quinta-feira, 22 de março de 2012

"Contra Papólatras e Papoclastas", obra do Pe. Ceriani

Sidney Silveira

O blog do SPES começou neste link a publicar um trabalho excepcional do Pe. Ceriani, talentoso canonista: o livro Contra Papólatras y Papoclastas.

Na prática, a obra — que tive a oportunidade de ler há alguns anos — aponta o caráter problemático de duas posições adotadas por católicos diante da gravíssima crise doutrinária estabelecida pelos textos do Concílio Vaticano II (e de todo o magistério posterior):

> a dos modernistas (papólatras) que amortizam a sua consciência numa obediência às vezes irresponsável, que faz vista grossa aos erros contra a fé provenientes dos hierarcas da Igreja desde a década de 60. Entre estes estariam os que no meio católico são hoje conhecidos como neoconservadores; e

> a dos sedevacantistas (papoclastas), para quem, em linhas gerais, o Papa não é Papa — opinião que, em boa parte dos casos, se estende aos Papas desde João XXIII.

Vale muito a pena ler.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pascal e a mentira literário-filosófica



Sidney Silveira


Voltaire — de triste memória para o cristianismo e de morte tão abominável[1]aprendera com Pascal que distorcer a verdade é um eficaz instrumento de ação sectária.[2] A propósito, entre os sapienciais conselhos do autor de Candide ou l'Optimisme, encontrava-se o seguinte: “Calunie o quanto puder. Algo fica”. Diderot, Bayle e Rousseau foram outros aprendizes da retórica pascaliana, por meio da qual vislumbraram, como Voltaire, a possibilidade de embelezar o erro dando-lhe tintas literárias com aparente profundidade filosófica. O resultado da ação de homens como estes foi o de forjar uma consistente mentalidade anticatólica, da qual se valeria a Revolução Francesa para atacar a Igreja em várias frentes.


Hoje, estudos sérios demonstram de forma cabal como o jansenismo — ao qual apaixonadamente aderira Pascal —, ao irmanar-se com o galicanismo e ganhar o parlamento francês contribuiu sobremaneira para o desenrolar da Revolução Francesa e para a criação da cismática Constituição Civil do Clero. Seja como for, o fato é que, na prática, os expoentes da Ilustração não fizeram outra coisa senão estender a toda a Igreja os ataques de Pascal aos jesuítas, universalizando o anticlericalismo que, a partir de então, passou a ser predominante no Ocidente.


Com as Cartas Provinciais, o objetivo de Pascal era livrar do anátema o jansenismo em que ele próprio afundava. Para tanto, escolheu ridicularizar os jesuítas, entre os quais havia então respeitados teólogos, e o fez com tanto talento literário, com tanto sabor, que muitas almas, mesmo sem dar crédito aos seus patentes e maliciosos exageros, passaram a supor que algo de verdade deveria haver naquelas páginas tão bem escritas. A propósito, foram páginas que, por decreto do Papa Alexandre VII, entraram em 1657 para o Índex dos Livros Proibidos — condenadas ao fim reservado naquela época aos libelos difamatórios e às obras consideradas heréticas: a proscrição.


Para ter-se idéia de como o poder político e o eclesiástico ainda eram capazes de uma reação conjunta em casos como este, no mesmo ano de 1657 — antes do decreto de Alexandre VII —, as autoridades da região de Provença já haviam proibido a edição e a venda das Provinciais de Pascal, por serem “repletas de calúnias, falsidades, insinuações maldosas e difamações contra os jesuítas e a Sorbonne; cartas escritas para desacreditar os religiosos e turbar, pelo escândalo, a tranqüilidade pública”. Na cidade de Paris, em 1661 as Provinciais foram levadas à fogueira em cumprimento a uma ordem judicial, e durante alguns anos só foram impressas clandestinamente.[3]


Para aquilatar o malefício e a repercussão dos escritos jansenistas de Pascal, basta dizer que mesmo entre católicos houve quem louvasse, a despeito das ressalvas e proibições das autoridades eclesiásticas, as Lettres Provinciales, tidas como a primeira obra de literatura francesa em prosa, nas palavras de Joseph de Maistre[4] — como se isto importasse alguma coisa, do ponto de vista da civilização cristã. Nessa época, o declínio da Cristandade já se consumara e a arte começava a tornar-se um sucedâneo da religião, criando um abismo entre o bem e o belo, dois importantes aspectos transcendentais do ser. Abismo que os séculos XIX e XX transformariam em fratura estética quase intransponível.


Com furor, Pascal pôs a sua pena a serviço da seita jansenista, sobre cujas doutrinas já pesavam graves e solenes condenações de bispos, teólogos e diferentes Papas (Pio V, Gregório XIII e Urbano VIII). E o fez atacando uma ordem — a jesuíta — que naquela centúria produzira um bom número de santos e beatos. Ora, neste exato ponto convém indagar o seguinte: o que realmente entendia Pascal, a despeito de seu talento literário, das doutrinas sobre a graça, livre-arbítrio, moral católica e afins? Qual era o nível de seus conhecimentos teológicos? A resposta que se impõe é: baixíssimo. Alguns biógrafos do filósofo francês e estudiosos da história das heresias contam que os jansenistas do mosteiro de Port-Royal — onde durante um tempo se refugiara o guru da seita, Antoine Arnauld — preparavam boa parte do material teológico e as citações bíblicas das Provinciais.


