terça-feira, 31 de dezembro de 2013


Sidney Silveira

A felicidade humana não se faz pelo somatório de vontadezinhas satisfeitas nem se mede por projetos de vida realizados no decorrer de determinado período. Mais importante é o estado de impassibilidade espiritual nas vitórias e nas derrotas. 

Portanto, os meus votos de "Feliz 2014" implicam não o sucesso e o aplauso dos homens — que, em geral, fazem mais mal que bem à alma —, e sim a sabedoria adquirida nas derrotas, pela qual o pó que somos se alça à máxima dignidade possível.

Em 2014 desejo a todos a proximidade do ideal da grande mística do Carmelo, Santa Teresa de Ávila, enunciado num dos mais belos poemas já escritos na língua de Cervantes — do qual destaco os versos iniciais:

“ Vivo sin vivir en mí,
y tan alta vida espero,
que muero porque no muero”.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Porta dos Fundos — conhecida por dicionaristas e lexicógrafos daqui e d’além-mar como “olho do cu”



Sidney Silveira
Aprendemos nas aulas de biologia que alguns bichos, como o escaravelho, se alimentam de merda. Há espécies deles, como o popular escaravelho vira-bosta, que parecem comprazer-se sumamente em suas atividades excrementícias, pois juntam considerável quantidade de cocô alheio — não raro muito superior ao peso do próprio corpo — e rolam essas volumosas bolas de fezes até as suas tocas, onde se empanzinam de esterco ao ponto de se sentirem repletos e regalados como os mais insaciáveis glutões de que se tem notícia. Por exemplo? O rico romano Trimalcião, personagem do Satyricon de Petrônio, que, para exibir-se perante comensais devoradores de chouriços e lingüiças, manda estripar um porco à frente de todos. Em resumo, degustar dejetos é a natural apetência desse escaravelho, êxtase merdoso no qual a sua vida alcança o ápice.

Ora, que besouros esquisitos comam dejetos até a repleção, vá; assim cumprem certa função na natureza e contribuem para o equilíbrio de alguns ecossistemas. Mas que homens se empanturrem de cocô mental, encontrando nesta infausta atividade alguma graça, por menor que seja, é um mistério absolutamente irresolvível para os maiores gênios que a filosofia já produziu, desde a Antiguidade mais remota aos tempos atuais.

Refiro-me ao grupo de “humoristas” chamado Porta dos Fundos, cujo sucesso é um dos vários signos distintivos do oceano de insanidade em que o Brasil se afoga. Trata-se de jovens flagrantemente estúpidos que se imaginam intelectuais a fazer humor “crítico”, em boa parte voltado contra a religião — particularmente a católica. Pelas entrevistas de algumas dessas criaturas em programas não menos lamentáveis que o tipo de “humor” que pensam praticar, de imediato se aquilata o quanto se irmanam nestas cabeças-de-bagre duas coisas que, juntas, são sempre nitroglicerina: soberba e ignorância. O rapazola chamado Gregório Duvivier a falar sobre ateísmo, por exemplo, deixaria os ateus teóricos de antanho vexados! Certamente lhe chutariam os fundilhos e o expulsariam pela porta dos fundos do seu clube.

Infelizmente, não estou à frente de um programa de entrevistas desses, pois reduziria a pó-de-mico o discurso desses pobres-diabos, com requintes de crueldade intelectual. Mas, como isto jamais acontecerá, limito-me a fazer referência a alguns dos últimos episódios desta camarilha de ignaros pretensiosos — sobretudo o blasfemo e sacrílego especial de Natal — para dizer o seguinte: todos os advogados, juízes, representantes do Ministério Público, procuradores e desembargadores católicos em geral, gente que conhece bem os trâmites do Judiciário, têm o DEVER de encher essas pessoas com tantos processos que elas passem o próximo ano tendo imenso trabalho para responder um a um. Os crimes que cometeram, sob o falso pretexto da “liberdade de expressão”, constam do Código Penal brasileiro.

Mas não basta isto: a idéia de levar adiante campanhas de boicote aos patrocinadores dessa turma é excelente, pois a dor no bolso é a melhor medida para pôr à prova as convicções de tais personagens. Um dos patrocinadores é a Cerveja Itaipava! Sugiro que entupam os e-mails da empresa (pelo link http://www.cervejaitaipava.com.br/, onde há uma área de contato), assim como o telefone de atendimento 08007279998, alertando para o fato de que, a continuar o patrocínio, o grupo que produz a cerveja pode ter reveses jurídicos e, o que é pior, problemas com a sua imagem institucional.

Quanto a Fábio Porchat, um dos mais conhecidos da trupe, não resistiria a cinco minutos de sabatina com um bom entrevistador que questionasse o ataque sistemático que, sob a falsa capa do humor, o grupo anda fazendo à religião por cujo intermédio foram lançadas todas as bases da civilização que, por várias razões, hoje rui tendo como símbolo da queda pessoinhas como ele, culturalmente patéticas porém de um esperto senso de oportunismo. Ele passará; ela não.

Pela portinha dos fundos desse pessoal sai uma bosta que nem o mais faminto escaravelho suportaria comer...

P.S. Perdoem os amigos pela referência chula, desta vez inescapável, no título deste breve texto. A analogia pareceu-me necessária e pertinente.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Noite feliz

Sidney Silveira

Nasceu o menino Deus.

"Miraculum omnium miraculorum", diz Tomás de Aquino fazendo referência a São João Damasceno. Milagre de todos os milagres, mistério inefável da união entre a natureza humana e a divina na Pessoa do Verbo Encarnado, Jesus Cristo.

Eis o sentido do Natal, a ser contemplado acima de todos os demais: "Verbum caro factum est" — o Verbo se fez carne. Todos os outros aspectos celebrados neste supremo ato da misericórdia divina para com a corrompida natureza humana estão ordenados ao mistério do amor infinito que, em sua epifania maior, se manifesta entre as coisas finitas. Dádiva das dádivas, gloriosa humildade e projeto de deificação do homem. 

Para apontar isto, cito as palavras do Doutor Comum da Igreja em seu "Comentário ao Credo" que indicam o caráter deificante da Encarnação: "Et sic factus est homo, ut hominem faceret Deum" (E se fez homem, para o homem fazer-se Deus). 

Com o nascimento de Jesus, a eternidade elevou o tempo à sua plenitude.

Nenhum indício da caridade divina pode ser mais evidente que o de Deus Se fazer homem para resgatar o homem, levá-lo à plenitude máxima. O contato com o triunfante amor infinito era a única maneira de regenerar o homem, fazê-lo compreender o quanto se degrada por todos os atos, palavras, pensamentos e omissões que o afastam de Deus. Daí a excelsa conveniência da Encarnação.

Oh! Vinde todos e adoremos o Salvador. 

Este é o único verdadeiro voto de Feliz Natal.

Que nesta noite então nos deixemos entranhar por esta verdade de incomparável beleza: 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Qual a diferença entre remorso e arrependimento?

Quincas Borba expõe a Brás Cubas — com o olhar rútilo dos loucos convictos — os princípios do seu "humanitismo"
Sidney Silveira

Pergunta-me um amigo reservadamente o que vai acima, e como talvez não seja de todo inútil a resposta, sobretudo para as pessoas que habitualmente me lêem e se dedicam à contemplação das mazelas humanas, respondo de público. 

Desta vez, faço-o sem recorrer à sabedoria escolástica de Santo Tomás de Aquino, a quem tanto amo, mas citando o ensandecido "filósofo" Quincas Borba — o mesmo que, certa vez, ao observar a inanidade de todas as aspirações nas quais os homens se afadigam debaixo do sol, fazendo de suas convicções a mal-disfarçada máscara do auto-enlevo em que a alma infla e se perde, dissera: 

"Ao vencedor, as batatas".

