sexta-feira, 31 de julho de 2009

Princípios metafísicos da ordem moral

Sidney Silveira
Para qualquer professor de filosofia que pretenda falar de moral, é deveras útil a seguinte distinção escolástica entre:

> o fim “que” (finis qui): o bem a cuja consecução se dirige a ação;
> o fim “para quem” (finis cui): sujeito em favor do qual se busca esse bem;
> e o fim “pelo qual” (finis quo). A forma de obter esse bem, ou seja: a realização mesma do fim.

Há, ainda, a importante distinção entre "o fim da obra" (finis operis) e "o fim daquele que obra" (finis operantis). O primeiro destes é o bem a que, por sua natureza, tende um ente, dada a atualização das principais potências inscritas no seu ato de ser; o segundo é o que se propõe toda e qualquer causa inteligente, ao agir. No caso humano, convém lembrar que o finis operis pressupõe o finis operantis da mesma forma como a execução de uma tarefa implica algo ou alguém que a execute. São irmãos siameses, por assim dizer.

Em todas essas distinções está pressuposto o ente real composto de potência e ato, matéria e forma, substância e acidentes, essência e ser. Um ente real com todas as potências passivas e ativas que lhe possibilitam atualizar diferentes operações ou perfeições na ordem do ser.

Como todos os entes tendem a determinados fins, mas não de forma instantânea (dada a sua composição de matéria e forma), importa saber, em cada caso, quais são os fins intermediários em vista do fim último a que tendem. Mas isto sem nunca nos esquecermos de que o fim último de um ente é o fim por excelência (causa final), porque nele radica a suma razão do movimento das causas intermédiárias (eficiente, material e formal). O que é intermédio se põe em marcha em vista de um fim.

A inversão da ordem dos fins, por uma criatura inteligente, é nada mais nada menos do que a inversão da ordem natural a que tendem as suas potências principais. Ora, se o fim pressupõe e abarca os meios, em toda ação levada a cabo por causas inteligentes se pressupõe a escolha de alguns meios e a recusa de outros. E nisto reside propriamente o problema moral: um problema dos meios. Noutras palavras, a realização do fim pressupõe a renúncia a todo um conjunto de meios. Um exemplo: a consecução de um bem racional impõe a renúncia a todos os bens deleitáveis opostos a ele (mas não, é claro, aos bens deleitáveis que se seguem dele).

No homem, como em qualquer criatura que recebe o ser de outro (ens ab alio), o buscar-se a si mesmo como um fim último implica uma desordem e um mal: uma desordem porque nada pode ser o princípio nem o fim de si mesmo, a não ser Aquele que — por ser Ato Puro — tem a posse do fim em si mesmo, na medida em que o seu ser e a sua essência se identificam plenamente num só ato; e um mal porque, orientado para Aquele que é o alfa e o ômega, o princípio e o fim de todas as coisas, o ente frustraria o seu movimento natural a algo exterior a ele, pois todos os entes, sem exceção, têm uma funcionalidade, ou seja: são em função de algo que os transcende.

Estes são alguns dos tópicos do curso Os Fundamentos Metafísicos da Ordem Moral, todo inspirado na obra magna do mesmo nome escrita pelo tomista argentino Octavio Derisi, curso de que em breve daremos notícias, como mais uma ação do Angelicum – Instituto Brasileiro de Filosofia e de Estudos Tomistas.

Aguardem.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dever de consciência

Sidney Silveira
Não pode haver liberdade, em nenhum sentido, onde não há inteligência
. Ou, noutros termos, é graças à luz subministrada pelo intelecto à vontade que nos tornamos capazes de escolher entre os bens que se nos apresentam. Em suma, escolhemos isto ou aquilo não de maneira cega, mas por esta ou por aquela alegada razão — ainda que errônea, por não deliberar acerca de algum ponto importante implicado na escolha. Fundamentalmente, para ser livres precisamos da ratio (e, por meio dela, da posse do seu objeto formal próprio, que é a verdade*), mesmo que, fazendo mal uso da inteligência, reduzamos a nossa liberdade a escolhas cada vez mais distantes da lei natural captada por nossa razão prática.

Portanto, o ato moral é o ato livre praticado pelo homem sob o influxo da luz natural da inteligência. É a inteligência que, formalmente, nos diz que querer ou fazer isto ou aquilo é ou não é bom, sob determinada ratio. E não é preciso ser filósofo para usar relativamente bem da liberdade, pois há em todos nós uma fundamental conaturalidade com os primeiros princípios da razão prática que nos dão a notícia, desde a mais tenra idade, da bondade ou maldade intrínseca de alguns atos e fatos elementares.** Desde pequeno, (em condições normais) eu sei que agredir ou matar os outros não é bom, porque não o é ser agredido ou morto pelos outros. Que não é bom mentir porque não o é que mintam para mim. E assim por diante. Em síntese, toda boa filosofia não só não ofende a esse bom senso primordial, como é, na prática, uma extensão sua.

Um dever de consciência que obriga uma pessoa a agir desta ou daquela forma é, neste contexto, como uma extensão das evidências de que ela parte em suas escolhas. A consciência, sendo uma determinada ciência aplicada a algo (cum alio scientia, na conhecida expressão de Santo Tomás), vincula a nossa ação de tal forma, que contrariá-la causa sempre algum grau de remordimento, a menos que a consciência esteja absolutamente cauterizada por vícios que nascem de hábitos mentais deturpados. E quanto mais importantes são as verdades de que um homem tem consciência, mais moralmente está obrigado a agir balizado por elas, ainda que contrariando a muitas pessoas. A consciência é “regra regulada” (regula regulata). Ou seja, é regra no ato de nossas escolhas; e regulada pelo fundamento que a sustém e alimenta: a captação dos princípios da lei natural pela razão prática, de que falamos acima.

Ter reta consciência de uma verdade importante e não proclamá-la apenas para evitar constrangimentos, ou por medo de perder amizades, ou por razões políticas de qualquer ordem, é sempre uma omissão culpável em algum grau. E isto até mesmo nos casos em que a consciência esteja errada, pois, como afirma Santo Tomás em alguns de seus escritos, a consciência errônea também obriga ao ato e é menos culpável quem age mal sendo fiel aos ditames de sua consciência errônea do que quem age mal deliberadamente — quer dizer: sabendo de antemão laborar no erro e induzir os outros a erros. O segundo desses atos é o que os teólogos chamam de pecado contra o Espírito Santo, que se dá pela impugnação (culpável) da verdade conhecida.

Digo tudo isso a propósito de algo que me veio à mente hoje, pensando em algumas reações recentes ao meu trabalho e ao do Nougué (neste blog, na Sétimo Selo, no Instituto Angelicum, etc). São pessoas que parecem querer adivinhar as intenções e motivações que nos compelem a agir. Mas como os seus juízos neste exercício de adivinhação passam a léguas da realidade de nossas reais motivações (o que para mim é mais uma prova material de que os homens não conhecem as coisas por intuição direta das essências), e como não há como demonstrar apodicticamente quais são as nossas intenções (pois só Deus sonda os corações humanos), podemos no entanto aduzir como argumento provável algo semelhante ao que fez Sir. Thomas More durante o seu injusto julgamento, ao tentar mostrar aos juízes que o que dizia um dos seus acusadores era uma nefanda mentira:

Um pedido desses, embora não seja uma prova material de inocência, é exatamente o que alguns juristas de antanho chamavam de argumento provável em defesa do réu quanto a determinado ponto do julgamento, na medida em que roga para si a aplicação de uma pena maior (nada menos que a perda definitiva da alma), por uma jurisdição superior cujos decretos são absolutamente irrevogáveis, em detrimento da pena menor aplicada por um tribunal cuja competência é, igualmente, menor.

Agia Thomas More, no caso em questão***, por um dever de consciência: o de negar-se a considerar lícita a separação entre Henrique VIII e sua esposa, assim como o de negar-se a reconhecer a legitimidade da recém-criada Igreja Anglicana pelo rei que levou uma nação inteira à apostasia. Perdeu ele a amizade do rei e, depois, a própria vida por um dever de consciência. Não à-toa foi proclamado santo.

Como dizem os grandes tratadistas da Teologia Moral, com relação ao modo de julgar pode ser a consciência escrupulosa (crer que há erro e pecado onde não os há); laxa (inclinar-se, por motivos fúteis ou inapropriados, à inobservância de alguns ditames fundamentais da reta razão); farisaica (aumentar o que é desimportante e diminuir o que é relevante); cauterizada (ser indiferente às maiores barbaridades ou crimes); e delicada (julgar retamente até os menores detalhes). Se observarmos bem os atos de nossa própria vida, sempre nos veremos nalguma dessas úteis classificações. Mas na verdade só os veremos pelo exame de consciência (aquele mesmo que é preciso fazer antes de confessar a Deus um pecado, não sem antes pedir as lágrimas da santa compunção).

Nada mais difícil do que julgar um caso de consciência, pelas inúmeras circunstâncias implicadas nos atos humanos. Que dirá julgar as consciências alheias!

Que Deus não nos permita ver a Sua face beatificante, se com este trabalho agimos contrariamente à nossa consciência e ao dever de (como cristãos) não denegar a verdade católica — não diminuí-la, não condicioná-la a fatores exógenos absolutamente contingentes.

Esta é a única coisa que podemos alegar aos que querem "adivinhar" os nossos motivos, ou melhor: àqueles que insinuam serem os piores possíveis.

* “Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres” (Jo. VIII, 32).
** Não entra no mérito desse texto o pecado original, que impede que alcancemos a excelência em nossos atos humanos.
*** Digo "no caso em questão" porque estou referindo-me aqui à corajosa posição de Thomas Morus contra o nefasto Henrique VIII, e não aos erros que perpetrou em sua famosa Utopia.

Corte e costura e ainda a Encíclica "Caritas in Veritate" (I)

Carlos Nougué
Quando querem demonstrar-se tomistas da mais pura ortodoxia, os humanistas integrais ao estilo de Jacques Maritain se aplicam com afinco e arte a um corte e costura da obra do Aquinate... corrijo-me: sempre com afinco, mas nem sempre com arte, porque não raro é muito fácil desfazer-lhes a costura e exibir o corte.

