O Flautista de Hamelin
“O Concílio Vaticano II é Prometeu no ato do
seu latrocínio”
Pe.
Álvaro Calderón
(A Religião do Homem)
Sidney
Silveira
Com a declarada intenção de não querer impor
dogmaticamente nenhuma doutrina, o Concílio Vaticano II fez chegar aos ouvidos
dos fiéis católicos não a voz firme e inequívoca do Bom Pastor, mas o som
encantatório do Flautista de Hamelin. E, de maneira semelhante ao que sucedeu
às malfadadas crianças do famoso conto medieval, as ovelhas do rebanho se
precipitaram no rio e morreram — afogaram-se nas águas tormentosas do pluralismo
teológico. A deliberada ambigüidade dos
textos conciliares transformou em norma o diálogo entre a luz e as trevas, com
funestas conseqüências para a Igreja e o mundo.
O Concílio cita Santo Tomás de Aquino, assim
como o magistério de Paulo VI e o de João Paulo II também o fazem. Porém misturam
numa estranha alquimia elementos irredutíveis uns aos outros, com o seguinte
detalhe metodológico na disseminação do caos: aspectos tradicionais tópicos vêm
acompanhados de novidades até então nunca vistas,[1] o que abre as fórmulas conciliares à possibilidade de interpretações sem fim. A
propósito, a pregação contemporânea acerca
da necessidade de se buscar o “verdadeiro Concílio” é a evidência maior da ambivalência
dos textos — legíveis à luz de hermenêuticas excludentes entre si. Nunca um
documento eclesiástico gerou materialmente tantas dúvidas a respeito do seu
próprio conteúdo. E é pelos frutos que se conhece a árvore.
Nos textos do Vaticano II vêem-se vestígios da
doutrina tradicional católica ao lado de teses no mínimo estranhas, como a pitoresca idéia de que a Igreja é
“edificada e vivificada” por elementos exteriores
a ela, contra o Magistério anterior e os Doutores, que frisaram
enfaticamente a impossibilidade de sequer haver fé fora da Igreja. Diz Unitatis
Redintegratio (n.3):
“Entre os elementos ou bens com que, tomados em
conjunto, a própria Igreja é edificada e vivificada, alguns e até muitos e
muito importantes podem existir fora do
âmbito da Igreja católica: a palavra de Deus escrita, a vida da graça, a
fé, a esperança e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo e
elementos visíveis”.
Aqui, além da inaudita e errônea circunstância teológica de se colocarem as três virtudes
teologais como existentes fora da Igreja, ainda que potencialmente,[2] vale dizer: trata-se da primeira e
única edificação da história sustentada em algo exterior a ela própria! Nem o arquiteto Oscar Niemeyer — famoso por conceber
espaços que às vezes precisavam ser redesenhados por sugestão de engenheiros
calculistas — imaginaria pôr de pé uma obra com tão bizarras características...
Existem incontáveis outras imprecisões, ambigüidades e equívocos similares esparzidos
entre os dezesseis documentos promulgados pelo Concílio Vaticano II. Não é intenção
deste breve texto sumariá-los, seja com lupa, seja com água benta.
Apenas no tocante ao exemplo acima mencionado, cabe
apontar a correção: a Igreja é
vivificada em Cristo e edificada sobre Pedro (Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam), em
quem repousa a suprema autoridade apostólica, assim como o sumo carisma
magisterial, e não em elementos presumivelmente
exteriores ao Corpo Místico. A propósito, com relação à falta de autoridade
magisterial dos textos do Concílio Vaticano II, indicamos entusiasticamente a
leitura do mais importante livro escrito nas últimas décadas: A Candeia Debaixo do Alqueire – Questão
Disputada Sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a partir do
CVII, do Pe. Álvaro Calderón.
Pois muito bem.
No esforço de revestir a ambigüidade de autoridade, há anos neoteólogos de diferentes matizes tentam
associar Tomás de Aquino ao Concílio Vaticano II, apoiando-se nas passageiras
citações ao Aquinate num ou noutro documento conciliar, assim como em
parte do magistério que se lhe seguiu — caso da famosa Encíclica Fides et Ratio,
de João Paulo II.[3] Esta, infelizmente, toma o Aquinate não como a autoridade doutrinal cuja filosofia e
teologia devam ser preferidas em
detrimento do pensamento moderno (como diferentes Papas expressamente
mandaram),[4] e sim como exemplo de audácia e liberdade de espírito, ou como “precursor do
novo rumo da filosofia e da cultura universal” (hã?). Tudo a fim de “conciliar
a secularidade do mundo com as exigências radicais do Evangelho”.[5] Diga-se neste ponto o mínimo: a intenção de frei Tomás jamais foi essa conciliação
simpliciter, mas sim enfatizar a subordinação
das coisas do mundo às celestes. Em resumo, a valorização daquelas só se pode dar
em ordem a estas; tal é o conceito de contemptus mundi.