Pois bem: vejamos o que diz o peculiar Quincas Borba a respeito de um tópico da pergunta que dá título a esta postagem:

"(...) Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda".
(MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo CXLIX).

Com certo atrevimento, acrescento a esta precisa e concisa definição algumas brevíssimas palavras: o remorso pode ser, na melhor das hipóteses, uma covardia alimentada pelo pavor das conseqüências das más ações; o arrependimento, por sua vez, é a corajosa ida as causas dessas mesmas ações moralmente deficitárias — no reconhecimento de que o mal feito precisa ser reparado, de alguma maneira.

Eis a distinção entre o fardo e o alívio da consciência. 

Entre seguir o halo da luz — ainda quando venha da mais insignificante vela que crepita — e sucumbir às trevas.

EM TEMPO: Vale ainda dizer que a vitória sobre o remorso só se pode dar quando o vetor espiritual fixa-se em valores perenes calcados n'Aquele que não só vale mais que tudo — mas é também a medida do valor de todas as coisas que há: Deus. Aristóteles, que não conheceu a fé, dizia na Ética a Nicômaco: o homem, após depravar-se (ou seja, após ultrapassar certos limites), não tem mais como curar a alma. E humanamente tinha razão o Estagirita. Mas os cristãos, remidos pelo sacrifício da Cruz, viram que a graça aperfeiçoa a natureza e pode fazer o pior dos homens abrir os olhos do espírito, mesmo depois de chegar a baixíssimos escalões de imoralidade, de maldade, de insanidade. E, assim, reencontrar a bússola perdida com o exílio do paraíso — do qual todos temos nostalgia, consciente ou inconscientemente.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Via ad sapientiam - Pagina interretialis in qua tractantur omnia ea quae ad Latinitatis studium pertinent.


Blog todo em latim

Um presentinho do William Bottazzini!

Sirva de estímulo a quem quer aprender a língua de Cícero. 

Confiram-no aqui:


A propósito, AS INSCRIÇÕES PARA A PRÓXIMA TURMA DO CURSO DE LATIM DO INSTITUTO ANGELICUM CONTINUAM ABERTAS em:


P.S. Em breve daremos notícia de outros cursos do Angelicum programados para 2014
P.S.2. Fale, entenda, escreva e leia em latim — em dois anos, apenas: 




terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Aos amantes do velho esporte bretão que torcem pelo Flu, e aos idiotas da objetividade


Sidney Silveira

O sofisma futebolístico do final de ano

Moralmente, futebol se ganha no campo. (PREMISSA MAIOR) 
Ora, o Fluminense foi beneficiado por uma decisão extra-campo. (PREMISSA MENOR)
Logo, ganhou imoralmente. (CONCLUSÃO)



Defende Santo Tomás de Aquino em seu "Comentário aos Analíticos Posteriores" de Aristóteles que o verdadeiro silogismo demonstrativo não pode induzir à ignorância nem ao engano. E pontua que um silogismo pode ser falso de duas maneiras principais: ou porque a forma silogística é má, e então se dá apenas silogismo aparente; ou porque faz uso de proposições falsas (e um dos modos da falsidade é omitir elementos importantes duma premissa que só poderia valer se se dessem as circunstâncias devidas). Por favor, não nos venham acusar de estar usando tão elevada filosofia para tratar de assunto desimportante como o futebol. Na verdade, a lógica é a arte do bem pensar e em todas as ocasiões da vida em que sustentamos um ponto de vista convém fazê-lo de acordo com as regras da boa lógica. A cabeça bem ordenada é como uma casa limpa e arrumada; assim é sempre melhor.

O sofisma em questão consiste em omitir que futebol se ganha no campo de acordo com regras preestabelecidas. A propósito, perdoem-me as pessoas de moralidade emotiva e mutável como a direção do vento por lembrá-las de que a existência mesma do futebol como esporte praticado num campo retangular gramado, com padrão de 4.136 metros quadrados, duas balizas com 2,44 metros de altura e 7,32 metros de comprimento, duas linhas laterais ao longo do terreno e outras duas linhas ao fundo, um círculo central de 9,15 metros de diâmetro cortado por uma linha que divide geometricamente o retângulo do campo em dois quadrados, etc., tudo isso é assim por conta da existência de regras “extra-campo”. Em linguagem aristotélica, as regras são a causa final do jogo. A sua ratio ou razão de ser.

Quando o torcedor apaixonado grita “gol”, bem poderia ter em mente que o próprio conceito de “gol” é filho das regras do jogo: de acordo com estas, o escore** da partida de futebol muda quando a bola (cujo peso e medida são também definidos por regras!) entra numa das balizas, obviamente sem que na jogada aconteça um lance... contrário às regras! Em síntese, futebol se ganha no campo, sim, mas tudo nele — inclusive as vitórias — depende do estrito cumprimento das regras. Qualquer resultado que descumpra leis ou normas previamente aceitas pelos participantes da competição é imoral! Usemos de uma analogia jocosa para mostrar como, aqui, a premissa oculta é relevante: omitir isto seria mais ou menos como uma dedicada esposa dizer à sua mãe, numa conversa em privado, que o sofá de sua sala está com problemas, mas sem informar que tais problemas consistem no fato de que o seu amado marido mantém, sobre o sofá, noturnas atividades pélvicas lúbricas com a empregada da casa, em ritmo frenético, ao ponto de quebrarem o estrado do sofá. Em suma, a omissão dum fator importante em qualquer proposição nunca conduz à verdade.

E a verdade, caros amigos — nuazinha como Adão e Eva antes da queda original —, é que a vitória do Fluminense ontem no STJD foi a vitória da moralidade. E esta, no caso do futebol, está atrelada ao estrito cumprimento de normas e regras, como muito bem salientou o advogado Mário Bittencourt ao lembrar àquela corte que o princípio da moralidade, no caso em questão, é afim ao princípio da legalidade. Apartar o legal do moral, a propósito, foi obra do positivismo jurídico e este, por sua vez...  Bem, voltemos ao futebol!

Se o que suscitou o problema foi um erro crasso de adversários, vejo um elemento ainda mais interessante: o fado, diriam os gregos; a Providência Divina, digo como cristão. O Fluminense estava fadado a permanecer na série A! E, se a minha intuição não me engana, parece predestinado a vencer espetacularmente o campeonato brasileiro de 2014, contra tudo e contra todos.

Não lisonjeemos, pois, os nossos acusadores falsamente moralistas — dando-lhes razões indevidas. Mais do que nunca gritemos a pleníssimos pulmões:

“NEEENSE”!


P.S. Respeito os tricolores que pensam diferente, mas lhes digo: a vitória na justiça, da maneira como se deu, só fez aumentar o meu amor ao tricolor — ao pavilhão das três cores que traduzem tradição.

P.S.2. Tricolores, compartilhem!
** Uso o anglicismo "escore" de propósito, em homenagem aos inventores do futebol.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Pairam pirilampos na floresta...



Sidney Silveira

Um querido amigo pergunta-me qual seria a música representativa dos últimos 10 anos de PT no comando do país. A única que me ocorre de imediato é “O Vira” dos Secos e Molhados, grupo de grande sucesso na minha infância.

A explicação é simples:

Por uma "alquimia" muitíssimo bem tramada, o Partid(ão) fez com que boa parte da população brasileira acreditasse politicamente em sacis, fadas e pirilampos mágicos. Ou pior: fingisse acreditar. Transformou-nos numa mistura de “Sítio do Picapau Amarelo” com “Alice no País das Maravilhas”. Mundo surreal em que hoje uma ventríloqua semiletrada faz as vezes da Rainha de Copas — cortando não as cabeças, por mera desnecessidade, mas as consciências de uma parcela da população suficiente para reeleger a patota “ad nauseam”.