Vejamos um exemplo clássico (e que verdadeiramente surpreende por seu longevo vigor): o uso e abuso da passagem de Santo Tomás na Suma, II-II, q. 10, a. 10 (“Se podem os infiéis ter governo [praelationem] e domínio sobre os fiéis”), corpus, onde se lê: “Ius divinum, quod est ex gratia, non tollit ius humanum, quod est ex naturali ratione” (“O direito divino, que vem da graça, não suprime o direito humano, que vem da razão natural”). Vejamos o que diz com respeito a essa passagem Charles Journet, justamente o principal parceiro de Jacques Maritain (e considerado por muitos e por muito tempo como da mais estrita observância tomista). E, vendo-o, como escreve o Padre Calderón num de seus livros, “é difícil pensar que Journet o diga sem plena advertência de estar falseando o pensamento do Doutor Angélico”.

Com efeito, em sua obra La Juridiction de l’Eglise sur la Cité (Desclée, Paris 1931), o então futuro Cardeal afirma que o que se lê naquela passagem de Santo Tomás é o “princípio supremo” da política cristã. “Deste princípio supremo, cujas conseqüências são incalculáveis, deduz-se imediatamente que, sendo a Igreja de direito divino e as diferentes formas da sociedade civil de direito humano, a Igreja e a Cidade [esta também com maiúscula, como convém a um humanismo] serão ao mesmo tempo distintas e ordenadas entre si, como o são a natureza e a graça. Os dois princípios próximos da política cristã são a distinção entre a Igreja e a Cidade, e a subordinação da segunda à primeira” (pp.26-27). Mas de que distinção e de que subordinação se trata? Em primeiro lugar, a distinção: “Deve-se chamar temporal, com todos os teólogos [sic], ao que é ordenado, como a seu fim imediato e primeiro, ao bem comum (material e moral) da cidade terrestre, bem que concerne substancialmente à ordem natural […]. E deve-se chamar espiritual, com os teólogos, ao que é ordenado como a seu fim imediato e primeiro ao bem comum sobrenatural da Igreja” (ibid., pp. 28-29) Donde, em segundo lugar, este tipo preciso de “subordinação” do material ao espiritual: se a cidade tem uma “soberania essencial” nas coisas temporais, terá uma “subordinação acidental” com respeito à Igreja (cf. Padre Calderón), “na medida em que as coisas de que [o poder político] se ocupa, e que são regularmente temporais, vêm a ser ocasionalmente espirituais” (Journet, ibid., pp. 70-72); razão por que “o fim da Igreja, longe de englobar o fim do Estado, permanece absolutamente distinto” (idem, p. 75).

Mais ainda: quanto ao citado texto da Suma, afirma Journet que é um “principio fundamental de Santo Tomás como expressão” nada menos que “do pensamento tradicional da Igreja” (ibid., p. 40).

Aqui digamos apenas, en passant: primeiro, que, como diz ainda o Padre Calderón, o que é subordinação acidental não é, em verdade, subordinação propriamente dita, que per se sempre será essencial: afinal, “também o Papa está subordinado acidentalmente a seu dentista!” ; segundo, que nem pela melhor costura do mundo tal princípio é “expressão do pensamento tradicional da Igreja”, como já o veremos. Mas será pelo menos um “princípio fundamental de Santo Tomás”?

Como o poderia ser, se à referida passagem de II-II, q. 10, a.10, se segue imediatamente (insista-se: imediatamente, como próximas frases do mesmo parágrafo ou corpus!) o seguinte: “Por isso, a distinção entre fiéis e infiéis, considerada em si mesma, não suprime o domínio ou governo dos infiéis sobre os fiéis. No entanto [ATENÇÃO!], o direito de domínio ou governo pode ser suprimido por uma sentença ou ordem da Igreja, [ATENÇÃO!!] cuja autoridade vem de Deus, porque [ATENÇÃO!!!] os infiéis, em razão de sua infidelidade, merecem perder o poder [potestatem] sobre os fiéis, [ATENÇÃO!!!!] que se transformam em filhos de Deus”?

Como o poderia ser, se, do alto de seu inigualável realismo e bom senso, diz o Aquinate (na mesma questão, ad 1) “que o governo [praelatio] de César preexistia à distinção entre fiéis e infiéis e não cessava com a conversão de alguns à fé”, e que, mais que isso, “era útil alguns fiéis terem lugar na casa do Imperador para a defesa de outros fiéis. Assim, o bem-aventurado Sebastião, enquanto via os cristãos desfalecer em seus tormentos, confortava-os, continuando, oculto sob a clâmide militar, a fazer parte da família de Diocleciano”?

Como o poderia ser, se, por fim, também diz o Aquinate (na mesma questão, ad 3) “que os escravos estão sujeitos a seus senhores por toda a vida, e os súditos a seus superiores; mas os ajudantes dos artífices lhe estão sujeitos [somente] para determinados trabalhos. Portanto, é mais perigoso que os infiéis recebam domínio ou governo sobre os fiéis do que uma colaboração em algum serviço especial. [...] Salomão também pediu ao rei de Tiro mestres-de-obras para que cortassem madeira, como se lê em III Reis, V, 6. ― E, no entanto, se de tal comunhão ou convivência se temer a ruína dos fiéis, deve ela ser totalmente proibida”?

Por não ser nosso objetivo neste artigo, como de fato não é, demonstrar exaustivamente a justiça e verdade do verdadeiro “princípio fundamental” de Santo Tomás, que efetivamente expressa, como já o veremos, “o pensamento tradicional da Igreja” a este respeito, basta tal mostra, de per si evidente, do corte e costura feito com pouquíssima arte pelo então futuro Cardeal Charles Journet (e fonte de que beberá Maritain para tomar o caminho do “humanismo integral”). Nosso objetivo aqui, porém, tem efetiva e diretamente que ver com a péssima arte desses homens que, não obstante, eram mentes poderosas e realmente lidas, estudadas; e que por isto mesmo foram capazes de nefastamente influenciar uma multidão de pequenos costureiros da realidade nem de longe talentosos, lidos e estudados como eles, mas que hoje pululam nos media, tesoura e linha na mão, a alinhavar de modo ainda mais bisonho os textos alheios ― e quase sempre a se considerar ou dizer tomistas e católicos da mais pura ortodoxia. E chega a tal ponto a vertigem, que vemos até não católicos brandir não só o referido “princípio fundamental” de Santo Tomás, mas também o próprio “pensamento tradicional da Igreja” a respeito das relações entre poder espiritual e poder temporal... E tal triste espetáculo, com efeito, o vimos renovar-se por ocasião da última encíclica do Papa Bento XVI, Caritas in Veritate.

Com efeito, uma multidão de liberais não-católicos, católicos liberais, católicos humanistas e humanistas nada católicos ― entre os quais tentar estabelecer fronteiras nítidas seria uma empresa, para parafrasear Aristóteles, para um deus ou uma besta... ― se dividiu, com relação à referida encíclica, em dois campos principais. (Naturalmente, excluímos dessa multidão tanto os que criticaram a encíclica do ângulo do magistério infalível e de Santo Tomás quanto os que, sendo embora católicos tradicionais, não quiseram ver nela o que porém é mais que patente.)

1) Um, contrário a ela, pelo argumento de que um governo ou uma liderança mundial, como proposta por Bento XVI na encíclica, contrariaria a sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos, razão por que, ainda segundo este campo, iria contra alguns princípios católicos mais profundos, e de passagem feriria os direitos da Igreja. Como veremos, este grupo recorta, além da verdadeira doutrina católica sobre a liberdade, sobre o direito divino positivo e sobre as relações entre poder espiritual e poder temporal, o Apocalipse joanino ― para dos retalhos fazer uma colcha de nítido fundo liberal “ortodoxo”.

2) O outro, favorável a ela, pelo argumento de que tal governo ou liderança mundial proposta por Bento XVI não só absolutamente não contrariaria a sacrossanta liberdade da pessoa humana e dos povos, mas de modo particular absolutamente não iria contra os princípios católicos das relações entre Igreja e Estado nem, de modo algum, feriria os direitos da Igreja. Como veremos, este campo recorta, além da verdadeira doutrina católica sobre a liberdade e sobre o direito divino positivo, a doutrina do magistério infalível sobre as relações entre poder eclesiástico e poder civil (valendo-se, em particular, para seu afã recortador, de documentos ou pronunciamentos de Bento XV e de Pio XII), e identifica a doutrina de Santo Tomás a respeito desta matéria com a de pretensos seguidores seus, em especial: Dante Alighieri (1265-1321) e seu De Monarchia; o dominicano espanhol Francisco de Vitória (1483-1512); e o teólogo jesuíta, também espanhol, Francisco Suárez (1548-1617) ― para dos retalhos fazer uma colcha de nítido caráter humanista integral e vaticano-segundo.

De fato, esta última posição é caudatária da Constituição Pastoral Gaudium et spes, onde se lê: “Enquanto houver risco de guerra e faltar uma autoridade internacional competente e munida de meios eficazes, uma vez esgotados todos os recursos pacíficos da diplomacia, não se poderá negar o direito de legítima defesa aos governos” (GS 79); “Devemos procurar com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo das nações, possa ser absolutamente proibida qualquer guerra. Isto requer o estabelecimento de uma autoridade pública universal reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos” (GS 82). Pois bem, como diz o Padre Calderón, “por necessidade teológica, a única autoridade com poder eficaz para impedir as guerras que não seja a do Vigário de Cristo será a do Anticristo. Prezado Leitor, não estamos fazendo apocalipse-ficção! Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem da justiça entre os povos por meio dos poderes que lhe comunicou seu Vigário, será o Príncipe das trevas quem o fará por meio dos poderes que lhe fornecer seu primogênito, o Anticristo. São as forças que há em jogo, e não é possível outra coisa. O Concílio Vaticano II tende a preparar com todas as suas forças a instauração não do Reino de Deus, mas do Reino do Inimigo!”. Verdadeiramente, a paz e a cooperação internacionais ou se darão sob as bandeiras da Realeza de Nosso Senhor, ou sob o pavilhão de Satanás.

