esquerdistas, a detração que praticam é mais culpável, pois estão devidamente inteirados acerca do certo e do errado em doutrina moral. Apenas se esquecem disto – seja para defender os seus empregos, seja para não ficar mal com os amigos, seja para não ver a verdade ou sequer inquirir acerca dela, permanecendo assim numa cômoda posição alimentada pelo falso conforto psicológico de quem tapou as narinas para não sentir o odor nauseabundo, de quem fechou os olhos para não ver o óbvio. Quando penso que a inquirição da verdade é justamente o próprio da ciência filosófica que alguns deles estudam, fico assombrado. Estão tornando-se talentos perdidos ou mutilados.


No que diz respeito à minha pessoa, este pequeno sistema de detrações sequer magoa, pois estou vacinado contra atitudes desse tipo, e, ademais, já espero por elas, porque conheço o ônus da independência de ação em tempos moralmente decadentes. Essas pessoas precisarão aumentar bastante o bullying para causar algum estrago, pois as publicações da Sétimo Selo e os cursos do Instituto Angelicum continuarão (se for da vontade de Deus, é claro), assim como os projetos em parceria com outras editoras. Se pelos frutos se conhece a árvore, prefiro deixar que eles falem por si; não vou dar-me o trabalho de me defender de nenhum disse-me-disse.


Tenho é esperança de que algumas dessas pessoas (que nos acompanham atentamente), ao verem que ter coragem não faz mal a ninguém, e que as boas obras impõem-se por si, se imbuam de um espírito mais construtivo e, sobretudo, mais de acordo com a fé que professam.


E deixem de ficar murmurando por aí contra nós, porque pega muito mal para homens feitos...


Em tempo: Observe-se que não reclamo aqui de divergirem de nós (refiro-me agora a mim e ao Nougué), nem de nos acharem pessoas de quem se deva manter certa distância; isso não é problema. Refiro-me a essa atitude de bastidor, de ferir a honra do próximo por trás, como numa punhalada. Atitude próxima da contumélia...


(1) As histórias que conheço são incontáveis. Tenho um irmão professor universitário que vive há anos este ambiente insalubre, e o mínimo que lhe aconteceu foi sofrer um Acidente Vascular Cerebral – AVC, após um período de grande pressão psicológica. Com a graça de Deus, depois de um tempo ele recuperou-se totalmente (não teve seqüelas de nenhuma ordem) e retomou as suas atividades, desta vez escaldado para não ser vítima do mesmo tipo de malefício.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sobre demônios e endemoniados (III)

Sidney Silveira


De acordo com alguns dos maiores teólogos da história da Igreja, entre os motivos pelos quais Deus permite a possessão diabólica estão:


a) o aumento da glória de Deus[1], devido ao fato de que, por meio dos possessos, se manifestam de forma patente as perfeições e a autoridade divina; b) a manifestação da verdade da Religião Católica (a verdadeira religião), pois somente ela é dotada de poder sobre as forças infernais, por delegação direta de Cristo; c) o castigo dos pecadores, em especial dos mais obstinados que pecam contra o Espírito Santo; d) o proveito espiritual dos bons, ou seja, dos justos; e) os ensinamentos que se extraem de cada caso de possessão, tanto acerca do mundo espiritual como a respeito da condição humana.[2]


Da parte do Lúcifer e de todos os seus seguidores, a causa da possessão é simplesmente o imenso ódio que os demônios têm dos homens e o prazer que sentem ao perdê-los, ao retirá-los do caminho conducente ao céu. Vale dizer que os demônios, se não fossem limitados por Deus, perderiam a humanidade inteira, em razão de sua absoluta superioridade ontológica em relação a nós, nesta gradação de ser que vai da matéria prima ao Ato Puro da essência divina.


Como ficou anteriormente assentado, a possessão é uma das quatro formas de ação diabólica sobre o homem, e, em boa parte dos casos, dão-se algumas predisposições humanas para que se chegue a tal ponto. A principal é a seguinte: o indivíduo que leva uma vida de pecado em matéria grave acaba transformando-se em merecedor desta triste condição de endemoniado, embora não se deva pressupor que a possessão represente sempre um castigo dos pecados do possesso; não foi tão rara na história da Igreja a possessão de homens justos e bons, para se cumprirem alguns dos motivos acima arrolados da permissão divina para esse tipo de mal. A propósito, é sobre as almas boas que o demônio preferiria agir sempre, pois o pecador em estado de pecado mortal habitual já está, de alguma forma, sob o domínio satânico, razão pela qual é justamente contra os que buscam a santidade que o Maligno mais gosta de agir.