Nem com um rebolado mais feérico que o de Ney Matogrosso no vídeo abaixo o povão tem hoje saída, pois as demais opções além do Partid(ão) com alguma chance de ascender ao poder oscilam entre o psicodelicamente macabro e o eticamente mefistofélico.

Assim, passemos ou não com o gato preto debaixo da escada, o fato é que não há “santo” capaz de fazer o milagre de (re)civilizar o povo brasileiro a médio prazo.

Dá para começar de novo?

https://www.youtube.com/watch?v=vDvjecJOpa4

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Curso de Latim Clássico do Instituto Angelicum (nova turma)

Sidney Silveira


[leia, escreva, fale e entenda a língua de Cícero em apenas dois anos]

A próxima turma do Curso de Latim Clássico do Instituto Angelicum — que começa em janeiro de 2014 — terá um número menor de vagas. Portanto, aos que manifestaram interesse em se inscrever, aconselhamos que o façam logo para garantir a vaga.


Informações neste link do Instituto Angelicum: 



"Lingua Latina est via certa ad sapientiam". (Prof. William Botazzini).



O sublime é o acordo tácito entre a inteligência humana e algum aspecto do ser — que vem de Deus

Ave Maria Caccini

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Amor e sanidade


Sidney Silveira

A Martín Echavarría

O amor é o modo próprio da sanidade psíquica. Boa parte dos males da alma humana aponta para algum déficit de expansão amorosa, quando a vontade se desgoverna a ponto de prejudicar a compreensão do nexo hierárquico das coisas implicado nas escolhas humanas — dentre as quais o amor é a mais livre, pois ninguém pode ser coagido a amar. Noutras palavras, percebemos melhor o mundo, as pessoas e a nós mesmos nos atos de amor, quando a inteligência e a vontade, irmanadas, geram a virtus unitiva, expressão usada por Tomás de Aquino para designar a força agregadora desta radical inclinação da alma humana ao bem. O saudável dinamismo psicológico de uma pessoa depende de que essa tendência amorosa natural não seja obstada. Por isso, não erraria quem dissesse que muitas patologias anímicas são doenças do amor malogrado.

O amor aperfeiçoa a alma, refina-a, mas ele próprio pode e deve ser aperfeiçoado e refinado desde tenra idade com medidas que favoreçam a abertura da inteligência aos bens reais. Esta pedagogia do amor passa pela formação do caráter a partir da educação da sensibilidade, pela apresentação às crianças de coisas belas facilmente inteligíveis, como a harmonia dos sons, na boa música, e o contato com a natureza. Depois, com atos e palavras que evidenciem o valor do bem e da verdade como propriedades do amor. Alguém assim formado vai aos poucos entendendo, quase intuitivamente, que o amor é o fundamento da vida moral, na medida em que define a qualidade das ações de uma pessoa. Trata-se, é claro, de um aprendizado do intelecto prático, e não do especulativo.

A inteligibilidade do mundo aumenta na medida do amor, que potencializa os sentidos e predispõe a inteligência a lograr os seus atos próprios sem maiores impedimentos. Em resumidas contas, sabemos melhor as coisas que amamos, e mesmo o homem maligno que procura conhecer as fraquezas das outras pessoas para usá-las a seu favor está vetorizado pelo amor — um amor que é apetite desgovernado da própria excelência. Em suma, o amor é a raiz primária de todas as paixões da alma, estejam estas ordenadas ou não. Ele designa a relação real entre o ente dotado de potências intelectivo-volitivas e o bem, daí que a apetecibilidade de qualquer coisa é formalmente a sua “razão de bondade”, como salienta Patricia Astorquiza Fierro no ótimo trabalho Fundamentación Metafísica del Amor en Tomás de Aquino.

Sendo o amor o cumprimento mais ou menos satisfatório da radical orientação teleológica da alma humana ao bem, podemos dizer com o tomista Josef Pieper o seguinte: qualquer psicoterapia que ponha demasiada ênfase na auto-afirmação da pessoa será neurotizante. Levará o homem a mentir a si próprio nalgum grau para escapar às imagens inconvenientes ou dolorosas à consciência. Ocorre que esta camuflada e egolátrica fuga da verdade acaba por retroalimentar os problemas psíquicos, podendo gerar círculos viciosos de fobias e angústias quase incuráveis. Só quem se confronta consigo mesmo sem véus nem subterfúgios pode ultrapassar o umbral da sanidade. Em contrapartida, a insanidade, seja lá como a concebamos, sempre implica o naufrágio do "eu" hipertrofiado ou atrofiado, que se torna cego às coisas exteriores e, por isso, tem grande dificuldade de amar.

Tal confronto de um sujeito com o espelho de sua consciência é praticamente impossível sem que ele perceba a gradação de bens que há na realidade e compreenda o seguinte: a sua sanidade psíquica depende de que amor e bem estejam ordenadamente unidos. 

Em suma, quem ama mais intensamente, escolhe melhor. E se considerarmos que os santos amaram intensamente o que é mais amável — ou seja, Deus —, seremos obrigados a reconhecer, com Pieper, que neste mundo só os santos estão plenamente livres da neurose, ao passo que os demais homens precisam combatê-la enquanto houver vida.

A sanidade dos santos provém de que souberam hierarquizar devidamente o amor. Daí alcançarem a paz, mesmo quando em guerra.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Messianismo político, civilização terminal

Barrabás (Gustave Doré)

Sidney Silveira
Ao amigo Carlos Nougué

Universi, qui te exspectant, non confundentur, Domine.
Salmo XXIV

Quando Pôncio Pilatos volta-se à furiosa turba de judeus e pergunta quem ela quer que seja solto, Cristo ou Barrabás, está falando a homens de todos os tempos. Por trás da indagação do præfectus romano da Judéia se oculta um profundo dilema: cimentar a base social em ardilosos estratagemas humanos ou erigi-la sobre a pedra angular das leis divinas, fonte inalienável dos poderes terrenos, conforme assinala o próprio Cristo quando diz ao vacilante algoz à Sua frente que não teria nenhum poder de libertá-Lo ou de condená-Lo, se não lhe tivesse sido dado do alto. A escolha ali simbolizada é entre construir a Pólis depositando total confiança em homens facciosos — hoje o eufemismo social vigente os considera “democratas” integrantes de partidos políticos — ou na sabedoria eterna. Entre tomar como modelo das ações humanas, e portanto da política, o verdadeiro Messias ou os falsos.

Ora, toda sociedade decadente descamba para o messianismo político. Não há exceções históricas. Por esta razão, no caso de Cristo — situado entre uma Roma imperial corrompida, já afastada dos elevados princípios republicanos que a erigiram, e o elitizado e pretensioso judaísmo farisaico —, a escolha não poderia recair senão sobre Barrabás, o revolucionário zelote.[1] Cristo já o sabia por presciência divina, como também tinha a pleníssima noção de que, com o Seu sacrifício, traria ao mundo a possibilidade de reestruturar-se noutros paradigmas: a caridade, e não a cupidez, passaria a servir de fermento para o corpo social, dos estratos mais humildes e desvalidos aos governantes. O caminho foi longo até a Cristandade gerar as autoridades públicas mais sábias e prudentes de que se tem notícia. Mas ela, de acordo com os desígnios da Providência, também estava marcada para decair, e a queda foi lentamente agônica.