Mas o que realmente importa segundo o escopo deste artigo não é propriamente demonstrar a maldade intrínseca desta posição nem da sua “contrária”, ou melhor, da referida anteriormente a ela, porque em verdade as duas têm muitíssimos pontos e um trasfondo ou substância comuns. O que realmente importa aqui, no pequeno âmbito deste artigo, é demonstrar até que ponto vai o atrevimento desses costureiros da realidade em sua arte pífia e nada lisa. É o que faremos em seguida.

(Continua.)

Em tempo 1: O fato de tal arte não ser nada lisa independe da ciência atual que seus cultores tenham de tal falta de lisura. Afinal, a ignorância não só pode ser causa de pecado, mas pode ter razão de culpa e pois ser ela mesma pecado (cf. Santo Tomás de Aquino, De malo, q. 3, aa. 6-7).

Em tempo 2: Continuar-se-á este artigo na próxima semana, após o retorno de uma viagem.

sábado, 25 de julho de 2009

Oração de Santo Tomás para os estudos



Criador inefável, que, em meio aos tesouros de Vossa Sabedoria, elegestes três hierarquias de Anjos e as dispusestes em uma ordem admirável acima dos Céus, e que dispusestes com tanta beleza as partes do universo.

Vós, a quem chamamos a verdadeira Fonte de Luz e Sabedoria, e o Princípio supereminente, dignai-Vos derramar sobre as trevas de minha ignorância um raio de Vossa clareza.

Afastai para longe de mim a dupla obscuridade em que nasci: o pecado e a ignorância.

Vós, que tornais eloqüente a língua das criancinhas, modelai minha palavra e derramai nos meus lábios a graça da Vossa bênção.

Dai-me a penetração da inteligência, a faculdade de lembrar-me, o método e a facilidade do estudo, a profundidade na interpretação e uma graça abundante de expressão.

Fortificai o meu estudo, dirigi o seu curso, aperfeiçoai o seu fim, Vós, que sois verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e que viveis nos séculos dos séculos.
Amém.
Em tempo: Esta belíssima oração e outras estão disponíveis no site do amigo Marcel, de Campo Grande (MT): www.santotomas.com.br.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A amizade inimiga

Sidney Silveira
Diz São Tiago que “a amizade do mundo é inimiga de Deus”. E chama de “adúlteros” aos falsos amigos cuja amizade depende mais dos laços mundanos do que do amor a Deus: “Adulteri, nescitis quia amicitia hujus mundi inimica est Dei, quicumque ergo voluerit amicus esse sæculi hujus inimicus Dei constituitur” (Tg. IV, 4).

Comentando esta passagem da Sagrada Escritura, escreve o Padre Antônio Vieira (no Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma) não haver amizade mais inimiga do que esta: “(...) porque debaixo do nome de amigos são os mais cruéis inimigos, e não há amizade tão contrária, nem hostilidade tão feroz, tão nociva e tão inimiga como são estas amizades. (...) Por isso o Apóstolo quando lhes chamou adúlteros lhes chamou também ignorantes — Adulteri, nescitis — porque não sabem que o seu amor é aborrecimento, a sua união discórdia, a sua fidelidade traição, e toda a sua amizade o maior ódio. (...) Mas quem se quer mal e se faz mal porque se ama mal, não se pode querer bem, nem fazer bem, senão aborrecendo-se bem”.

Tais amizades representam uma apropriação indébita dos bens alheios, e dentre todos, do bem principal — sem o qual nenhuma amizade pode sustentar-se: a confiança, que é, nas palavras de Santo Tomás de Aquino, uma espécie de esperança. E não uma qualquer, mas uma esperança fortalecida por inabalável convicção. Ora, essas falsas amizades enfraquecem tal convicção e simplesmente aniquilam a confiança. E tudo isso não se dá sem uma profunda dor, porque, ao afastar-se de nós, o falso amigo deixa-nos sem o chão sob os pés. Mas, passado o primeiro momento, é o caso de dar graças a Deus, porque tal amizade era-o só de nome, e, como diz o mesmo Vieira num outro estupendo sermão, uma coisa é o nome, e outra a ação, e receber o nome de amigo não importa nada, se esse nome não se transforma em obras. Na prática, tais amigos roubam-nos o melhor de nós.

O que transforma esses amigos em verdadeiros compêndios de pusilanimidade? Os repeitos humanos. A amizade do mundo — essa mesma condenada por São Tiago Apóstolo. (...) “amicitia hujus mundi inimica est Dei” (...). Livrai-nos, pois, desses amigos do século, ó Senhor!

Uma imagem que vale por mil palavras


Sidney Silveira
Frades franciscanos (vestidos a caráter!) em meio a agitadores do MST. Essa imagem, posta nos Cruzados de Maria, foi colhida do livro "Pastoral da Terra e MST incendeiam o país", que pode ser adquirido no site www.paznocampo.org.br, onde basta cadastrar-se para receber de graça a obra. Terão lido a Regra Bulada dos Frades Menores estes que desfilam de hábito franciscano? Deus do céu! O que fizeram o comunismo, por um lado, e o liberalismo, por outro, infiltrados nas hostes da Igreja! O primeiro, escolhendo a revolução, trocou Cristo por Barrabás; o segundo pulverizou a doutrina.

terça-feira, 21 de julho de 2009

A atitude do avestruz

Carlos Nougué
Ao final de seus Exercícios Espirituais, na Primeira regra “para sentir exatamente o que devemos na Igreja militante”, diz Santo Inácio de Loiola: “Deposto todo e qualquer juízo [próprio], devemos ter o espírito preparado e pronto para obedecer em tudo à verdadeira Esposa de Cristo Nosso Senhor, que é a nossa Santa Madre, a Igreja Hierárquica [ou seja, o Papa e sob ele a universalidade dos Bispos].” E na Décima terceira regra: “Para que em todas as coisas cheguemos à verdade, devemos manter [o princípio] de crer que o branco que eu vejo é preto, se a Igreja Hierárquica assim o determinar, crendo que entre Cristo Nosso Senhor, Esposo, e a Igreja, sua Esposa, não há mais que um mesmo espírito, que nos governa e rege para a salvação de nossa alma, porque Nossa Santa Madre Igreja é governada pelo mesmo Espírito e Senhor nosso que deu os Dez Mandamentos.”

E o que diz aí Santo Inácio é absolutamente de fé; negá-lo é pecar contra a fé. Há porém dois pressupostos para que assim seja: 1º) o de que o declarado pela Hierarquia diga respeito a fé e costumes (donde a referência a cores por Santo Inácio ter caráter meramente metafórico); 2º) o de que a Hierarquia queira, no que declara, imperar e impor doutrina, querer este que basta, de per si, para a assistência infalível do Espírito Santo. (Quanto aos graus de infalibilidade das declarações papais, e a todos os demais assuntos relacionados a este tema, cf. A Candeia Debaixo do Alqueire, do Padre Calderón.) Ora, o que caracteriza a Hierarquia desde o Concílio Vaticano II é precisamente o fato de que, em vez de impor doutrina do alto de sua autoridade, depõe essa autoridade, reduzindo a sua própria função a mero papel de coordenação “democrática” do debate proposto pelos teólogos e de um suposto sensus fidei “infalível” do conjunto dos fiéis.

Tudo isso tem uma base filosófica: a crença de fundo hegeliano ou nominalista de que ou a verdade é mutável, ou não é alcançável por nossa inteligência, ou não se pode traduzir na “pobre” linguagem humana. E, se vários são os corolários de tal modo de pensar, dois deles nos interessam particularmente aqui: primeiro, a descrença na fixidez dos dogmas; segundo, a redução da religião a mera “experiência” (nunca muito bem definida, por impossível, diga-se). Por esses corolários é que o Concílio Vaticano se disse pastoral e não dogmático; por esses corolários é que todas as declarações e documentos conciliares e pós-conciliares são como sugestões para debate, porque neles nunca se dá a vontade de imperar nem, pois, se empenha ou compromete a infalibilidade papal, que tem justamente aquela vontade por pressuposto.

E não confundamos a autoridade fundada na Verdade com a autoridade fundada na mera jurisdição: aquela é simpliciter efetiva; esta é maquiavélica no sentido preciso do termo. Ora, se em geral as leis iníquas, que parecem não ser leis (“Lex esse non videtur, quae iusta non fuerit” – Santo Agostinho, Sobre o Livre-arbítrio, L. I, c. 5, n. 11), por isso mesmo não obrigam no foro da consciência (“... tales leges no obligant in foro conscientiae” – Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 96, a. 5, corpus), o que dizer das leis disciplinares fundadas na negação de uma das verdades católicas centrais, qual seja, a de que a doutrina da Igreja não pode mudar porque é imutável como o seu próprio autor, Deus mesmo? Com efeito, diz o Concílio Vaticano I: “O Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para que, com sua assistência, promulgassem uma nova doutrina, e sim para que, com sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da fé” (Constituição Dogmática Pastor Aeternus, cap. 4). Por que o disse esta Constituição? Por que dissera São Paulo aos Gálatas (I, 9): “Ainda que nós mesmos, ou um anjo do Céu, vos pregue um evangelho diferente do que nós vos anunciamos, seja anátema.”

Por tudo isso, portanto, é que os católicos não devemos ao magistério fundado no Concílio Vaticano II (e em seus pressupostos filosóficos) a obediência que Santo Inácio propugnava;* e isto vale, naturalmente, para a última encíclica do Papa Bento XVI, Caridade na Verdade. Posto, pois, este preâmbulo, podemos passar agora ao que me faz escrever este breve artigo: a atitude de avestruz de alguns católicos conservadores diante do óbvio, isto é, o não querer ver o que na referida encíclica é perfeitamente branco e nada preto. Ou vice-versa.