Com relação ao modo da possessão diabólica, diga-se que ele está circunscrito ao que a sua forma entitativa é capaz de atualizar, na ordem do ser. Assim, por exemplo, tendo as criaturas espirituais domínio sobre a matéria – que, em sentido metafísico, é absolutamente inerte, pois não pode passar por si mesma da potência ao ato –, elas conseguem realizar quaisquer movimentos locais sem a menor dificuldade. Assim, os demônios podem mover objetos de um lugar a outro, para sugestionar uma alma que esteja sob o influxo da infestação local. Observe-se que este domínio sobre a matéria é extrínseco, ou seja, não é dado aos entes espirituais criar a matéria nem mudar a substância de forma direta e imediata. Como salientam alguns teólogos e exorcistas, os demônios podem mudar internamente a matéria tão-somente de forma indireta e mediata, ou seja, alterando a qualidade das substâncias pela mescla de elementos.


No caso do homem, também a ação satânica é direta e imediata apenas sobre o corpo e suas potências, sendo indireta e mediata sobre a alma. Em síntese, o demônio influencia a alma só a partir daquilo em que ela é dependente do corpo para atuar. Assim, ele é capaz de trabalhar sobre a imaginação (sentido corporal interno) sugerindo formas que possam causar medo, desejo, ira, etc., e desta forma predispor a vontade a escolher mal, obliterada por paixões. Mas não pode o demônio agir diretamente sobre a vontade, razão pela qual não está em seu poder obrigá-la a querer pecar, mas apenas induzi-la a fazê-lo atuando sobre o corpo predispositivamente. Por exemplo: o demônio pode acelerar os batimentos cardíacos de uma pessoa e dar a ela a sensação de morte iminente, para induzi-la a cometer algum pecado específico sobre o influxo do medo – que, como se diz neste conto, em geral não é outra coisa senão um desgoverno na imaginação.


Dadas estas premissas, reiteremos: os demônios só podem exercer alguma influência sobre as atividades intelectivas e volitivas humanas de forma indireta e limitada.


No próximo texto, veremos de que forma estas criaturas espirituais maléficas podem atuar sobre a inteligência e a vontade do homo viator, deste peregrino pelo vale de lágrimas que é o mundo.


____________


[1] Diga-se que, sendo Deus absolutamente glorioso, em si mesma a Sua glória não pode aumentar. O que aumenta é o que os teólogos chamam de glória extrínseca, ou seja, a glória que os homens tributam a Deus, embora Ele não necessite dela.
[2] Estes são apenas os principais motivos da permissão divina para a possessão. Alguns teólogos enumeram outros motivos, como: 1- para que as pessoas próximas ao possesso se arrependam e se convertam; 2- para manifestar a omnipotência e a misericórdia divinas; 3- para provar os eleitos em sua santidade; 4- para humilhar o demônio; 5- para mostrar aos homens que os demônios existem e que é necessário se precatar contra eles; 6- para evitar o aumento da culpa do endemoniados; 7- etc.

Problemas no Blogger

Sidney Silveira

Devido ao problema com o Blogger de ontem para hoje, alguns artigos do Contra Impugnantes foram deletados, à minha revelia (entre eles o anúncio da palestra sobre o amor em Tomás de Aquino, a realizar-se no próximo dia 24/05, e o texto Sobre demônios e endemoniados [III], que postarei novamente). Aos confrades que escrevem noutros blogs, sugiro: confiram os seus arquivos e verifiquem se o problema atingiu também os textos mais antigos. E, a propósito, salvem todos os arquivos em suas máquinas — por via das dúvidas.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

"O amor na perspectiva de Tomás de Aquino", palestra no dia 24/05, na Livraria da Travessa