Nenhuma sociedade se desfaz sem perder substância espiritual — e o primeiro grande degrau nesta direção é o farisaísmo religioso, a um só tempo formalista e confiante no seu próprio saber. Tal atitude em geral consagra a letra e mata o espírito do qual ela é apenas símbolo; assim, a religião corrompe-se paulatinamente e os estudiosos das coisas divinas começam a sofisticar o discurso a ponto de se sentirem hermeneutas privilegiados das Sagradas Escrituras, embora sem haver recebido nenhum carisma para tanto. Incapazes de humildemente conservar a tradição recebida, reformam-na fazendo uso de palavras e conceitos de sua própria lavra, e após a sofisticação vem sempre a degradação. Em síntese, toda e qualquer civilização começa a ser destruída por maus teólogos, ou seja, por estudiosos novidadeiros das coisas divinas, e com a cristã não poderia ser diferente. A propósito, ponha-se na conta de dois frades franciscanos o lançamento das longínquas sementes do caos espiritual que se espraiou para o terreno da política e, séculos depois, acabou por gerar a modernidade: Duns Scot e Guilherme de Ockham.

Para se ter idéia, na opinião do Doutor Sutil o homicídio, a traição e a mentira não são coisas intrinsecamente más; elas são más tão-somente porque Deus as proibiu — e o fez por Sua libérrima vontade. Para Scot, no horizonte da moral a vontade divina é a única e exclusivíssima fonte do bem e do mal,[2] e, por esta razão, segundo o seu tresloucado parecer, apenas os dois primeiros mandamentos das Tábuas da Lei entregues a Moiséis no Sinai — referentes a Deus — são indispensáveis e universais. Todos os demais são bons apenas porque Deus quis que fossem, mas poderiam ser maus se Ele assim decidisse. Em Scot não existe nenhuma lei necessária na natureza, nem mesmo uma lei eterna da qual provenha, mas só a vontade divina a pairar como que tiranicamente acima de tudo; Ockham repetirá estes princípios voluntaristas e os aprimorará em várias passagens de sua obra. Na perspectiva deste famoso autor insubmisso ao Papado, nada pode ser propriamente inteligível na criação, já que as coisas não se predicam umas das outras, mas apenas predicam-se convencionalmente os conceitos.[3]

Entre os entes de razão e a realidade das coisas criara-se um pântano impossível de atravessar. Ora, não demoraria muito para a política ser inoculada por esta disteleologia irracionalista que foi tomando as universidades e fazendo as cabeças, geradora de um novo tipo de farisaísmo teológico insubordinado à tradição apostólica e ao Magistério da Igreja. A partir deste período, com o hiato estabelecido entre as coisas temporais e as espirituais, primeiramente sobrevirão as revoluções luterana e calvinista, com as suas inumeráveis guerras sangrentas; mais tarde virão as revoluções francesa (liberal-maçônica) e russa (comunista). O mundo escolhera definitivamente a Barrabás, malgrado as reações magisteriais da Igreja; estas porém se foram tornando impotentes perante o novo vetor materialista, libertário e humanista da história.

Os messianismos políticos multiplicam-se na exata medida em que inexistem autoridades espirituais que, de forma solene, custodiem as verdades eternas. A sagração da consciência individual dos homens como instância intocável é concomitante à dessacralização de todas as coisas, e, neste contexto, a débâcle do Magistério da Igreja a partir do Concílio Vaticano II é o acontecimento culminante do século XX, mais que as duas Grandes Guerras, pois representa o odiento fechar de olhos para as coisas políticas tomadas de assalto pelo que há de pior no gênero humano. Falseado e deturpado, o conceito de “dignidade da pessoa humana” se transforma em motor da política pós-moderna ocidental, e de todos os lados é mencionado para justificar os pleitos mais absurdos.

Hoje alguns querem fazer-nos imaginar que estamos perante uma escolha de Sofia: ou o projeto eurasiano russo, em parceria com cismáticos ortodoxos, ou os neocomunismos imperantes sobretudo na América Latina, ou o avanço europeu do Islã, religião a respeito da qual o abade Pedro, o Venerável, escrevera no distante século XII o estupendo Liber contra sectam sive haeresim sarracenorum. Como pano de fundo de todas essas possibilidades, encontram-se as premissas liberais dos que odeiam a Igreja e a querem ver afastada da instância política a todo custo, pois do contrário o reinado material do Anticristo nunca seria possível.

Em tal configuração, convém ter em vista o seguinte: todos os que põem a confiança no Senhor não serão confundidos, como afirma o Salmo que serve de epigrafe a este breve texto. Portanto, é melhor a derrota política com a cruz espiritual às costas do que a vitória política infamante.

Tal confiança verdadeiramente heróica pressupõe que os católicos não abandonem a Igreja, mesmo com a sua Hierarquia fazendo de tudo para os melhores apostatarem, e também não adiram a nenhum desses messianismos políticos, pois se trata de tentáculos do mesmo demônio.

Seja à esquerda ou à direita da depravação.
___________________________________
1- Para exemplificar isto, vale frisar que Cristo — diante de Pilatos e dos judeus que O acusavam de blasfêmia — está literalmente entre a omissão culpável do poder político corrupto e a maldade espiritual da mais pérfida das elites, sendo esta última sumamente deletéria, pois se volta contra o bem maior. “Quem Me entregou a ti tem maior pecado” (Jo. XIX, 11).
2- Cfme. Duns Scot, Ordin., I, 46, I, 6.
3- “É tão impossível que uma coisa seja universal fora da alma quanto é impossível que o homem seja um asno”. Ockham, Sent. 2, 78.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Orlando Fedeli, etc.


Vi pessoalmente o Prof. Fedeli apenas uma vez — quando poucos meses antes de morrer pernoitou em minha casa e ficamos a conversar até altas horas da madrugada, após um divertido e agradável jantar com o meu amigo Carlos Nougué e o jovem Guilherme Chenta.

Lembro de lhe ter dito na ocasião o seguinte: "Prof. Orlando, há entre nós divergências tópicas e convergências utópicas". Com relação às primeiras, entre outras coisas referia-me eu ao Papa Bento XVI, sobre cuja atuação pontifícia não é meu propósito escrever aqui.

Antes de dormir, rezamos diante do crucifixo e do belo ícone de Nossa Senhora que tenho em minha sala, e a impressão que me ficou foi a de um homem piedoso, apaixonado, culto, corajoso e conhecedor do Magistério da Igreja.

Ele morreu num dia 9 de junho e foi enterrado no dia 10. Era meu aniversário, porém fiz questão de pegar a primeira ponte aérea que pude e assistir em São Paulo à Missa de corpo presente e ao seu sepultamento, pois tinha para com o falecido uma dívida de gratidão: aprendi com ele a combatividade em defesa da fé — num momento em que a Igreja deixara quase totalmente de lado a apostolicidade — e tive acesso a textos preciosos sobre outras religiões com abordagem salutarmente antiecumênica, a mesma que eu via nos Doutores, filósofos notáveis e grandes teólogos cujas obras extraordinárias tive a felicidade de ler.

Jamais fiz parte da Montfort nem de qualquer grupo católico. Por prudência, desde a minha tardia conversão preferi manter a independência e não ser gregário: optei por tentar extrair o que de bom via aqui e ali, deixando de lado o que não me interessava. E, obviamente, ter vida sacramental e esforçar-me por cumprir os preceitos.

A partir daquela época ouvi fofocas e histórias escabrosas não apenas sobre a Montfort, mas também a respeito da FSSPX brasileira, do Opus Dei, da TFP, das chamadas "comunidades amigas da Tradição" e, por fim, da Administração Apostólica S.J.M. Vianney. Se eu tivesse uma membrana nos ouvidos a fecharia para não ouvir esses presumíveis fatos que não me dizem respeito — nem próxima nem distantemente.