Tal atitude está perfeitamente resumida, e defendida, no editorial de John-Henry Westen, “Pope’s New Encyclical Speaks Against, not for One-World Government and New World Order”, para a edição de 8/7/2009 do LifeSiteNews.com. Com inequívoca intenção, escreve-se ali que “Jornais, blogs, programas de rádio e de televisão estão cheios de discussões acerca do suposto convite do Papa Bento XVI a uma ‘nova ordem mundial’ ou um ‘governo mundial’. Estas idéias, no entanto”, prossegue o editorialista, “não se baseiam na realidade nem numa leitura clara da última encíclica do Papa, Caritas in Veritate, cuja publicação [...] provocou a inflamada discussão”.

Deixo de lado muitos detalhes do editorial, e volto-me para a sua afirmação central: “O Papa, na verdade, fala diretamente contra um governo mundial e [...] convida a uma maciça reforma das Nações Unidas”; e “no parágrafo 41 [...] diferencia especificamente seu [grifo nosso] conceito de autoridade política mundial [world political authority] do de governo mundial [one-world government]”. Concedo perfeitamente que o Papa faça a referida diferenciação e que diga o que diz John-Henry Westen em seu editorial; o que porém nenhum católico deveria conceder é que esse conceito de autoridade política mundial seja católico, ainda que em tal conceito se trate, como diz o mesmo editorialista, de uma autoridade mundial “difusa”. (O que significa exatamente uma “autoridade difusa”, isso me parece muito difícil dizer.)

Com efeito, o não-católico de tal conceito reside precisamente em que, para a imutável doutrina da Igreja, todo e qualquer poder político deve ordenar-se essencialmente ao fim último do homem, Deus mesmo, e pois ao poder espiritual por Ele mesmo instituído na terra, a Igreja – seja o poder político local ou imperial. Defender qualquer world political authority sem essa ordenação é gravíssimo, enquanto não o seria (falo hipoteticamente) defender um one-world government ordenado à Igreja. Sim, porque o poder temporal se ordena ao espiritual assim como o corpo humano se ordena à sua alma. Mais que isso, porém, e quem o diz é o Papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam, de 18/11/1302: como se ensina nos Evangelhos [Lucas, XXII, 38, e Mateus, XXVI, 52], estão em poder da Igreja duas espadas (ou gládios), “a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja, enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja. A espiritual deve ser manejada pela mão do sacerdote; a temporal, pela mão dos reis e soldados, mas segundo o império e a tolerância do sacerdote. Uma espada deve estar sob a outra espada, e a autoridade temporal deve ser submissa ao poder espiritual” (grifos nossos; “... spiritualis scilicet gladius et materialis. Sed is quidem pro ecclesia, ille vero ab ecclesia exercendus. Ille sacerdotis, is manu regum et militum, sed ad nutum et patientiam sacerdotis. Oportet autem gladium esse sub gladio, et temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati”). E, justamente porque as coisas espirituais sobrepujam as temporais e, em conseqüência, o poder espiritual supera em dignidade e nobreza qualquer espécie de poder terrestre, é que, “como atesta a verdade, o poder espiritual pode instituir o poder terrestre, e julgá-lo, se este não for bom” (ibid.; “... veritate testante, spiritualis potestas terrenam potestatem instituere habet, et iudicare, si bona non fuerit”).

Poderia citar outros documentos do magistério infalível da Igreja, como a carta magna da Cristandade que é a Quas primas de Pio XI, para corroborar o que aqui se diz da Encíclica Caritas in Veritate. Mas bastará confrontar o que se acaba de ler de Bonifácio VIII com o que diz o mesmo John-Henry Westen no último parágrafo de seu editorial. Com efeito, lê-se aí: “Qualquer visão de uma adequada ordenação do mundo, da cooperação econômica ou política internacional, sugere o Papa, deve basear-se numa ‘ordem moral’. Isso inclui, em primeiro lugar e principalmente, ‘o direito fundamental à vida’ [...], o reconhecimento da família baseada no casamento entre um homem e uma mulher como base da sociedade, a liberdade religiosa e a cooperação entre todas as pessoas com base nos princípios da lei natural.”

Atentemos para as principais insuficiências (do ângulo da doutrina infalível da Igreja, obviamente) e contradições do texto, que porém reflete fielmente o pensamento do Papa expresso em Caritas in Veritate:

a) A ordenação do mundo (e dos Estados que o compõem) deve, sim, basear-se numa “ordem moral”, mas não tendo por fim uma melhor cooperação política e econômica internacional, porque, como diz Santo Tomás de Aquino em De Regno, “é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, mediante uma vida virtuosa, alcançar a fruição divina”. De fato, assim como não importa salvar a vida se com isso se perde a alma, assim também, analogamente, não importa melhorar a economia e as relações políticas internacionais se com isso, por não se fazer em ordem a Deus, se perdem bilhões de almas mundo afora. Mais ainda e acima de tudo: se com isso não se presta a devida glória a Deus, mas antes fica ela ofendida.

b) Além do mais, como é possível dizer que “o casamento entre um homem e uma mulher” (grifo nosso) deve ser “a base da sociedade” e propor, ao mesmo tempo, a “liberdade religiosa”? Sim, porque ou não se vai dar liberdade ao islamismo, ou se terá de aceitar o casamento entre um homem e muitas mulheres...

c) Além do mais, a defesa da “liberdade religiosa”, como tantos e tantos autores já o demonstraram à exaustão, contraria as Sagradas Escrituras, o Traditum, o magistério infalível da Igreja... e o simples bom senso, como aliás acabamos de ver pelo único exemplo do item anterior.

d) Além do mais, e por fim, como sustentar uma “cooperação entre todas as pessoas [ou seja, independentemente de religião] com base nos princípios da lei natural” se o primeiro e supremo mandamento da lei natural é amar a Deus acima de todas as coisas e não adorar falsos deuses ou ídolos, e se Cristo mesmo nos veio dizer que Deus é trino? Como poderão cumprir tal mandamento os ateus e os membros de quaisquer religiões não-cristãs? Não só isso, porém: se, como sabemos, a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana é de instituição divina, e é a única que pode dirigir os indivíduos a uma vida virtuosa segundo a lei natural para que, mediante ela, alcancem a fruição divina, como crer que os heréticos e os cismáticos possam “cooperar” com tal direção única? Autoriza-nos a ter tais “esperanças” a História? Como no-las autorizaria, se, se excetuam os cerca de mil anos que vão de Constantino a Bonifácio VIII, toda a História depois de Cristo não passa de um longo cortejo de perseguições à Esposa de Nosso Senhor?
Verdadeiramente, a paz e a cooperação internacionais ou se darão sob a direção do Vigário de Cristo, ou sob o tacão do Anticristo. Ou se darão sob as bandeiras da Realeza de Nosso Senhor, ou sob o pavilhão de Satanás. E, como se lê no Catecismo da Realeza Social de Jesus Cristo, do Padre A. Philippe, C.SS.R., ainda que tudo no mundo indique a impossibilidade aparente dessa Realeza, devemos defendê-la até a morte – não seja que, de tanto a omitirmos, acabemos nós mesmos por negá-la.

Em tempo: Dizia o Padre Pio de Pietrelcina: “Afasta-te do mundo. Escuta-me: um se afoga em alto-mar, outro se afoga num copo d’água. Que diferença há entre um e outro? Não estão mortos os dois?”.
Adendo do Sidney: Em sentido prático, a world political authority que propõe o Papa em sua Encíclica é muito mais grave do que o one-world government, pelo simples fato de que este último acabará de alguma forma por apoiar-se naquela — pois todo e qualquer governo, mesmo um maquiavélico e de per si ilegítimo, precisa sustentar-se em algum grau de autoridade política, sem o que não conseguiria impetrar os seus atos de governança. Se estas são exatamente as duas bestas de que fala o Livro do Apocalipse é algo que não temos como dizer, mas uma coisa é certa: afirmar que a Caritas in Veritate se opõe à ordem mundialista simplesmente porque critica o one-world government é pior do que um sofisma; é fechar os olhos para não ver. É a atitude mais cômoda, tanto para católicos conservadores com mil e um comprometimentos (diretos ou indiretos) com movimentos ou facções do Catolicismo atual, como para tradicionais que caíram na quimera milenarista da reconstrução da Cristandade no mundo, a esta altura do campeonato (quase à maneira de um Joaquim de Fiore). Por fim, antes que algum engraçadinho murmure que estamos julgando a pessoa do Papa, como dizem os nossos detratores nos ouvidos de gente amiga, com o intuito de afastá-la de nós, vale dizer: o que está em jogo é a Encíclica e o que nela está escrito, e não a intenção com que o Papa a escreveu. Se nem a Igreja, que é Santa, julga de foro interno, que dirá nós, pobres mortais e míseros pecadores!

sábado, 18 de julho de 2009

Ramon Llull e as Cruzadas


Sidney Silveira
Eis o próximo livro da Sétimo Selo, que já está no forno: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Nele apresentamos (em edição trilíngüe: latim, catalão e português) três obras do peculiar autor medieval sobre este tema comumente mal interpretado por ideólogos os mais variados. Noutro post, falarei mais sobre a obra. Por ora, fiquem com o começo da Nota dos Editores, assinada por mim e que precede os demais textos da edição. Também falaremos (antes do lançamento do livro) um pouco mais sobre o caráter das Cruzadas, a partir de uma perspectiva histórica realista.


BREVE NOTA DOS EDITORES

Quando o Papa Inocêncio III convocou o IV Concílio de Latrão,[1] por intermédio da bula Vineam Domini Sabaoth (de 10 de abril de 1213), já se haviam passado quase cento e vinte anos desde a Primeira Cruzada,[2] proclamada em 1095 por Urbano II com o objetivo expresso de libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. O cânone 71º desse Concílio (Expeditio pro recuperanda Terra Sancta) garantia àqueles que de alguma forma contribuíssem com a luta a completa remissão dos pecados, desde que, sinceramente arrependidos e com o coração contrito, passassem pela confissão auricular [3] — espécie de preparação sacramental prévia para o cristão que, pondo em risco a própria vida, se aventurasse numa expedição levada a cabo no contexto da defesa da fé.[4] A partir de então, a Cristandade organizou-se para esta que ficou vulgarmente conhecida como a Quinta Cruzada, entre 1217 e 1221, sob o pontificado de Honório III.