Na prática, os
ventos de modernidade do Concílio Vaticano II interromperam os frutos que a
escola neotomista vinha dando desde o chamado de Leão XIII na Encíclica Aeterni
Patris. Basta vermos a abissal diferença de nível entre os tomistas mais atuantes nos períodos anteriores e nos posteriores ao Concílio, a saber: entre Pierre Mandonnet, M.D.
Roland-Gosselin, Garrigou-Lagrange, Gallus Manser, Cornelio Fabro, Santiago
Ramírez, Édouard Hugon e Josef Gredt, de um lado, e Abelardo Lobato, Miguel
Ángel Gonzalez, Marie-Dominique Chenu e Jean-Pierre Torrel, de outro. Chega a
ser covardia. Há exceções entre estudiosos que atravessaram o período do
Concílio e têm ótimos trabalhos (como Josef Pieper e Battista Mondin), mas é quase
na virada do século XX para o XXI que o tomismo começa a readquirir maior viço,
sobretudo em comunidades tradicionais como a FSSPX e os dominicanos de Avrillé.
Na universidade, vale citar nomes contemporâneos com importantes trabalhos
publicados no espírito da escola tomista, como Martín Echavarría e Jorge
Martínez Barrera, para aludir a apenas dois.
Voltemos no tempo para ressaltar o seguinte: se se trata de estímulo ao estudo da obra
de Santo Tomás de Aquino, nenhum Concílio pode comparar-se a Trento. Ali a Suma Teológica foi simplesmente posta ao
lado da Bíblia na proclamação dos Dogmas, e, numa passagem sobre a Eucaristia
(seção XXI do Concílio), os Padres chegaram a reexaminar um ponto importante apenas
porque certa passagem parecia contrariar Tomás. Por sua influência em Trento, o
Aquinate chegou a ser chamado de patrum
Concillii Tridentini oraculum! Ora, maior estímulo aos estudos tomistas não
poderia haver do que este reconhecimento notório da autoridade do Doutor Comum
justamente no Concílio que deu substância doutrinal à Contra Reforma — de maneira tão solene, magistral, catedrática, enfática e impositiva, não obstante este
último adjetivo fira os delicados ouvidos do católico liberal, para quem a
dicotomia autoridade/liberdade é irresolvível.
Em contrapartida, Tomás de Aquino e o Concílio Vaticano II são elementos que não se podem
misturar sem acarretar sérios problemas. O motivo é simples: incontáveis
textos do Concílio contrariam a letra e/ou o espírito da obra de Santo Tomás — seja
em questões ecumenistas fundadoras do indiferentismo religioso hoje imperante, seja
em questões políticas que defendem a separação formal entre a Igreja e o Estado,
seja em questões eclesiológicas instauradoras da colegialidade, etc.
Vejamos dois brevíssimos exemplos, por meras razões de economia
de texto:
> Lumen Gentium (n. 16):
“O desígnio da
salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm
em primeiro lugar os muçulmanos, que
professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso,
que há de julgar os homens no último dia”.
Santo
Tomás, em clave totalmente contrária a esta, deixa em primeiro lugar claro na Suma Contra os Gentios ser impossível
crer nas proposições do Corão sem elevado grau de consciência culpável — tão
contrárias são algumas suras à lei natural. E ali diz mais o Doutor Comum: Maomé deturpou os textos do Antigo e do
Novo Testamento, entremeando-os de histórias legendárias, razão pela qual os
sarracenos não podem, ao contrário do que diz o texto conciliar, professar "seguir a
mesma fé de Abraão”. E ainda: Maomé fez
a sua religião crescer no gume da espada e com promessas de prazeres carnais,
nesta vida e na outra.[
Isto sem falar no fato — acrescentemos nós! — de que os muçulmanos não
adoram o Deus único e misericordioso, visto não crerem na divindade de
Cristo nem na Trindade! Ora, se Cristo, que é Deus na Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, vai julgar os homens no último dia, como se depreende de
Jo., V, 22, e os muçulmanos não crêem na divindade de Cristo, logo, o que eles
adoram não é patrimônio comum dos católicos, pois não é Deus mas um ídolo, visto que Deus é essencialmente trinitário.