Em breves palavras, estas coisas não me interessam! Ademais, como jamais terei condições de aferir com os próprios olhos a imensa maioria do disse-me-disse que ouvi, há algum tempo peço às pessoas que evitem transmitir-me tais supostos acontecimentos.

Uma coisa é certa — a crise eclesial é gigantesca, ao ponto de hoje posições distintas, não raro conflitantes, serem razoavelmente defensáveis. Em tal contexto, o mínimo que o católico consciencioso deve procurar pôr em prática parece-me o seguinte: mostrar certa caridade nas divergências, saber calar e meditar muito antes de falar. 

Rezemos uns pelos outros e tenhamos a prudência de não emitir publicamente juízos temerários contra pessoas ou grupos, sempre levando em conta o fato de que responderemos por absolutamente tudo — pelo bem e pelo mal que fizermos.

Escrevo este breve texto porque recebi hoje, por conta de uma postagem de Facebook na qual fui citado, mais de 30 mensagens de pessoas contra e a favor do Prof. Fedeli. Eis aqui, portanto, a minha resposta, e se a dou em público é porque o conselho prudencial deste texto parece-me bastante útil para todos nós.

Saudações,
Sidney Silveira

P.S. Uma vez vi-me compelido a reconhecer de público alguns méritos do Prof. Orlando, e lembro-me da comovida resposta que me deu

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Indicação do Prof. Carlos Nougué

Sidney Silveira

Três livros do jurista tomista Ricardo Dip (que atualmente nos honra com sua presença no Curso de Latim Clássico do Instituto Angelicum)

a) "Prudência Notarial", Quinta Editorial;
b) "Segurança Jurídica e Crise Pós-Moderna", Quartier Latin;
c) "A Natureza e os Limites das Normas Judiciárias do Serviço Extrajudicial", Quartier Latin.

Vejam a dica do querido amigo Nougué no link abaixo:
http://estudostomistas.blogspot.com.br/2013/10/o-tomismo-aplicado-ao-direito-tres.html

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Entre opiniões e vagidos


Sidney Silveira
Não me aborrece em absoluto ver pessoas expressarem opiniões diferentes das minhas. Jamais me verão dar chiliques por conta disso!

Já dizia o bom e velho Tomás de Aquino: opinião é o ato do intelecto que se inclina a uma proposição com temor de que a sua contraditória seja verdadeira (cfme. “Suma Teológica”, I, q. 79, art. 9, ad.4). Em síntese, a opinião é justamente o intermezzo entre a dúvida e a certeza: na dúvida o sujeito coloca-se num ponto eqüidistante entre proposições contraditórias ou aparentemente contrárias, sem se decidir por nenhuma, ao passo que na certeza o espírito adere firmemente a uma delas, em detrimento das demais.

O Aquinate distinguia dois tipos de opinião: opinio communis, pautada no bom senso, e a opinio extranea, ou seja, a bizarra, descabida ou extravagante. Esta última pode ser má ao ponto de o grande teólogo identificar-lhe um grave perigo: nalguns casos ela pode destruir os princípios universalíssimos sobre os quais se apóia toda filosofia digna deste nome.

A propósito, rio-me interiormente ao ver liberais democratas natos e hereditários espocarem feito catapora, apenas porque lhes são insuportáveis as opiniões divergentes das suas. Parecem acometidos duma doença auto-imune cujo sintoma é partir para a detração, a murmuração ou o insulto, pelo simples fato de que alguém ousa discordar deles. Em resumo, a sua é a mais tirânica das opiniões: a que se quer verdade absoluta sem deixar de ser opinião. Anômala espécie de “doxa epistêmica”.

Em geral, alguém com este perfil finge escandalizar-se com opiniões que em si não podem ser ditas extravagantes, pois se ancoram em evidências ou em premissas razoáveis. Temos aqui o sinal distintivo de um dos mais letais tipos de má-fé: a afetação — que não é outra coisa senão a falta de naturalidade na ação, algo tão denunciador quanto batom na cueca. Ora, a afetação é irmã siamesa da desonestidade intelectual, e o contato com pessoas com tal deficiência de caráter é perigosíssimo, devido ao fato de que o contágio pode ser rápido e acarretar seqüelas definitivas.

A gradação que vai da ignorância à ciência passa necessariamente pela opinio communis, e não raro pela opinio extranea. Neste último caso, trata-se de algo dialeticamente útil, pois a certeza que não considera objeções e idéias estranhas ou contrárias às suas premissas nunca deixará de ser frágil, ou então falsa. Nunca deixará de ser o signo da atitude covarde de quem precisa do consenso para manter-se protegido, qual criancinha debaixo das saias da mamãe.

Nos casos de flagrante desonestidade, ou então de desonestidade presumivelmente chegada ao limite do incurável, aquela que os cristãos sempre chamaram de “pecado contra o Espírito Santo”, o remédio é afastar-se. Gente com esta doença da alma não tem corriqueiramente opiniões erradas, pois a legítima opinião — mesmo quando errada — precisa do espírito de veracidade para existir, e tais pessoas mentem em nível patológico. 

A propósito, quem mente não opina, tergiversa maldosamente.

Em breves palavras, a opinião temerária ou apoiada em consensos fabricados tangencia a fraude, e um dos critérios para distinguir o opinador honesto do palpiteiro velhaco, cuja tendência é transformar-se em proverbial mentiroso, é levar em conta o nível de extravagância no opinar e também aferir se as opiniões expressadas são a repetição mecânica das idéias de facções ou seitas às quais alguém adere para sentir-se seguro

Nestes dois casos não há opinião em sentido próprio, mas agônicos vagidos.

domingo, 24 de novembro de 2013

Segunda turma do Curso de Latim Clássico do Instituto Angelicum


Sidney Silveira
Com apenas um mês de aulas da primeira turma de Latim Clássico, a procura devida à divulgação boca-a-boca continuou e várias pessoas interessadas em aprender a língua de Cícero nos têm procurado, razão pela qual decidimos abrir a segunda turma — cujas aulas se iniciarão em janeiro de 2014.

Os interessados devem enviar-nos mensagem pelo seguinte link: 


Se precisarem de outras informações, escrevam para Lissandra Lopes pelo e-mail contato@institutoangelicum.com.br  

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A sedução derrotada


Sidney Silveira
O manipulador experiente é alguém muitíssimo atento às reações das suas vítimas. A partir de reflexos psicológicos e físicos induzidos nos outros por situações artificiosamente criadas, ele vai formando um quadro das preferências, ojerizas, medos e desejos — expressos ou ocultos — daqueles contra quem vai lançar a sua rede de domínio. 

Feito o diagnóstico básico dos principais vetores da psique alheia, o manipulador inicia o seu nefasto trabalho deflagrando simpatias seguras, e isto por um método mais ou menos simples de sedução: é solidário nos medos e nas preferências da vítima; elabora discursos contrários às coisas que ela mais odeia, calculando bem as palavras e o momento certo de dizê-las; insinua-se como facilitador de prazeres; e induz preocupações imaginárias para as quais se apresenta como protetor ou salvador. Com estas e outras ações, vai minando as resistências psicológicas da pessoa que é objeto do seu malefício e consegue ir ganhando, aos poucos, a sua confiança. 