Aduzimos este exemplo apenas para advertir que, se um historiador perde de vista as motivações religiosas da luta armada dos cristãos contra os infiéis — apontadas em farta documentação pelas autoridades eclesiásticas —, está ipso facto incapacitado para emitir sobre elas um juízo histórico equilibrado. Acabará, quer o queira, quer não, por instrumentalizar a história e pô-la a serviço de alguma ideologia.[5] Isto é o que fazem muitos escritores cujo único zelo parece ser o de dar às fontes primárias que analisam uma intenção diametralmente oposta às que estão consignadas nos documentos. Pressupor que todas as Cruzadas tivessem um objetivo meramente político ou econômico, sem trazer à luz nenhum registro da autoridade eclesiástica em que tais motivos estejam descritos ou pelo menos insinuados, é um dentre tantos exemplos encontradiços em certa historiografia daninha, que pretende recontar a história da Igreja a partir de ideologias que lhe são frontalmente adversas. O resultado dessa peculiar hermenêutica compõe quase sempre o quadro sombrio de uma Igreja autoritária, interessada tão-somente em fins políticos, em bens materiais e no domínio indevido sobre a vida das pessoas.

A consideração das fontes eclesiásticas a respeito do tema (bulas, decretos pontifícios, encíclicas, concílios, etc.) é o primeiro passo para uma genuína aproximação da verdade histórica, ainda que de maneira assintótica.[6] Mas isto com duas importantes ressalvas: 1ª. é fundamental o historiador conhecer qual seja, de acordo com a Igreja, o caráter do Magistério (as suas premissas teológicas, os seus fins, o seu sujeito, os seus atos, os seus níveis hierárquicos, os seus órgãos principais e subsidiários, os graus de comprometimento doutrinal, etc.); . antes de aventurar-se a temerários vôos interpretativos, o historiador precisa ater-se, primacialmente, ao que informam esses documentos. Um exemplo de desvio desta norma são as opiniões antipapistas que pululam na historiografia contemporânea, as quais têm o sestro de atribuir à autoridade suprema da Igreja intenções que não estão assinaladas nas fontes, como por exemplo a de que o papado ou a Cúria eram movidos por interesses menores, como o de afirmar-se politicamente.

Em se tratando de autor cristão medieval que tenha abordado um tema ligado à ação política, como é o caso de Lúlio, tais pareceres ideológicos afloram quando se ignora o imenso cabedal de fontes eclesiásticas acerca do papel que a política deve ocupar, de acordo com a doutrina da Igreja. Não sendo este o lugar de aprofundar a questão, apontemos tão-somente um ponto crucial em que o Magistério e — seguindo-o de perto — alguns dos maiores teólogos e Doutores da Igreja coincidem: tanto os homens como as sociedades estão ordenados ao fim último, cujo usufruto é contemplar beatificamente a essência divina. É enfática a doutrina quanto a este ponto, ao frisar que a autoridade política tem caráter meramente instrumental, em vista da salvação querida por Deus para todos os homens.

Dizia a este respeito Bonifácio VIII na bula Una Sanctam, de 18 de novembro de 1302: “(...) este poder comporta duas espadas, e todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Esta última deve ser usada para a Igreja (pro Ecclesia), enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja (ab Ecclesia). O poder espiritual deve ser manuseado pelos sacerdotes; o temporal, por reis e cavaleiros de acordo com o consenso e a vontade dos sacerdotes. Uma espada deve estar subordinada à outra espada, e a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual (et temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati). (...) A verdade atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo, se não for bom (Nam, veritate testante, spiritualis potestas terrenam potestatem instituere habet, et iudicare, si bona non fuerit)”.[7]

O que se diz das interpretações forçosas acerca das medidas político-prudenciais do papado medieval e dos Concílios no tocante às Cruzadas serve, igualmente, para o pensador catalão Raimundo Lúlio (Ramon Llull), incensado como o precursor do que hoje se convencionou chamar de “diálogo inter-religioso”. Ocorre o seguinte: para alguns desses valorosos e eruditos historiadores, as três obras do autor catalão que apresentamos neste volume são uma pedra de tropeço, pois nelas Lúlio mostra um ímpeto cruzadístico verdadeiramente impressionante, ao exortar o Papa Nicolau IV a reiniciar as Cruzadas (após a queda, em 1291, do último reduto cristão na Palestina, a cidade de São João d’Acre); ao propor táticas para levar os cristãos à vitória definitiva; ao falar ao Papa da necessidade de fazer uma guerra permanente contra os sarracenos; ao afirmar que “os anjos do Paraíso e os santos desejam que a Terra Santa e outras terras que os infiéis tomaram dos latinos sejam recuperadas”; etc.

CONTINUA (...).

________________________
[1] A importância do IV Concílio de Latrão pode ser mensurada, entre outras coisas, por duas doutrinas concernentes à fé solenemente proclamadas naquela ocasião — além da condenação formal das heresias trinitárias do monge cisterciense Joaquim de Fiore e da convocação de mais uma expedição militar para libertar a Terra Santa, em poder dos muçulmanos. 1ª. Fora da Igreja não há salvação (“Una vero est fidelium universalis Ecclesia extra quam nullus omnino salvatur); 2ª. A Virgindade Perpétua de Maria (Et tandem unigenitus Dei Filius Iesus Christus a tota Trinitate communiter incarnatus ex Maria semper virgine).
[2] Nesta breve nota, preferimos utilizar o termo “Cruzada” por uma simples convenção historiográfica e também para facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com estas questões terminológicas. A este problema se atém o texto da Introdução ao presente volume.
[3] “Nos igitur omnipotentis Dei misericordia et beatorum apostolorum Petri et Pauli auctoritate confisi ex illa quam nobis licet indigne Deus ligandi atque solvendi contulit potestate omnibus qui laborem propriis personis subierint et expensis plenam suorum peccaminum de quibus liberaliter fuerint corde contriti et ore confessi veniam indulgemus et in retributione iustorum salutis æternæ pollicemur augmentum”.
[4] Que as motivações dessa luta armada contra os infiéis fossem de defesa da fé (e, na perspectiva da Igreja, em favor da salvação das almas dos eleitos pela presciência divina) é o pressuposto de todos os documentos deste Concílio. A propósito, a defesa da fé tem sempre em vista o bem comum da Igreja, ainda quando as ações implicadas se dêem no plano político. Quando, por exemplo, diz-se que a heresia deve ser combatida por ser fruto da cegueira instilada pelo “pai da mentira” (pater mendacii), vale frisar: quer o historiador acredite ou não no demônio, quer acredite ou duvide da insensatez das doutrinas heréticas ali aludidas, não é lícito nem hermeneuticamente defensável que pressuponha haver, por trás dessa razão claramente expressa no documento eclesiástico, outras motivações ocultas, de ordem política ou econômica. A menos que estivessem consignadas nas fontes.
[5] Cunhado no livro Elements d’idéologie (1801) por Antoine Destutt de Tracy, discípulo de Condillac — ambos liberais revolucionários —, o termo “ideologia” exerce ali, segundo o próprio autor, o papel de “filosofia primeira” em substituição a qualquer metafísica e a qualquer religião. O que, porém, quer dizer precisamente De Tracy ao falar de “filosofia primeira”, já que não se trata de metafísica? Ora, esta sempre fora considerada a filosofia primeira por tratar, justamente, das coisas que são primeiras na realidade: Deus incluído, e acima de tudo. A “ideologia” do francês tinha o exato sentido de “ciência das idéias”, e, como uma ciência ou filosofia se define pelo seu objeto, e como a “ideologia” de De Tracy se substituía à metafísica como “filosofia primeira”, logo, para ele as coisas primeiras na realidade só podiam ser... idéias! O que se diz da “ideologia” de De Tracy se pode também dizer de todas as ideologias: trata-se, sempre, de um apartamento entre as idéias e as coisas, uma colocação indevida e arbitrária de uma idéia (ou conjunto de idéias) no lugar dos entes. Em resumo: uma não-aceitação das coisas como são. Essa falta de docilidade para com os dados da realidade é um dos signos por excelência do espírito antifilosófico.
[6] Por melhor embasado que seja, o juízo histórico terá sempre o caráter de interpretação de uma presumível verdade acerca do passado, diferentemente do juízo metafísico, que parte de evidências extraídas de primeiros princípios indemonstráveis e chega a conclusões necessárias. Como bem afirma Juan Cruz Cruz em Filosofia da História, embora o juízo histórico possua certeza e alcance um alto grau de verossimilhança, carece de uma evidência absoluta, lógico-apodíctica. Daí que a história seja uma recriação intencional do passado a partir de vestígios consignados nas fontes escritas ou em tradições orais. Para ser historiador, não basta compulsar mil arquivos; é preciso reunir a maior quantidade de informações e interpretá-las à luz de algum método. Ver. Cruz Cruz, Juan. Filosofia da História. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, pp. 13-23.
[7] Papa Bonifácio VIII. Una Sanctam, 18/11/1302 (grifos nossos). Esta sempre foi a doutrina comum da Igreja, e escolhemos a presente bula por ter sido consignada no mesmo período em que Lúlio escrevia os textos publicados na presente edição — para mostrar quão afinado estava ele com a Igreja, neste ponto específico. E não é ocioso deixar o registro de que se trata de doutrina multissecular, como se pode confirmar por uma Encíclica escrita mais de 700 anos depois: “Não se neguem, pois, os governantes das nações a dar por si mesmos e pelo povo públicas mostras de veneração e de obediência ao império de Cristo, se porventura pretendem conservar incólume a sua autoridade” (grifos nossos). Papa Pio XI. Quas Primas, nº 16, 11/12/1925.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Realeza de N. S. Jesus Cristo e o nefasto hábito da omiti-la

Carlos Nougué
Sigo sem tempo para escrever mais longamente para o blog; logo o farei. Por enquanto, porém, não posso deixar de demonstrar ainda que brevemente minha estupefação com certas coisas que leio saídas da pena de alguns católicos tradicionais, mais precisamente a respeito da última encíclica do Papa Bento XVI, Caridade na Verdade.