Sidney Silveira

No próximo dia 24/05 (terça-feira), a partir das 18h, farei uma breve palestra na Livraria da Travessa (Travessa do Ouvidor, 17, Centro, Rio de Janeiro): O Amor na Perspectiva de Santo Tomás de Aquino. O evento será por ocasião do lançamento do livro O Êxtase da Intimidade, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, editado pela Sétimo Selo. Os amigos cariocas estão convidados! A data anterior (19/05) foi alterada a pedido do livreiro.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Trecho de aula de grego

Sidney Silveira

Disponibilizo neste link o trecho de uma aula da Profª. de grego clássico Rita Codá (trabalhando um texto evangélico), autora da tradução do Protréptico de Clemente de Alexandria que apresentaremos pela editora É Realizações, em breve, com prefácio meu. A propósito, quando o site do Instituto Angelicum ficar pronto (encomendei-o há pouco tempo), a idéia é oferecer vários cursos pela internet, entre os quais os de língua grega (com a Profª. Rita) e latina (com um Prof. aqui do Rio de quem falarei quando chegar o momento). Esta era a outra notícia que eu dar no post anterior, mas como esqueci-me dou-a agora...

P.S. Pensando nos livros editados por nós nestes últimos anos, assim como nos cursos (tanto os de filosofia e teologia tomistas, como agora esses de idiomas, que, se Deus quiser, conseguiremos levar adiante, pela internet), ocorre-me o seguinte: costumo trabalhar com amigos! E isso por um motivo especial: em iniciativas desta envergadura, é necessário que todos os envolvidos dêem o melhor de si e ponham vaidades e/ou picuinhas de lado, para que o resultado seja efetivamente bom. Ora, em se tratando de aparar as arestas, nada como estar entre amigos, ou seja, entre pessoas que têm confiança entre si, amam a verdade e a colocam acima de contingências de quaisquer ordem.

Cinco novidades!

Sidney Silveira

Anuncio por aqui cinco notícias a respeito de alguns projetos:

1ª.: O Prof. Nougué pôs no ar o blog do Seminário Permanente de Estudos SocioPolíticos Santo Tomás de Aquino - SPES, criado por ele juntamente com o pessoal do Index Bonorvm, iniciativa que tem a direção espiritual de D. Tomás de Aquino, prior do Mosteiro da Santa Cruz, em Friburgo (RJ), e da qual fazemos parte eu e mais alguns outros amigos. Um espaço de luta em defesa da fé que não fará concessões doutrinárias ao modernismo;

2ª.: No próximo dia 19/05 (uma quinta-feira), farei uma palestra no Rio de Janeiro, na Livraria da Travessa (da Travessa do Ouvidor, no Centro), sobre o amor em Santo Tomás de Aquino, no lançamento do livro O Êxtase da Intimidade, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz;

3ª.: Anuncio para breve a edição bilíngüe da Questão Disputada sobre a Ciência de Cristo, de São Boaventura, em excelente tradução do Prof. Ricardo Belei, do Paraná. Um clássico da escolástica ineditíssimo em língua portuguesa, que teremos a alegria de apresentar ao público brasileiro;

4ª.: Outro clássico — desta vez do tomismo de meados do século XX — também será apresentado em breve: "Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino, do teólogo Celestino Pires. Obra simplesmente sen-sa-cio-nal (citada reiteradas vezes no Contra Impugnantes). Trata-se de um dos livros mais extraordinários que li nos últimos anos, e que aborda a difícil problemática das relações entre a inteligência e a vontade, e o seu papel no tocante ao pecado. Celestino Pires vai da impecabilidade divina à pecabilidade do Anjo e a do homem (este último, tanto no estado de inocência como depois do pecado original);

5ª.: Atendendo a um gentilíssimo convite do Pe. Renato Leite, de São Paulo, no próximo dia 28 de maio (um sábado) estarei na terra da garoa para um dia inteiro de palestras sobre Santo Tomás de Aquino, evento que será encerrado com a Santa Missa no Rito Tridentino. Ainda nesta semana, darei os detalhes a respeito desse dia.