Em síntese, ele faz um sumário bastante preciso das paixões alheias e estuda os mecanismos para despertá-las. Depois disso, dá vazão às tendências (boas e más) identificadas na vítima, e com tal procedimento logra conhecê-la melhor e se arma convenientemente para a sedução que tem em vista. Diga-se neste ponto o seguinte: como consumado hipócrita, o manipulador jamais mostra as suas reais intenções a princípio, pois se o fizesse perderia todo o poder encantatório. Ele só se revela quando o domínio sobre a vontade alheia está em adiantado grau, a ponto de a pessoa ficar a serviço dos seus caprichos quase sem o saber — ou então sabendo, nos casos em que se escraviza totalmente. A propósito, o manipulador despreza a vítima que chega a tão abjeto nível de entrega, razão pela qual destruí-la de uma vez por todas se lhe apresenta como a única opção, pois precisa de combustível e o encontra em novas conquistas. Em breves palavras, nenhum vampiro interessa-se por novamente atacar quem já teve todo o sangue sugado.

Eis o princípio elementar modelador das ações e pensamentos desta maldita criatura: quanto maior é a maldade planejada, mais necessária se torna a capa da hipocrisia. Ora, na escala das maldades, as que matam o mais excelente numa pessoa (a alma, com as ricas potências que nela radicam) são as que mais precisam ocultar-se, pois o inferno não seduz senão a quem já se iniciou no processo de autodestruição, seja moral ou psicológica. O manipulador sabe muito bem disso e todo o seu trabalho de compelir uma pessoa a ir na direção por ele desejada depende de que esse princípio não seja ferido. Daí se presume o quanto ele é capaz de fazer da sedução uma obra de artesanato espiritual às avessas — na qual construir é destruir.

É necessário certo discernimento das almas para identificar o manipulador, ou então experiência adquirida como vítima de algum deles. Sem a menor sombra de dúvida, trata-se de pessoa bastante hábil e conhecedora de algumas tendências universais da psique humana. Mas o nosso arquetípico personagem costuma perder a bússola diante de quem não se deixa levar por consensos e também com pessoas cuja auto-estima se baseia em critérios realistas, objetivos, e não na opinião da maioria ou em devaneios hedonísticos. Não é errôneo dizer que o poder inicial do manipulador será tanto maior quanto menos centrada for a pessoa a quem queira dominar, e tanto menor quanto mais a vítima mantenha o próprio ego em salutar equilíbrio e razoável senso de proporções. Por exemplo: mesmo o mais competente manipulador tem sérias dificuldades com pessoas humildes, e, como estas se encontram entre as que amam verdadeiramente a Deus, deduz-se daí o caráter consciente ou inconscientemente satânico de toda e qualquer manipulação.

Em nossa época, boa parte da cultura e da política é feita de grandes manipulações — repletas de mensagens subliminares e da indução pavloviana de respostas psíquicas padronizadas em larga escala. Mas este admirável mundo novo, escravizante e derrogador da consciência humana, tem o limite prefixado de domínio: a liberdade, que não é outra coisa senão a vontade quando ama.

Não por outro motivo, os santos são os homens menos manipuláveis que pode haver, pois a sua sanidade psicológica e espiritual bebe da fonte suprema do ser, Deus, instância de amor inalcançável pelo mal. Portanto, quanto mais um homem toma os santos por modelo, e quanto mais procura conhecer-lhes a vida e a obra, menos chance tem de ser manietado pelo príncipe deste mundo.

Ou por seus disciplinados soldados.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Não me venham com a problemática política, pois não vejo a "solucionática"


Sidney Silveira

Parodio o folclórico ex-jogador de futebol Dadá Maravilha para dizer o seguinte: tenho recebido e-mails e também mensagens "inbox" no Facebook exortando-me a integrar este ou aquele grupo político (e/ou também religioso).

Minha resposta, simples e direta, é a seguinte: 

Por ora, não! Muito obrigado.

Não me julgo ungido pelos céus para apresentar ou propor fórmulas de ação política para o Brasil — mesmo porque creio firmemente não haver solução possível para uma sociedade chegada a tão elevado grau de corrupção moral, em todos os seus estratos e substratos.

Os círculos concêntricos abismais fecham-se em ritmo alucinante, e, não havendo autoridades espirituais com poder (nem vontade) de inocular vestígios de sanidade no corpo político, a tendência de eclosão dos mais diversos tipos de conflitos anticivilizacionais está decisivamente configurada

Perdoem-me, amigos: entre o arremedo de direita liberal nascente e o cardápio das esquerdopatias que dominam o cenário brasileiro, no momento para mim não existe ponto de tangência. 

A direita nunca, jamais, em tempo algum foi a solução contra os abusos da esquerda, mas no máximo o contraveneno que cura uma enfermidade cujo risco de morte é iminente para substituí-la por outra, de morte lenta — exatamente aquela que serviu de pano de fundo para chegar-se às calamidades atuais.

Meu olhar baseia-se numa premissa elementar: o comunismo e os socialismos de todos os matizes são filhos bastardos paridos no século XIX pelo liberalismo revolucionário que pulverizou de vez o sentido de unidade das nações — e as afastou da sombra benemerente das verdades evangélicas custodiadas pela Igreja. São efeitos próximos de uma causa comum.

Com relação a esta minha posição vale dizer que não a vejo como absenteísmo político, mas sim como o fruto maduro de um senso de realidade adquirido pela contemplação continuada do cenário contemporâneo à luz de alguns princípios universais colhidos da obra de três filósofos, em particular: Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino.

Quem assistiu ao minicurso "Manifesto das Sombras" — por mim ministrado em setembro deste ano —, sabe que ali propus três eras sequenciais e procurei inserir o quadro brasileiro num contexto histórico muitíssimo mais amplo: a Era da Perda da Fé (que vai do século XIV ao XVIII); a Era da Perda da Esperança (séculos XIX e XX, até o Concílio Vaticano II); e a Era da Perda da Caridade (do final do século XX em diante). E procurei explicar o vetor e os pontos de referência de cada um desses períodos históricos. 

Um movimento declinante específico atravessou esses ciclos: o paulatino apartamento entre a política e os princípios espirituais que lhe dão real sentido tinha inexoravelmente de chegar ao atual momento — de agonia e sufocamento das possibilidades de cura social. O bem comum político divorciou-se do bem comum espiritual

O caso brasileiro tem agravantes particulares, é verdade, mas se insere no contexto da nova ordem mundial dominada por elites globalistas bilionárias, ou seja: as diferenças são de grau, não de substância.

Sendo assim, em escala bastante modesta — superlativamente modesta! —, e sem quaisquer pretensões políticas megalômanas (que geralmente servem apenas para catalisar dinheiro de ricaços engambeláveis e iludir incautos milenaristas políticos), atuo na divulgação do pensamento medieval naquilo que nele vejo de atual, são, benéfico, seja espiritual ou politicamente.

E ponto.

Fazer diferente seria ferir a minha própria consciência.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Tomás de Aquino e o Vaticano II

O Flautista de Hamelin

“O Concílio Vaticano II é Prometeu no ato do seu latrocínio”

Pe. Álvaro Calderón
(A Religião do Homem)
Sidney Silveira
Com a declarada intenção de não querer impor dogmaticamente nenhuma doutrina, o Concílio Vaticano II fez chegar aos ouvidos dos fiéis católicos não a voz firme e inequívoca do Bom Pastor, mas o som encantatório do Flautista de Hamelin. E, de maneira semelhante ao que sucedeu às malfadadas crianças do famoso conto medieval, as ovelhas do rebanho se precipitaram no rio e morreram — afogaram-se nas águas tormentosas do pluralismo teológico. A deliberada ambigüidade dos textos conciliares transformou em norma o diálogo entre a luz e as trevas, com funestas conseqüências para a Igreja e o mundo.