Mais precisamente ainda: dizem esses católicos que seria um absurdo ou injustiça criticar a encíclica pelo fato de ela não propor coisas catolicamente mais avançadas, estando claro, para os autores dessa tese, que tais coisas são impossíveis nos dias de hoje. Proporia assim o Papa, em sua encíclica, coisas factíveis na atualidade, quando já não vivemos na Cristandade ou civilização cristã.

Ora, o xis da questão não está aí. Está em que, para todos os católicos humanistas desde o velho Dante (passando pelo “tomista”, em verdade humanista, Francisco de Vitória, sobre o qual voltarei a falar, detidamente), a economia, a política, o Estado, o direito das gentes e as relações internacionais não estão essencialmente ordenados ao fim último do homem, Deus, nem pois ao poder espiritual por Ele instituído na terra, a Igreja.

Com efeito, que me importa salvar minha vida se com isso perderei minha alma? Pois bem, analogamente, que importa melhorar a economia e as relações políticas internacionais se tal não se faz em ordem a Deus e se, portanto, com isso, se perderão bilhões de almas mundo afora?

Lembremo-nos – e isto, como já se disse, não é “apocalipse-ficção”! – de que o próprio Anticristo, ou seja, o primogênito de Satanás, fará prodígios impressionantes no campo dos assuntos do mundo. E, como se lê no imprescindível Catecismo da Realeza de Jesus Cristo (se não me engano, a Fraternidade São Pio X o relançou recentemente), ainda que tudo no mundo indique a impossibilidade aparente dessa Realeza, devemos defendê-la até o último suspiro – não seja que, de tanto a omitirmos, acabemos nós mesmos por negá-la.

O "Index Bonorvm": iniciativa que nos serve de exemplo

Sidney Silveira
Gederson Falcometa, que nos dera a idéia de criar a "TV" Contra Impugnantes, agora nos dá notícias de algumas atividades (católicas) que ele e alguns amigos estão levando adiante na cidade de Belo Horizonte, em um escritório no Centro da capital mineira. Fala-nos também da criação do Index Bonorvm, cujos objetivos estão claramente descritos neste blog, e nos apresenta a Frederico de Castro, criador do Opvs Ivstitiæ Pax e dos Cruzados de Maria, e a Renato Salles. Ao que parece, todos são jovens — e estão imbuídos do louvável propósito de difundir a sã doutrina. O Index Bonorvm a mim me parece uma belíssima iniciativa com que devemos contribuir material e espiritualmente. Não resisto a compará-la às atividades de nossos atuantes católicos liberais difusores da pior cultura de almanaque que possa haver, cuja catolicidade é como uma cabeça de avestruz enfiada no mais nauseante estrume multicultural (perdoem-me as almas cândidas, que podem ruborizar com tal imagem, mas na verdade ela é "fichinha", perto do furor de um São Bernardo ou da acidez de um Santo Antônio).

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Potestas Ecclesiæ: pensamento do dia

Sidney Silveira
"O poder do Magistério ordena-se a obter o assentimento do intelecto; o poder de Governo a exigir o assentimento da vontade; e o poder de santificação a conferir a vida da graça". Como é bela a doutrina tradicional da Igreja!

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Manifestações acerca de "A Candeia Debaixo do Alqueire"

Sidney Silveira
Como exemplo das várias mensagens que nos tem chegado a respeito do livro A Candeia Debaixo do Alqueire, disponibilizo hoje dois textos. O primeiro deles foi veiculado no blog Lumina Virtutum (
http://luminavirtutum.blogspot.com); o segundo é de um leitor (cujo nome omito).

“Quando nos deparamos com um grande livro, devemos imediatamente recomendá-lo ao maior número possível de leitores. Quando nos deparamos com um livro que tem como principal objetivo a edificação da fé no plano da verdade, somos obrigados a recomendá-lo. Assim é o livro A Candeia Debaixo do Alqueire, do grande teólogo Padre Álvaro Calderón. Os leitores podem se surpreender em dois planos. Primeiro: trata-se de um livro de teologia. Sim, ainda existem teólogos e livros de teologia completamente diferentes das pseudo-abordagens sociológicas de cunho marxista, como a medíocre teologia da libertação que infecta os seminários católicos. Segundo: teologia rigorosa, método escolástico da disputatio. Como os teólogos católicos seriam mais dignos se os progressistas não tivessem banido a escolástica dos seminários! Esse livro pode levar uma pessoa à conversão ou mesmo a um processo de purificação de idéias em relação ao Concílio Vaticano II. Pessoas que estejam propensas à busca da verdade, pois o núcleo desse livro é a questão da verdade concernente ao Concílio Vaticano II. Leiam! Todo Católico deve lê-lo!”.

"Prezado Sr. Sidney,
Venho hoje parabenizá-lo por ter dado a mim a oportunidade de conhecer tão elevada doutrina e tão explícita verdade, por meio da obra magistral "A Candeia debaixo do Alqueire". Lê-lo me fez ver o quão tenebrosos ainda são os tempos em que vivemos. (...) [o livro] abriu meus olhos para o perigo que correm todos aqueles chamados de "tradicionalistas" que, levados por palavras que não foram ditas e atitudes que não foram tomadas e indícios que inexistem, vêem catolicidade onde ela não está e verdade no erro. (...) Mais uma vez agradeço o grande bem à minha alma que vocês fizeram, sendo instrumentos nas mãos de Deus para a proclamação da verdade”.

A estes e a outros que nos têm escrito, agradecemos eu e o Nougué.

domingo, 12 de julho de 2009

Um governo mundial, sob uma moeda mundial. A Encíclica do Papa e o G-8





Sidney Silveira
A última Encíclica do Papa Bento XVI (Caritas in veritate) vem a propósito do tema eclesial mais importante dos últimos 45 anos: qual é a autoridade do Magistério da Igreja quando não tem a expressa intenção de impor uma doutrina sobre fé e costumes, fazendo uso de sua suprema autoridade apostólica, mas possui apenas a manifesta intenção de propô-la ao modo de diálogo intra Ecclesiam, com o rebanho dos fiéis, e extra Ecclesiam, com o mundo? Esse magistério é ou não vinculante para nós, católicos? Essa resposta deu-a de modo definitivo e magistral o Padre Calderón, neste que é, repito e repetirei à exaustão, o livro mais importante das últimas décadas, em todo o mundo. Um livro extraordinário que (como ainda hoje me confidenciou por email um dos muitos leitores que nos têm escrito a mim e ao Nougué mensagens de emocionado agradecimento pela publicação da obra) “é capaz de levar à conversão ou a um processo de purificação da conversão”.

Os católicos liberais estão eriçadíssimos por conta dessa Encíclica, e não poderia mesmo deixar de ser: se, em qualquer que seja a variável na qual chafurde, o liberal não consegue resolver o falso dilema em que se meteu (o da dicotomia entre liberdade e autoridade externa à da sua consciência individual), é óbvio que uma autoridade política mundial com poder de mando sobre todas as nações, como propõe o Papa, lhe parecerá a mais inimaginável das opressões. As pérolas que tenho lido na internet, da parte dos liberais, vão da mal-disfarçada malícia à idiotia pura e simples. E embora em geral acertem quanto ao caráter nefasto de uma tal autoridade mundial meramente política — que, a propósito se avizinha de nós como um bólide gigantesco do qual parece não haver mais como fugir —, erram num ponto crucial do diagnóstico, pois só concebem o malefício de tal proposição nesse mesmo plano político, que artificiosa e convenientemente já haviam separado do plano espiritual superior. O alcance do malefício (que não parece ser outro senão o breve reino do Anticristo de que nos fala o Evangelho) escapa a esses católicos liberais. Um deles certa vez confidenciou-me que “essa coisa apocalíptica” lhe parecia uma ficção, se olharmos a situação atual do mundo. Paciência! Se não se quer ver que a vaca está no brejo, com as patas atoladas e os sininhos balouçantes, paciência! Esse tipo de cegueira afigura-se a mim como um mistério insondável. Bem dizia Chesterton pela boca do Padre Brown que, se um dia assassinasse alguém, certamente seria um otimista... Referia-se o grande escritor inglês ao otimista cego às evidências mais gritantes de que as coisas não vão nada bem.

Lendo o trecho de Caritas in veritate no qual o Papa Bento XVI diz que “urge uma Autoridade política mundial” (o A maiúsculo e o itálico são do Papa), e mais, que “tal Autoridade [política] deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos” (nº 67), lembro-me do que escreveu há algum tempo o mesmo Padre Calderón, num outro livro tão estupendo como A Candeia Debaixo do Alqueire. São palavras que agora se revestem de caráter profético. E, embora referindo-se aos textos do Concílio Vaticano II, tais palavras se aplicam grandemente ao que vivemos hoje — quando sentimos tão próxima a possibilidade de instaurar-se uma tal ordem política (e econômica) com poder de mando sobre todos os confins da Terra. Diz o nosso teólogo:

“O Concílio advoga pela constituição de uma autoridade política mundial com poder sobre as nações, como para impedir guerras. É este, a propósito, um dos principais clamores de Gaudes et Spes: ‘Enquanto exista o risco de guerra e falte uma autoridade internacional competente provedora de meios eficazes (grifo nosso!), uma vez esgotados todos os recursos da diplomacia, não se poderá negar o direito de uma legítima defesa das nações’ (nº. 79); ‘(...) ‘Devemos procurar com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo entre as nações, possa ser proibida absolutamente qualquer guerra. Isto requer o estabelecimento de uma autoridade política pública universal (grifo nosso!) reconhecida por todos, com poder para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos’ (nº. 82). Pois muito bem: a única autoridade com poder eficaz para impedir as guerras que não seja a do Vigário de Cristo, será a do Anticristo. Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem de justiça entre os povos por meio do poder que comunicou a seu Vigário, será o príncipe das trevas quem o fará por meio dos poderes que comunicou a seu primogênito, o Anticristo”.