Finalizo com um aviso a meu ver igualmente importante: os projetos do Protréptico, de Clemente de Alexandria, e da Questão Disputada Sobre a Alma, de Santo Tomás (que sairão pela editora É Realizações), estão em fase de finalização. No caso do Clemente, a pequena demora explica-se pela revisão final do texto grego pela tradutora Rita Codá, do Mosteiro de São Bento do Rio; e no de Tomás de Aquino, por uma simples questão cronológica (pois somos poucos, para tocar tantos projetos). Esta obra estará pronto logo em seguida à do paleocristão de Alexandria. Quem puder, reze na intenção dessas publicações, ou seja: para que tenhamos força para fazê-las de acordo com a vontade de Deus e com o capricho filosófico e doutrinário que merecem — e que a dramática situação do tempo presente exige.

sábado, 7 de maio de 2011

"João Paulo II: o beato, o super-homem e o místico", interessante artigo do Pe. João Batista A. Prado Ferraz Costa.

"O estrondo publicitário, o espalhafato midiático, o grande sucesso de marketing em torno da beatificação de João Paulo II não conseguem esconder a realidade de que uma considerável parcela de católicos (entre os poucos que ainda conservam íntegra a fé e a sã doutrina) está perplexa ante a elevação à glória dos altares de um papa que, durante o seu longo pontificado, não levou em devida conta a tradição bimilenar da Igreja, mudando completamente o modo de agir da Igreja, principalmente no que concerne à sua relação com as religiões falsas.


A primeira coisa que nos escandaliza na beatificação de João Paulo II, como bem observou um jovem católico, é que a pressão da sinagoga contra a beatificação do grande Papa Pio XII teve mais força nos corredores do Vaticano do que os argumentos teológicos sólidos de tantos católicos contra a beatificação de João Paulo II, um papa que chocou os fiéis com atitudes como o beijo do Corão, o sinal dos adoradores da deusa Shiva que recebeu de uma sacerdotisa indiana. Realmente, esses dois pesos e duas medidas adotados pela alta burocracia vaticana, herdeira das benesses de João Paulo II, são de pasmar.


Além dos argumentos de ordem teológica contra a beatificação de João Paulo II, há graves manifestações de desconcerto da parte de católicos que se julgam afrontados por várias atitudes do neo beato. Houve reação não só dos cubanos mas também de católicos da Silésia, que foram no século passado deportados e tiveram suas casas invadidas e seus bens esbulhados pelos comunistas polacos. Trata-se de um dos maiores crimes da história do século XX. Por ocasião de sua visita àquela região, João Paulo II, que gostava de fazer discursos em reparação dos “pecados históricos”, não disse uma palavra sequer.


Todavia, cumpre reconhecer que João Paulo II demonstrava tanta desenvoltura, tanta segurança em seus atos, que constituía uma personalidade singular que merece acurado exame da parte de todas as pessoas que tenham interesse pela vida dos grandes personagens da história.


A mim João Paulo II sempre me fez lembrar dois ideais de homens traçados por dois pensadores modernos: o super-homem de Nietzsche e o místico de alma aberta, de Bergson.


Com efeito, ao contrário do que pensa muita gente, Nietzsche, embora fosse um inimigo do cristianismo, não era um niilista. É verdade que queria destruir o cristianismo, 'responsável pela ascensão da escoria', para dar lugar a uma nova aristocracia que, por meio do super-homem, produzisse uma cultura superior. Mas queria uma nova tábua de valores cunhada pelo homem forte. Não queria a negação de valores como o asqueroso Jean- Paul Sartre. Por exemplo, Nietzsche não era um defensor da libertinagem; Sartre, sim; em sua medonha vida privada bem o demonstrou.


Pois bem. João Paulo II, por um lado, assemelha-se muito ao super-homem de Nietzsche por ter promovido a religião do homem, por ter conseguido uma síntese entre o humanismo ateu moderno e a Igreja reformada pelo Vaticano II. Hoje, a Igreja, em diálogo com todas as correntes ideológicas e religiosas da humanidade, tem como preocupação maior o bem do homem, tanto assim que disse João Paulo II “o homem é o caminho da Igreja.”


Realmente, só um super-homem carismático como João Paulo II poderia ter realizado tal transmutação de valores e mentalidades. Antes, os católicos eram rígidos e intransigentes em sua convicção de que sua religião era a única verdadeira e a observância do decálogo era necessária para a salvação das almas. Hoje, a maioria dos católicos acha que o importante é a confraternização entre as religiões para a defesa dos direitos humanos e combate da homofobia. E não se fala mais em alma, conceito metafísico completamente esquecido e embolorado.