O Concílio cita Santo Tomás de Aquino, assim como o magistério de Paulo VI e o de João Paulo II também o fazem. Porém misturam numa estranha alquimia elementos irredutíveis uns aos outros, com o seguinte detalhe metodológico na disseminação do caos: aspectos tradicionais tópicos vêm acompanhados de novidades até então nunca vistas,[1] o que abre as fórmulas conciliares à possibilidade de interpretações sem fim. A propósito, a pregação contemporânea acerca da necessidade de se buscar o “verdadeiro Concílio” é a evidência maior da ambivalência dos textos — legíveis à luz de hermenêuticas excludentes entre si. Nunca um documento eclesiástico gerou materialmente tantas dúvidas a respeito do seu próprio conteúdo. E é pelos frutos que se conhece a árvore.

Nos textos do Vaticano II vêem-se vestígios da doutrina tradicional católica ao lado de teses no mínimo estranhas, como a pitoresca idéia de que a Igreja é “edificada e vivificada” por elementos exteriores a ela, contra o Magistério anterior e os Doutores, que frisaram enfaticamente a impossibilidade de sequer haver fé fora da Igreja. Diz Unitatis Redintegratio (n.3):

“Entre os elementos ou bens com que, tomados em conjunto, a própria Igreja é edificada e vivificada, alguns e até muitos e muito importantes podem existir fora do âmbito da Igreja católica: a palavra de Deus escrita, a vida da graça, a fé, a esperança e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo e elementos visíveis”.
Aqui, além da inaudita e errônea circunstância teológica de se colocarem as três virtudes teologais como existentes fora da Igreja, ainda que potencialmente,[2] vale dizer: trata-se da primeira e única edificação da história sustentada em algo exterior a ela própria! Nem o arquiteto Oscar Niemeyer — famoso por conceber espaços que às vezes precisavam ser redesenhados por sugestão de engenheiros calculistas — imaginaria pôr de pé uma obra com tão bizarras características... Existem incontáveis outras imprecisões, ambigüidades e equívocos similares esparzidos entre os dezesseis documentos promulgados pelo Concílio Vaticano II. Não é intenção deste breve texto sumariá-los, seja com lupa, seja com água benta.

Apenas no tocante ao exemplo acima mencionado, cabe apontar a correção: a Igreja é vivificada em Cristo e edificada sobre Pedro (Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam), em quem repousa a suprema autoridade apostólica, assim como o sumo carisma magisterial, e não em elementos presumivelmente exteriores ao Corpo Místico. A propósito, com relação à falta de autoridade magisterial dos textos do Concílio Vaticano II, indicamos entusiasticamente a leitura do mais importante livro escrito nas últimas décadas: A Candeia Debaixo do Alqueire – Questão Disputada Sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a partir do CVII, do Pe. Álvaro Calderón.

Pois muito bem.

No esforço de revestir a ambigüidade de autoridade, há anos neoteólogos de diferentes matizes tentam associar Tomás de Aquino ao Concílio Vaticano II, apoiando-se nas passageiras citações ao Aquinate num ou noutro documento conciliar, assim como em parte do magistério que se lhe seguiu — caso da famosa Encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II.[3] Esta, infelizmente, toma o Aquinate não como a autoridade doutrinal cuja filosofia e teologia devam ser preferidas em detrimento do pensamento moderno (como diferentes Papas expressamente mandaram),[4] e sim como exemplo de audácia e liberdade de espírito, ou como “precursor do novo rumo da filosofia e da cultura universal” (hã?). Tudo a fim de “conciliar a secularidade do mundo com as exigências radicais do Evangelho”.[5] Diga-se neste ponto o mínimo: a intenção de frei Tomás jamais foi essa conciliação simpliciter, mas sim enfatizar a subordinação das coisas do mundo às celestes. Em resumo, a valorização daquelas só se pode dar em ordem a estas; tal é o conceito de contemptus mundi.

Na prática, os ventos de modernidade do Concílio Vaticano II interromperam os frutos que a escola neotomista vinha dando desde o chamado de Leão XIII na Encíclica Aeterni Patris. Basta vermos a abissal diferença de nível entre os tomistas mais atuantes nos períodos anteriores e nos posteriores ao Concílio, a saber: entre Pierre Mandonnet, M.D. Roland-Gosselin, Garrigou-Lagrange, Gallus Manser, Cornelio Fabro, Santiago Ramírez, Édouard Hugon e Josef Gredt, de um lado, e Abelardo Lobato, Miguel Ángel Gonzalez, Marie-Dominique Chenu e Jean-Pierre Torrel, de outro. Chega a ser covardia. Há exceções entre estudiosos que atravessaram o período do Concílio e têm ótimos trabalhos (como Josef Pieper e Battista Mondin), mas é quase na virada do século XX para o XXI que o tomismo começa a readquirir maior viço, sobretudo em comunidades tradicionais como a FSSPX e os dominicanos de Avrillé. Na universidade, vale citar nomes contemporâneos com importantes trabalhos publicados no espírito da escola tomista, como Martín Echavarría e Jorge Martínez Barrera, para aludir a apenas dois.

Voltemos no tempo para ressaltar o seguinte: se se trata de estímulo ao estudo da obra de Santo Tomás de Aquino, nenhum Concílio pode comparar-se a Trento. Ali a Suma Teológica foi simplesmente posta ao lado da Bíblia na proclamação dos Dogmas, e, numa passagem sobre a Eucaristia (seção XXI do Concílio), os Padres chegaram a reexaminar um ponto importante apenas porque certa passagem parecia contrariar Tomás. Por sua influência em Trento, o Aquinate chegou a ser chamado de patrum Concillii Tridentini oraculum! Ora, maior estímulo aos estudos tomistas não poderia haver do que este reconhecimento notório da autoridade do Doutor Comum justamente no Concílio que deu substância doutrinal à Contra Reforma — de maneira tão solene, magistral, catedrática, enfática e impositiva, não obstante este último adjetivo fira os delicados ouvidos do católico liberal, para quem a dicotomia autoridade/liberdade é irresolvível.

Em contrapartida, Tomás de Aquino e o Concílio Vaticano II são elementos que não se podem misturar sem acarretar sérios problemas. O motivo é simples: incontáveis textos do Concílio contrariam a letra e/ou o espírito da obra de Santo Tomás — seja em questões ecumenistas fundadoras do indiferentismo religioso hoje imperante, seja em questões políticas que defendem a separação formal entre a Igreja e o Estado, seja em questões eclesiológicas instauradoras da colegialidade, etc.

Vejamos dois brevíssimos exemplos, por meras razões de economia de texto:

       > Lumen Gentium (n. 16):

O desígnio da salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia”.

Santo Tomás, em clave totalmente contrária a esta, deixa em primeiro lugar claro na Suma Contra os Gentios ser impossível crer nas proposições do Corão sem elevado grau de consciência culpável — tão contrárias são algumas suras à lei natural. E ali diz mais o Doutor Comum: Maomé deturpou os textos do Antigo e do Novo Testamento, entremeando-os de histórias legendárias, razão pela qual os sarracenos não podem, ao contrário do que diz o texto conciliar, professar "seguir a mesma fé de Abraão”. E ainda: Maomé fez a sua religião crescer no gume da espada e com promessas de prazeres carnais, nesta vida e na outra.[6] Isto sem falar no fato  — acrescentemos nós! — de que os muçulmanos não adoram o Deus único e misericordioso, visto não crerem na divindade de Cristo nem na Trindade! Ora, se Cristo, que é Deus na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, vai julgar os homens no último dia, como se depreende de Jo., V, 22, e os muçulmanos não crêem na divindade de Cristo, logo, o que eles adoram não é patrimônio comum dos católicos, pois não é Deus mas um ídolo, visto que Deus é  essencialmente trinitário.

Em síntese, Tomás de Aquino e o Vaticano II não podem andar de mãos dadas por um breve caminho sem se arranharem mutuamente durante o percurso.