Em
síntese, Tomás de Aquino e o Vaticano II não podem andar de mãos dadas por um
breve caminho sem se arranharem mutuamente durante o percurso.
> Dignitatis Humanae (n. 2):
“Este Concílio Vaticano declara que
a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no
seguinte: todos os homens devem estar
livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou
qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa,
ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de
proceder segundo ela, em privado e em público, só ou associado com outros,
dentro dos devidos limites”.
Aqui estamos diante de uma das pedras de toque
da neoteologia católica: o “dogma” liberal da intocabilidade das consciências
individuais. Não entremos no mérito desta tese, já abordada à exaustão no Contra Impuganantes, mas apenas mostremos
que ela não pode coadunar-se com Santo Tomas, pois este afirma não menos que o
seguinte: judeus e muçulmanos devem ser coagidos
no sentido de não colocarem obstáculos de nenhuma ordem à fé católica; hereges
e cismáticos, por sua vez, devem ser coagidos — ou até “forçados
fisicamente” (corporaliter compelendi) — a cumprir o que prometeram no batismo e
a manter o que uma vez aceitaram.[
Concordemos ou não com esta gravíssima opinião
do grande Doutor medieval, o fato é que entre Tomás de Aquino e o Vaticano II
não há harmonia possível.
Normalmente, quando um diz “A” o outro diz “B”.
Eis o
trabalho que, a propósito, está para ser escrito: um catecismo das teses de Santo Tomás frontalmente contrárias aos
textos conciliares. Não tive tempo de levar adiante uma empreitada desta
magnitude, embora conheça de cor inúmeros pontos da divergência radical aqui
aludida (os tópicos acima são modestíssimas amostras). Ocorre que escrever com
organicidade é coisa que demanda tempo, saúde e disposição; e de nada disso hoje disponho como gostaria.
Um vídeo no horizonte
No tocante a este parecer, reiteremos agora com outras
palavras algo do que ficou dito acima: no contexto e na forma como estão enunciadas,
estas breves e vagas recomendações (ter
a Tomás como mestre dos estudos filosóficos e teológicos, etc., coisa já naquela
altura dos acontecimentos arqui-sabida e reiterada por mais de 600 anos de magistério, com muito
maior ênfase e detalhes do que nestas modestas passagens concilares) não poderiam ter senão o efeito prático que
tiveram, a saber: nenhum! As incontáveis novidades gritaram muitísimo mais
alto, e se a coisa não desandou de todo foi porque a Providência Divina deu
coragem e armas espirituais a um bispo para combater em meio à tormenta: D.
Marcel Lefebvre.
Entre outros fatores, indica de maneira grandiloqüente o que estamos a
dizer — ou seja, o efeito nulo daquelas recomendações conciliares — o próprio ponto
de partida do vídeo do Pe. Paulo Ricardo: o
enorme preconceito contra o Aquinate nos seminários católicos, a ponto de o sacerdote mesmo confessar que procurou estudar com maior interesse a obra do
Doutor Comum da Igreja há pouco tempo, depois de haver sido ordenado.
Não se escandalizem os amigos católicos com este
texto: trata-se de matéria teologicamente
opinável (a saber, se o Concílio Vaticano II ajudou ou não aos estudos tomistas), na qual é
lícito a quem quer que seja — do mais simples fiel ao Papa — defender um ponto
de vista, apresentar suas razões corroborantes, evidências, indícios, etc. Aliás,
divergir sobre pontos acerca dos quais pairam incertezas e
discutir à exaustão com o intuito de aclará-los foram as atitudes que construíram
a grandeza filosófica e teológica do cristianismo. Portanto, não venham os
fofoqueiros profissionais, os maledicentes contumazes, os engraçadinhos
medíocres e os idiotas natos destilar o seu veneno! Nem para cima de mim,
nem nos ouvidos do Pe. Paulo Ricardo.
Não reduzam uma divergência conceptual, de si
lícita, à altura da sua própria incapacidade de
pensar fora dos grupelhos — pois estes, ao fim e ao cabo, dão o fiel retrato de
mentes medrosas e débeis, para as quais o eco dos pequenos murmúrios coletivos e
das detrações de bastidor tem valor de argumento probante.
Ao Pe. Paulo Ricardo, na certeza da divergência e na convicção da caridade cristã, peço a bênção e orações por minha pessoa.