Por outro lado, João Paulo II assemelha-se muito ao místico da teoria de Henri Bergson sobre a moral e a religião abertas. Como se sabe, Bergson dizia que os grandes místicos, não só os católicos e judeus do Antigo Testamento, mas também os pagãos, são os protagonistas das grandes transformações da humanidade.


Efetivamente, aquela religião estática e fechada da Contra-Reforma, que anatematizava com o syllabus toda modernidade, foi suplantada, graças à mística de João Paulo II, por uma religião aberta e dinâmica a serviço da humanidade. Daí ser ele comparável ao místico de Bergson.


Mas esse dinamismo de nova religião aberta e em evolução lembra não só a filosofia do élan vital de Bergson. Encerra, outrossim, inegavelmente, elementos do pensamento esotérico de Teilhard de Chardin, autor apreciado pelo novo beato. De fato, hoje vemos a Igreja, por meio do ecumenismo e diálogo inter-religioso, promovendo a unidade do gênero humano em direção a um patamar superior, o ponto ômega de Chardin, onde tudo e todos estariam unidos em uma síntese de puro amor!


Alguém poderia objetar – e eu concederia de bom grado – o papa João Paulo II era um homem piíssimo, devoto sincero de Nossa Senhora, arauto dos valores familiares católicos e denodado defensor da vida contra a cultura da morte e a lama da imoralidade da sociedade moderna. Tudo isso é verdade e o distingue com razão do seu sucessor. Certamente, tudo isso tem mérito diante de Deus e da história da Igreja. Mas resta saber qual foi seu legado maior. Infelizmente, estou convencido de que não será esse o seu legado. Se fosse, com certeza sua beatificação não teria tamanha repercussão. É muito mais festejado como um super-homem ou como um místico reformador da humanidade.


De modo que, diante de uma beatificação tão estrepitosa e controvertida e na expectativa de uma muito provável canonização de João Paulo II em breve impõe-se aos católicos a questão do valor de tal juízo da Igreja.


Creio que o teólogo Bernardo Bartmann é muito feliz na elucidação deste problema. Transcrevo a seguir trechos de sua Teologia Dogmática que explanam o tema.


“A questão da infalibilidade na canonização dos santos, pode-se considerar histórica e teologicamente. Os primeiros santos foram, além dos Apóstolos e Profetas, os mártires, cujos nomes eram escritos pelos bispos no elenco oficial dos reconhecidos pela Igreja. A inserção era feita depois de juízo maduro, acerca da vida anterior do mártir e não se aceitava qualquer um. A propósito dos três primeiros séculos, o protestante H. Achelis observa que os bispos exerciam um controle severo e recusavam os falsos mártires. Mais tarde, aos santos mártires acrescentaram-se os santos “confessores”: Antonio, Paulo, Atanásio, Efrém, Martinho de Tours. Era mais fácil constatar a realidade do martírio, do que a santidade dos confessores: para estes, o povo tomava parte no julgamento, mas ao bispo competia, em última instância, admiti-los nos catálogos.


(…)


Ao dealbar do ano 1000, a Igreja procurou, mediante fórmulas fixas, regular, pouco a pouco, o culto dos santos, mas só o conseguiu de modo definitivo em 1600. Na época pós-tridentina, surgiu a questão teológica. No tempo do Concílio de Trento, Tomás Badia (1483-1547), mestre dos Sacros Palácios, sustentou contra Ambrósio Catarino que a Igreja, ao honrar os santos, podia cair em erro. Afirmava dever crer-se na glória dos santos em geral, não porém na gloria de cada um em particular; afirmava, pois, que era preciso distinguir entre credere ex pietate e credere ex necessitate fidei. Nas canonizações, a Igreja não pode tomar por base a revelação, mas somente os testemunhos humanos, concernentes à vida e aos milagres, testemunhos sempre examinados com grande rigor. A quase totalidade dos teólogos, hoje, considera infalível esse juízo da Igreja mas a tese da infalibilidade da Igreja neste caso é julgada diversamente. Pesch diz que alguns a têm por uma “pia sententia”, ao passo que para outros, entre os quais Bento XIV, é de fé.