Neste ponto vale destacar, e com toda a ênfase, que não é uma simples hipótese teológica, mas sim uma verdade de fé com base na Sagrada Escritura (em Apocalipse, XIII), que haverá um só poder político mundial, sob cujo mando despótico estarão todas as nações. Se se é católico, é preciso crer nisso firmemente! Outra coisa: ao contrário do que quer acreditar o nosso católico liberal, a matéria de que se trata não é alheia à fé e aos costumes, mas muito pelo contrário: diz respeito às duas!!! Afirma a Escritura, com meridiana clareza, que todo poder político vem do alto (cfme. Rom., XIII, 1; e Jo. XIX, 11). A propósito, o mesmo dizia Leão XIII, com apoio maciço de todo o Magistério anterior a ele:

“O poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-Lhe sujeitas e obedecer-Lhe; de tal modo que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos." (Leão XIII, Diuturnum illud, 29 de Junho de 1881).

Se o Papa propusesse a si mesmo como a única Autoridade (esta sim, com A maiúsculo, porque participada por Nosso Senhor, que é Deus) capaz de reinar sobre todas as nações, estaria repetindo uma doutrina comum da Igreja por séculos sem fim. Mas propor uma autoridade mundial meramente política é algo que nenhum católico deve considerar como vinculante, ou seja: como algo que obrigue a sua consciência a seguir. Entre outras coisas, porque se trata de uma proposição ao modo de diálogo, e não uma imposição magisterial expressada de forma solene, com intenção expressa de obrigar o rebanho de fiéis. E um dos quatro pontos essenciais com relação à infalibilidade papal, cabe relembrar, diz respeito justamente à intenção de obrigar a todos os fiéis, a qual não pode ser oculta, mas expressa, dado o nosso humano modo de conhecer. Ademais, que autoridade tem a Autoridade quando depõe a si mesma, indicando a criação de uma outra para reger o mundo, ainda que essa outra busque fins infinitamente menores? Não tem a Igreja poder de ensinar, santificar e, TAMBÉM, reinar? Este é outro grave ponto resolvido pelo gênio teológico do Padre Calderón...

O único obstáculo para o reinado do Anticristo de que fala a Escritura sempre foi, única e exclusivamente, a pax Christi custodiada pela Igreja, quer dizer: a paz que pode ser estabelecida pela verdade revelada, da qual provêm tanto o Magistério, com os seus dogmas e as suas leis, como os sacramentos, sinais sensíveis da graça dada gratuitamente a todos, em vista de que se salvem; e não a pax mundi instaurada por instâncias políticas e ao sabor de interesses humanos. Se a Igreja abre mão de propor-se a si mesma como mestra e reitora das nações, e propõe em seu lugar nada menos do que a ONU, que pensar? Estamos diante um mistério.

Coincidentemente ou não, exatamente nesta mesma semana em que o Papa propõe uma autoridade política mundial, o G-8 propõe uma moeda mundial — já até cunhada, como se vê nas imagens que ilustram o presente texto. Arrepia-me tal coincidência, assim como pensar num poder político e num poder econômico mundiais, com fins meramente humanos, apoiados e referendados pela única autoridade espiritual que visa ao bem superior da salvação das almas.
Em tempo: Diz São Paulo (2 Tess.) que primeiramente deve vir a dissensio (ou apostasia), para depois manifestar-se o Homem ímpio. Lembra-nos o Padre Calderón que essa apostasia havia sido entendida pelos Santos Padres tanto como apostasia da fé — dissensio a fide — quanto como apostasia do Império — dissensio a Romano Imperio. Comenta Santo Tomás essa grave passagem da Epístola: “Diz Santo Agostinho que [a dissensio Romano Imperio] está representada pela estátua de Daniel (II, 31), onde se nomeiam quatro reinos, depois dos quais se dará o advento de Cristo, o que era um signo conveniente, porque o Império Romano foi estabelecido PARA que sob o seu poder se pregasse a fé por todo o mundo (grifo nosso). Mas como pode ser assim, se as nações deixaram o Império Romano e não veio o Anticristo? A isto deve responder-se que o Império todavia não acabou, mas mudou de material em espiritual. (...) Portanto, há que dizer-se que a apostasia do Império deve entender-se não somente a respeito do plano temporal, mas também do espiritual, quer dizer: a fé da Igreja Católica Romana. Este é um signo adequado, porque assim como Cristo veio quando o Império Romano dominava a todos, assim também a apostasia do Império será um sinal do Anticristo”. (II, Ad Thess. caput II, lec 1). Palavra de Doutor Comum!

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Novo livro em produção

Sidney Silveira
A várias pessoas que me mandaram emails nos últimos dias peço desculpas por não ter respondido; por estes dias, entre outras coisas estou envolvido com o próximo livro da editora Sétimo Selo, que apresentaremos — se for da vontade de Deus — em agosto. Falarei dele depois.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Michael Jackson no jornal "L'Osservatore Romano"









Sidney Silveira
Não é preciso comentar. As palavras são do jornal "L’Osservatore Romano", diário extra-oficial da Santa Sé, a respeito de Michael Jackson.

> “Talvez Jackson não quisesse simplesmente tornar-se um branco, mas superar limites, mesmo artísticos, impostos pela identidade étnica".
> “Todos sabem a respeito de seus problemas com a lei, depois das acusações de pedofilia. Mas nenhuma acusação, embora séria ou escandalosa, é suficiente para desdourar seu mito entre milhões de fãs no mundo inteiro".
> “Menino prodígio”.
> “Michael [com as suas cirurgias] passou por um processo de autodefinição que superou a raça”.

Alguém ainda é capaz de (com a maior cara-de-pau) pôr em dúvida a monumental crise que assola a Igreja? Se, desde a década de 60, os católicos foram perdendo a distinção entre natural e sobrenatural, agora parecem ter perdido definitivamente outra: entre natural e antinatural.

domingo, 5 de julho de 2009

"TV" Contra Impugnantes — penúltimo trecho...

Sidney Silveira
...da entrevista do Nougué ao prof. Marcos Cotrim (da Universidade Católica de Anápolis - GO).

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Relações Igreja-Estado (III)

Sidney Silveira
No último texto sobre o tema das relações Igreja-Estado, vimos que o Magistério tradicional sempre destacou os seguintes ensinamentos: a) a única e verdadeira religião é a Católica; b) o Estado deve professar a Religião. À simples audição de tais idéias, o liberal católico tem sintomas psicofísicos que se assemelham a verdadeiras comichões subcutâneas, pois isto agride as susceptibilidades daquilo que, de forma equívoca, ele chama de “liberdade”. Vejamos.

Estes dois ensinamentos do Magistério encontram o seu fundamento na Sagrada Escritura, mas não custa relembrar algo que já frisamos noutro texto: o Magistério eclesiástico tem um objeto primário (as verdades reveladas implícita ou explicitamente por Deus) e um objeto secundário (todas as verdades que, embora não tenham sido expressamente reveladas, ao juízo da Autoridade estão de tal forma integradas à Revelação, que são necessárias para custodiar o precioso depósito da Fé). Para defender essas verdades, são proclamados solenemente os dogmas. E a partir de então, como muito bem diz o ditado, Roma locuta, causa finita: não pode haver a mais ínfima discussão teológica acerca do assunto.

Entender de outra forma o alcance do trabalho dos teólogos é ipso facto cair na armadilha do pluralismo teológico liberal que se recusa a aceitar a autoridade e, simplesmente, desobedece. Apenas para aduzir um exemplo, entre inúmeros a que poderíamos aludir, o nefastíssimo Urs von Balthasar opinava que o inferno está vazio (não haveria ali um só pecador, mas apenas pecados). Ora, além de ser abstrusa, essa idéia é frontalmente contrária à Sagrada Escritura e ao Magistério. Noutra época, pelo bem da fé de todo o rebanho, o Bom Pastor (encarnado na figura do Vigário de Cristo e da Igreja, da qual ele é o cabeça) teria imposto o silêncio ao teólogo em relação ao tema em questão; e, no caso de obstinada manutenção da heresia por parte do recalcitrante... anathema sit! Sim, pois se a maçã está podre, que seja retirada do cesto para não contaminar as demais. Por isso a excomunhão sempre foi uma pena disciplinar altamente benéfica, pois visava ao bem comum da Igreja (na verdade, era benéfica tanto para a Igreja como para o excomungado, que pela graça do arrependimento poderia voltar à comunhão com o Corpo Místico, aprendendo o valor da santa obediência, oposta ao non serviam diabólico).

Vimos também que o liberalismo católico havia feito uma artificiosa separação entre o Reino de Deus e a Igreja, que, para o Magistério tradicional e para os Santos Doutores, eram uma só e mesma coisa (ver Santo Tomás, Sent., IV, dist. 49, q. 1, art. 2). Na “concepção” liberal, o Reino de Deus seria meramente escatológico, e a Igreja, meramente temporal. Essa tese joga por terra a clássica definição entre Igreja triunfante e Igreja militante e abre um abismo intransponível entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, análogo ao que há entre este mundo fenomênico e o mundo das Idéias platônicas que jazem no Hiperurânio. Neste contexto, os fins do Estado, ao se circunscreverem aos bens naturais (prosperidade, cultura, justiça), mas sem uma conexão necessária com os bens supranaturais (pois mantêm com estes apenas uma espécie de livre orientação acidental), acabam por definhar. E definhar em círculos concêntricos que, numa progressão geométrica, culminarão no absoluto afastamento entre Deus e as sociedades humanas (ou seja: no tempo atual, em que as leis humanas perderam qualquer referência à Lei Divina). Ora, se é verdade que a saúde das relações entre os homens depende da saúde das relações que mantenham com Deus, advirá desse hiato satânico entre o Céu e a Terra a sociedade mais violenta, psicótica, tarada e pervertida. Justamente a sociedade descrita por São Paulo como prelúdio do fim dos tempos (em II Timóteo, 3): meras aglomerações de homens sem afeições naturais, inimigos do bem, amigos mais dos deleites do que de Deus, fanfarrões, soberbos, incontinentes, ímpios, implacáveis, caluniadores, ingratos, com aparência de piedade embora negando a Deus o seu poder, etc.

