Dizia com muito acerto José Guilherme Merquior que, historicamente, o liberalismo só se tornou possível graças ao colapso — no terreno ético-político — da noção cristã de Summum Bonum. Para o notável ensaísta, esse colapso resultou no fenômeno do individualismo moderno, ou seja: na dissolução da idéia de bem comum e na tendência ao empirismo em moral, dada a perda de todo aquele gigantesco edifício metafísico e teológico da Escolástica (cujo cume é Santo Tomás), o qual tinha como pedra angular a noção analógica de ente, e, em seu ápice, o Próprio Ser Subsistente, que não é outro senão o Summum Bonum cristão de que fala Merquior, no hoje amarelecido artigo intitulado “O argumento liberal”, em livro do mesmo nome.
A desconfiança nas instâncias de poder, que os liberais clássicos herdaram de Locke e Montesquieu, nasce não apenas de sua visão monolítica do poder público como lugar de violência, desmandos e coerção das liberdades individuais (ei-las de novo!!) — daí o seu ímpeto em limitar o poder e mantê-lo sob o que chamam, por uma analogia de proporcionalidade imprópria, de império da lei —, mas se deve consignar, também, a sua carência de uma boa antropologia filosófica e de uma gnosiologia minimamente aceitável, além da ignorância do beabá da metafísica. E, é claro, o caráter irreligioso que é um dos sustentáculos de sua política, a saber: o poder público, se se tolera haver algum (toc! toc! toc!, ugh! bah!, #!@#) nesse ambiente Estadófobo, deve respeitar in primis não a Deus, o Summum Bonum, mas a autonomia dos indivíduos, que passam a ter uma moral privada intocável por qualquer lei, humana ou divina. Assim, com o passar do tempo, a religião passará a ser, na melhor das hipóteses, apenas um dado cultural entre tantos outros, tão “respeitável” pela moral laica e por sua correspondente legislação quanto ir a uma orgia pansexual. Amigos, eis aqui o admirável mundo dos dias de hoje, em relação ao qual o de Aldous Huxley é “fichinha”.
Uma coisa não se pode negar. Estamos nos antípodas da noção católica tradicional, traduzida na idéia de Santo Tomás de que a religião é uma virtude anexa à da justiça, pois louvar a Deus e prestar-Lhe um culto agradável e digno é o primeiro dever de justiça dos homens, do qual nem indivíduos nem sociedades estão livres.
Outra coisa: se observassem um pouco, talvez os paleoliberais da virada dos séculos XVIII para o XIX percebessem que a violência não é prerrogativa do “poder”, mas do homem, em permanente e titânica luta contra as paixões que lhe atormentam a alma. Infelizmente, eles estavam muito ocupados em instaurar uma nova ordem (para a qual nada mais útil que uma Revolução, como a Francesa, a lhe aplainar o terreno!) e jogar a pá-de-cal sobre a ética do Sumo Bem, para dar olhos a uma obviedade antropológica daquelas. A propósito, o caráter anti-religioso em que germinou a visão de mundo liberal pode ser ilustrado pelo incrível caso das 16 heróicas freirinhas carmelitas de Compiégne, guilhotinadas por "atividades contra-revolucionárias" em 1794, enquanto entoavam serenamente uma Salve Rainha a caminho do cadafalso, pois se sabiam próximas do céu. É certo que, de meados do século XIX até hoje, surgiu um liberalismo que se pretendeu católico, mas essa é uma história para outro post.