(…)


As dificuldades a se resolverem são as seguintes: antes de tudo, não está absolutamente claro se a Igreja quer definir o fato de que o santo em questão tenha chegado à visão de Deus. (…) Enfim – a principal dificuldade - deve-se acrescentar que é impossível, sem uma revelação divina, chegar a uma certeza de fé sobre o estado de graça de uma alma (Trid. S. 6, c. 12, Denz. 805). Acrescente-se que a Igreja, depois da morte dos Apóstolos, não recebe mais nenhuma revelação. A predestinação é um mistério imperscrutável. A Igreja, nas indagações sobre a vida dos santos, baseia-se não sobre testemunho divino, mas tão somente sobre informações humanas e elementos naturais que podem sempre ser subjetivos. Deus pode testemunhar em prol dos santos por meio de milagres. Mas também estes, como a mesma canonização, não têm relação íntima e direta com as verdades reveladas. Acrescente-se que esses milagres só podem reconhecidos por quem neles crê, mas essa fé não é obrigatória. A velha controvérsia sobre se é possível provar um dogma com um milagre que é notório na Igreja foi resolvida negativamente.


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Sheid, tratando da infalibilidade do papa na canonização dos santos, escreve: “A dificuldade do problema está em se encontrar uma prova verdadeiramente satisfatória desta infalibilidade, cuja existência se afirma. (…) Não é por isso fácil estabelecer, de modo claro e probativo, que ela, em toda a sua extensão, entre também no âmbito da infalibilidade da Igreja.”


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Em todo caso, os atos da canonização só podem ser aceitos por fé geral eclesiástica e não por fé divina. (…) Se no número dos santos encontramos algum “falso” santo, como Barlaam e Josafat, o culto relativo que lhes é prestado vai a Deus. Como um rei pode ser honrado num pseudo-embaixador, assim, Deus, num pseudo-santo.[1]”


Para remate, desejaria dizer que sei que corro o risco de ser tachado como antipático e presunçoso escrevendo estas linhas. Mas faço-o como o cumprimento de um dever de consciência, na esperança de que a Igreja, redescobrindo o caminho de sua tradição autêntica, condene o ecumenismo filantrópico maçônico, combata pelo Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, volte a fecundar a sociedade civil pela constituição de sólidas famílias e tudo aquilo de bom que o papa João Paulo II fez possa ser celebrado e o que houve de mau esquecido e confiado à misericórdia divina, da qual todos temos suma necessidade".


Pe. João Batista de A. Prado Costa


Anápolis, 2 de maio de 2011.


Solenidade de São José Operário


[1] Bernardo Bartmann, Teologia Dogmatica, v. 1, p. 68-70, Paulinas, 1962.


Em tempo (Sidney): O texto original (que apenas reproduzimos no Contra Impugnantes), está no site da Associação Civil Santa Maria das Vitórias. Não conheço pessoalmente o P. João Batista — o Nougué, sim, o conhece —, mas parabenizo-o efusivamente por este corajoso artigo, sobretudo no que concerne às ações práticas do papa João Paulo II arroladas nos primeiros parágrafos, pois, acerca do modus da infalibilidade das canonizações, em linhas gerais, estudarei a partir de agora com todo o afinco a questão (pois ocorreu-me uma dúvida lendo o trecho de Bartmann)... De toda forma, sobre as canonizações pós-conciliares, estou com o que diz o Pe. Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, após algumas páginas em que explica como foram "simplificados" os processos de canonização, que tinham um sentido prudencial profundo: "Ao retirar o fundamento de um rigoroso juízo de ortodoxia doutrinal, tudo o mais perde consistência: não há situação humana em que, com um pouco de imaginação, não se possam descobrir aspectos heróicos; nem há personalidade em que, com um pouco de publicidade, não se encontrem milagres. Depois da brutal simplificação dos processos sob João Paulo II, a Congregação para as Causas dos Santos transformou-se numa fábrica de santos em série para as necessidades pastorais do momento, sendo a principal de todas aureolar de santidade (...) a obra do Concílio".