Em síntese, a inversão que faz o liberalismo pode resumir-se no seguinte quadro:

> TEOLOGIA CATÓLICA: Há subordinação necessária (per se) e não acidental (per accidens) do poder temporal em relação ao poder espiritual. O homem, reunido em sociedade, será tanto mais livre quanto mais voluntariamente submisso for à Lei de Deus.

> TEOLOGIA LIBERAL: Há subordinação acidental e não necessária do poder temporal em relação ao poder espiritual. O homem, reunido em sociedade, já é livre para gozar dos bens naturais.

Neste segundo caso, perde-se absolutamente o caráter complementar entre os dois poderes, ou seja: entre a natureza e graça. Na prática, sustentar tal tese implica (como ensina o Padre Calderón num dos seus livros) cair numa heresia pelagiana aplicada ao corpo social: defender que a sociedade dos homens, sem a graça, conserve íntegra a sua natureza, ou, em termos políticos: defender que se consigam lograr os bens da Pólis apenas com as virtudes humanas.

Mas, como diz o mesmo Calderón, “a Pólis sem Cristo é um cadáver de Pólis, pasto de demônios santarrões”. A Cidade sem a Lei de Deus é uma cidade fantasma, uma cidade em que a natureza ferida pelo pecado não tem acesso à graça sem a qual o homem não consegue lograr nem sequer os seus bens naturais.

Veremos, noutra ocasião, que no modo dessa subordinação do temporal ao espiritual está a resolução do problema (assim como pode estar também o seu mais nefasto erro, que é o de reduzir a um mínimo mais ou menos conveniente a Realeza de Cristo).

Chegando ao final deste texto, deixo uma frase do Padre Calderón para reflexão dos leitores. “Jesus Cristo — que modera os cetros do mundo (qui sceptra mundi tempera*) —, ao estabelecer a Igreja na terra não arrebata os cetros temporais, mas, se estes se submetem, Ele comunica-lhes a verdadeira realeza”.

Em contrapartida, se se nega a Cristo a realeza sobre todos os bens temporais, não resta ao homem senão soçobrar na maldade. Sobre todos nós, de alguma maneira, pesa a palavra de Nosso Senhor a Pilatos: Non haberes potestatem adversum me ullam nisi tibi esse datum desuper propterae (Jo. XIX, 11).
* Hino de Cristo-Rei.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Fraternidade São Pio X e o atual momento da Igreja

Carlos Nougué
Roma ainda não voltou à Tradição. Que o Motu Proprio sobre a Missa tridentina e a suspensão das excomunhões dos quatro Bispos da FSSPX não nos enganem. Sim, porque, ainda que considerássemos sem mácula tais atos pontificais, restaria o fato inequívoco de que o caráter vaticano-segundo – ou seja, o caráter de religião do homem – não se reduz ao problema litúrgico nem, muito menos, a questões de ordem disciplinar. Se, por um lado, o problema litúrgico é fundamental, porque diz respeito ao que é o centro da vida do católico – o sacramento da Eucaristia –, por outro lado, o que a partir do Concílio se fez com relação à liturgia não é causa, mas efeito, da raiz nefasta que subverteu a vida da Igreja na segunda metade do século passado: o humanismo, ou, em outras palavras, a negação da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre tudo quanto é humano e sobre todo o universo, substituída por uma suposta realeza do homem até sobre Deus mesmo.

Uma prova do que aqui se diz a podemos ter na recente viagem do Papa Bento XVI à Terra Santa. Nela, como escreve no editorial da Revista Iesus Christus, n. 121, o Padre Christian Bouchacourt (Superior do Distrito da América do Sul da Fraternidade São Pio X), Sua Santidade não hesitou “em questionar a doutrina tradicional sobre a tolerância com respeito às falsas religiões para convocar um diálogo religioso e propor que os católicos, os judeus e os muçulmanos realizassem ações em comum [pela paz]. [...] Durante toda a sua viagem, o Papa não convidou os não católicos da região, nem sequer uma vez, a se converter. Nem uma única vez fez rezar pela conversão dos judeus e dos muçulmanos. O que devemos pensar desta atitude e de tais afirmações? Podemos pensar realmente que deste modo Bento XVI contribui para a colocação dos fundamentos de uma paz futura? [...] Nem a paz civil nem a paz social poderão existir fora de Nosso Senhor Jesus Cristo. Querer realizar esta paz sem Aquele que é a ‘pedra angular’ [Atos, IV, 11] é algo ilusório; é querer encaminhar-se para o fracasso certo; é enganar os que escutam tais mensagens e pôr em perigo a sua salvação eterna”.

Como dizia D. Marcel Lefebvre segundo o magistério unânime da Igreja até então, “Não há senão um nome sobre a Terra para transformar as almas, a civilização, e até os corpos, a sociedade e a economia. É o nome de Jesus. Não é necessário procurar por outro lado. Querem transformar a sociedade; querem fazê-la melhor; querem fazê-la santa; querem uma economia sã: o meio é Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu deixei a África com a convicção de que só há um meio para salvar as almas e ao mesmo tempo dar-lhe uma civilização cristã neste mundo e fazer-lhes participar aqui da felicidade do céu a partir da felicidade que lhe confere a graça: é o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Sermão em Zaitzkofen, 15 de fevereiro de 1987, apud edit. cit.).

Mas São Paulo – prossegue o Padre Bouchacourt – “não deixou de chamar os judeus e os pagãos à conversão, e preveniu Timóteo de um perigo iminente: ‘Virá um tempo em que [muitos] não suportarão a sã doutrina, mas, movidos por suas paixões e pelo prurido de escutar novidades, multiplicarão mestres para si. E afastarão os ouvidos da verdade e se lançarão às fábulas’ [II Tim., IV, 3]. Esse tempo, com efeito, já chegou. Fazer crer aos homens que podem encontrar a paz na Terra e salvar-se fora de Nosso Senhor Jesus Cristo equivale a movê-los a viver numa terrível ilusão, na qual se põe em risco algo gravíssimo: a salvação eterna de milhões de almas”.

E São Paulo, que resistiu face a face a São Pedro, o primeiro Papa, por suas práticas judaizantes, disse ainda a Timóteo: “Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, pela sua Vinda e por seu reino: prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, ameaça, exorta com toda a paciência e doutrina.” [IV, 1]. “Que Nosso Senhor nos conceda a força de fazê-lo até o nosso último suspiro!” – conclui assim o Padre Bouchacourt seu editorial.

Mas por que insisti tanto com as palavras deste superior distrital da Fraternidade São Pio X? Porque não posso estar de acordo com aqueles segundo os quais a FSSPX, em troca de uma normalização de suas relações com Roma, já teria deposto as armas do bom combate contra a religião do homem. E poderia acrescentar ao editorial do Padre Bouchacourt uma vasta série de livros, artigos, textos, sermões dos Bispos da Fraternidade, de tantos e tantos de seus padres, de seus teólogos mais importantes, entre os quais o Padre Álvaro Calderón – todos no mesmo tom.

Há entre as autoridades da FSSPX algumas que estejam dispostas a, em troca do reconhecimento papal, calar as críticas impostergáveis ao Vaticano II? Não o podemos saber; mas temos um dever: o de confiar, em princípio, nas autoridades da FSSPX, coluna da Tradição. Se, como já se disse, foi um homem, Monsenhor Lefebvre, o instrumento de Deus para que as portas do inferno não prevalecessem contra a Igreja, digo eu agora: se a FSSPX depusesse as armas, o fim dos tempos teria de ser antecipado, porque se não o fosse “nem os eleitos se salvariam”.

Não posso entender os que, sem estar de posse de todos os dados da situação, e sem considerar que toda e qualquer autoridade, como as da FSSPX, tem uma margem de diplomacia, sem a qual não poderia procurar o bem para a qual é constituída, tacham D. Fellay de traidor à primeira palavra sua, digamos, não muito claramente tradicional. Ora, são as autoridades da FSSPX que devem ter luzes de estado para agir no difícil terreno das negociações com o Vaticano: não podem elas negar-se a conversar com o Papa, não podem elas não receber de bom grado quaisquer passos em sua direção por parte de Sua Santidade, e ao mesmo tempo não podem abrir mão nem minimamente de tudo quanto diz respeito ao Traditum. Há o perigo de um acordo indevido, não baseado na doutrina? Até agora, como já disse e insisto, não vimos nenhum sinal disso. Aliás, contra o que se dizia, os Bispos da Fraternidade acabam de ordenar 20 novos sacerdotes.

E veja-se que as acusações de “amolecimento” dirigidas à Fraternidade por parte de alguns são vazadas num linguajar não raro injurioso. Mais que isso: ainda que sem o saberem, acabam por tratar a autoridade como o faz a massa democrática dos dias atuais: como poeira, como lama da estrada, que se pisa entre vitupérios.

Esperemos e esperemos, com a tranqüila confiança de que a história, incluindo a da Igreja, segue estritamente os desígnios de Deus e o governo da Divina Providência; sempre pedindo, porém, a Nosso Senhor que nos conceda a força de fazer “até o último suspiro” o que disse o Apóstolo das Gentes a Timóteo.

E clamando-Lhe: Vinde, Senhor Jesus. Mas vinde logo – como quer que seja.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Missa Tridentina no Outeiro da Glória, no Rio

Sidney Silveira
No próximo dia 11/07 (sábado), às 12h30min, será celebrada pelo Monsenhor Costa Couto, na belíssima Igreja do Outeiro da Glória, uma Santa Missa no Rito Tridentino. Pelo que me informa um grande amigo, esta será a primeira de muitas a se realizar naquela igreja. Alvíssaras!