       >  Dignitatis Humanae (n. 2):

    “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo ela, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites”.

     Aqui estamos diante de uma das pedras de toque da neoteologia católica: o “dogma” liberal da intocabilidade das consciências individuais. Não entremos no mérito desta tese, já abordada à exaustão no Contra Impuganantes, mas apenas mostremos que ela não pode coadunar-se com Santo Tomas, pois este afirma não menos que o seguinte: judeus e muçulmanos devem ser coagidos no sentido de não colocarem obstáculos de nenhuma ordem à fé católica; hereges e cismáticos, por sua vez, devem ser coagidos — ou até “forçados fisicamente” (corporaliter compelendi) — a cumprir o que prometeram no batismo e a manter o que uma vez aceitaram.[7]

     Concordemos ou não com esta gravíssima opinião do grande Doutor medieval, o fato é que entre Tomás de Aquino e o Vaticano II não há harmonia possível.

       Normalmente, quando um diz “A” o outro diz “B”.

Eis o trabalho que, a propósito, está para ser escrito: um catecismo das teses de Santo Tomás frontalmente contrárias aos textos conciliares. Não tive tempo de levar adiante uma empreitada desta magnitude, embora conheça de cor inúmeros pontos da divergência radical aqui aludida (os tópicos acima são modestíssimas amostras). Ocorre que escrever com organicidade é coisa que demanda tempo, saúde e disposição; e de nada disso hoje disponho como gostaria.

Um vídeo no horizonte
Este breve texto foi motivado pelo vídeo recentemente divulgado pelo Pe. Paulo Ricardo em que se diz o seguinte: “De alguma forma, o Concílio Vaticano II fez pelos estudos de Santo Tomás mais do que qualquer outro Concílio”. Para corroborar esta opinião, o atuante sacerdote brasileiro menciona as citações ao Aquinate feitas em Optatam totius (3) e Gravissimum educacionis (1), dois documentos conciliares.

No tocante a este parecer, reiteremos agora com outras palavras algo do que ficou dito acima: no contexto e na forma como estão enunciadas, estas breves e vagas recomendações (ter a Tomás como mestre dos estudos filosóficos e teológicos, etc., coisa já naquela altura dos acontecimentos arqui-sabida e reiterada por mais de 600 anos de magistério, com muito maior ênfase e detalhes do que nestas modestas passagens concilares) não poderiam ter senão o efeito prático que tiveram, a saber: nenhum! As incontáveis novidades gritaram muitísimo mais alto, e se a coisa não desandou de todo foi porque a Providência Divina deu coragem e armas espirituais a um bispo para combater em meio à tormenta: D. Marcel Lefebvre.

Entre outros fatores, indica de maneira grandiloqüente o que estamos a dizer — ou seja, o efeito nulo daquelas recomendações conciliares — o próprio ponto de partida do vídeo do Pe. Paulo Ricardo: o enorme preconceito contra o Aquinate nos seminários católicos, a ponto de o sacerdote mesmo confessar que procurou estudar com maior interesse a obra do Doutor Comum da Igreja há pouco tempo, depois de haver sido ordenado.

Não se escandalizem os amigos católicos com este texto: trata-se de matéria teologicamente opinável (a saber, se o Concílio Vaticano II ajudou ou não aos estudos tomistas), na qual é lícito a quem quer que seja — do mais simples fiel ao Papa — defender um ponto de vista, apresentar suas razões corroborantes, evidências, indícios, etc. Aliás, divergir sobre pontos acerca dos quais pairam incertezas e discutir à exaustão com o intuito de aclará-los foram as atitudes que construíram a grandeza filosófica e teológica do cristianismo. Portanto, não venham os fofoqueiros profissionais, os maledicentes contumazes, os engraçadinhos medíocres e os idiotas natos destilar o seu veneno! Nem para cima de mim, nem nos ouvidos do Pe. Paulo Ricardo.

Não reduzam uma divergência conceptual, de si lícita, à altura da sua própria incapacidade de pensar fora dos grupelhos — pois estes, ao fim e ao cabo, dão o fiel retrato de mentes medrosas e débeis, para as quais o eco dos pequenos murmúrios coletivos e das detrações de bastidor tem valor de argumento probante.

Ao Pe. Paulo Ricardo, na certeza da divergência e na convicção da caridade cristã, peço a bênção e orações por minha pessoa.



1- Como o malfadado “subsist in”, por exemplo.
2- Nem a vida da graça, nem as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade são bens que possam propriamente existir “fora do âmbito da Igreja”. Aqui, o erro vem acompanhado da formulação equívoca, dúbia. Em verdade, o hábito da fé faz o intelecto submeter-se ao império da vontade deificada: é assim que o homem confessa a Cristo como Deus e Senhor (e não apenas como pessoa bem intencionada com dons e talentos excepcionais) e dá assentimento aos preceitos evangélicos; é assim que o homem confessa a esperança no Cristo ressuscitado, pilar de toda verdadeira espera cristã; é assim que o homem ama as criaturas e a si mesmo por amor a Deus, compreendendo que o amor é pelos bens criados, e não pelo que neles falha. Daí Santo Tomás dizer na Questão Disputada sobre a Caridade: devemos amar nos homens o que é de Deus, e odiar neles o que é alheio a Deus. Isto é caridade, e ela, como as demais virtudes teologais, pressupõe a anuência do intelecto prático ao fiel depósito custodiado pela Igreja. Afirmar que essas virtudes podem dar-se “fora do âmbito da Igreja” é, se quisermos ser eufemísticos, uma formulação grandemente imprecisa. O muçulmano e o judeu, por exemplo, não têm fé porque não crêem no Evangelho; não têm esperança porque não esperam no Ressuscitado; não têm caridade porque não aceitam a Cruz redentora. Por sua vez, o herege e o cismático (nossos irmãozinhos separados, de acordo com a atual Hierarquia católica) não têm fé porque não aceitam parte da doutrina, seja deturpando-a, caso dos hereges, seja derrogando-a, caso de cismáticos como os ortodoxos, por exemplo, os quais não aceitam o Primado de Pedro.  Isto para não falar nos “evangélicos”. Também não têm esperança porque procurar a Cristo fora da Igreja é uma das piores formas de não esperar n’Ele, ou seja, desobedecendo àqueles a quem Nosso Senhor conferiu o poder de ligar e desligar, assim como o carisma de ensinar; e a desobediência, como sabemos desde Lúcifer, é pecado grave. E por fim lhes falta caridade, a virtude teologal que dá forma às demais, por motivos análogos ao que acontece com judeus e muçulmanos, pois, para tornar mais leve a Cruz de confessar perante o mundo a fé católica integralmente, preferem acomodá-la às próprias paixões e a interesses menores. Ora, desde São Paulo sabemos (por fé!) que não aceitar um só ponto da doutrina — e o modo como a Igreja magisterialmente a ensina —, implica perda da fé.
3- É imprescindível a leitura do “Comentário à Encíclica Fides et Ratio”, do Pe. Álvaro Calderón, que editamos no Brasil como apêndice à Candeia Debaixo do Alqueire. Esse texto destrói qualquer possível tentativa de fazer da referida Encíclica um documento “tomista”, próxima ou distantemente.
4- Em sentido totalmente oposto, Fides et Ratio diz que “a Igreja não propõe uma filosofia própria nem canoniza uma filosofia particular em detrimento de outras” (n.49).
5- João Paulo II. Fides et Ratio, n.43
6- Cfme. Tomas de Aquino. Suma Contra os Gentios, I, cap.6, n.7
7- Tomas de Aquino. Suma Teológica, II-II, q.X, art.8, resp.