Assim, com colaboradores tais e com quase nenhum conhecimento teológico, o jansenista Pascal deu às costas ao Magistério solene da Igreja e à interpretação correta da doutrina católica e preferiu recorrer ao tribunal da opinião pública. Preferiu recorrer ao riso sardônico do vulgo, da platéia ignorante acometida de êxtases pletóricos ao presenciar o escândalo, o escárnio, a destruição pública de uma reputação. Preferiu recorrer ao hábil recurso literário de apresentar em cena personagens jesuítas que, descritos de forma cômica, não poderiam parecer outra coisa senão ridículos, inconsistentes e maus.


Num dos seus muitos escritos, Pascal critica e deturpa passagens do livro do padre jesuíta Paul de Barry intitulado Le paradis ouvert – Philagie par cent dévotions à la mére de Dieu, que incentivava a piedade e a devoção à Virgem Maria em coisas simples, como saudar Nossa Senhora ao deparar-se com uma imagem sacra, recitar o rosário, pronunciar freqüentemente o nome de Maria, pedir aos santos anjos que dessem notícia à Mãe de Deus de nossa filial reverência a ela, etc. Para o satírico e apaixonado escritor Pascal, estas seriam “falsas devoções”. A propósito, lembra-nos Ricardo Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica que os jansenistas jamais se distinguiram pela devoção a Maria. Para comprová-lo basta dizer que um de seus maiores e mais maldosos polemistas, o abade Saint-Cyran, companheiro de armas de Pascal, considerava a devoção a Maria algo terrível...


Como desconhecia cabalmente as mais árduas questões dogmáticas, Pascal escreveu boa parte de suas Provinciais tendo em seu horizonte os “princípios” que os sectários de Port-Royal lhe ditavam. Hoje se sabe que muitos dos autores ridicularizados por Pascal sequer haviam sido lidos por ele. Outros foram lidos superficialmente, dedução conseqüente com a análise dos próprios textos pascalianos. Este é por exemplo o caso do teólogo Antoine Escobar, vítima de inumeráveis diatribes de Pascal, que ao escrevê-las desconhecia ser Escobar autor de uma obra composta de 32 densos volumes de teologia moral. Como afirma o Pe. Maynard no clássico livro Les Provinciales et leur réfutation, leitura obrigatória para os estudiosos da questão, Pascal citava mal e interpretava ainda pior.


Evidentemente, tais erros em matéria grave não empanam o valor de Pascal como físico e sobretudo matemático. Assim como não tiram o valor de algumas belas páginas de apologética cristã, em seus Pensées. Mas isto não está em questão, no problema que ora nos ocupa. O fato é que as Provinciais tiveram entre as suas terríveis conseqüências o descrédito da Companhia de Jesus nos meios intelectuais, entre o clero e a burguesia. Como diz Villoslada, somente depois das Provinciais poderia historicamente suceder a supressão da Companhia de Jesus, em 1773, “sob o aplauso de jansenistas e livre-pensadores unidos no ódio aos mais intrépidos defensores de Roma”.[5]


Levando-se em conta as contingências históricas, Pascal levou muitos católicos seduzidos por sua retórica artística a uma verdadeira encruzilhada: ou seguiam o cristianismo rebelde, orgulhoso e falsificado dos jansenistas, ou iam pelo caminho oposto, da libertinagem e do indiferentismo religioso, que nas palavras de Villoslada tantos malefícios trouxeram para a França e para o Ocidente.[6]


Este é, em resumo, o eterno resultado da ação de homens que criam ou aderem a seitas: a culpável propagação do mal político, moral e também religioso — no melhor dos casos, fazendo das boas intenções uma perfeita máscara do auto-engano.


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1- O relato da morte de Voltaire — feito em diferentes ocasiões pelo médico protestante M. Trochin, pela Marquesa de Villete (em cuja casa estava) e por uma enfermeira, testemunhas oculares de sua agonia final — é assustador: gritos de desespero, auto-laceração e deglutição da própria urina e excrementos. Próximo ao momento de sua morte, Voltaire urrava dizendo que uma mão invisível o conduzia ao tribunal de Deus; ora invocava a Cristo e apelava à Sua misericórdia, ora maldizia-O com palavras terríveis. Enfim, expirou em meio à imundície fecal, após haver levado à boca os dejetos que estavam em seu urinol; na ocasião, sangue escorria-lhe da boca e das narinas. Vale registrar que um sacerdote chamado por pessoas da casa não pôde ministrar-lhe os últimos sacramentos, pois alguns amigos (entre os quais Diderot) colocaram-se à porta e impediram a passagem, ao que consta a pedido do próprio Voltaire. É também conhecido o depoimento da enfermeira que pedira a Deus para nunca mais presenciar a morte de um ateu, tão lancinante fora o espetáculo por ela visto. Morte que, como um dístico, nos remete a uma máxima da Sagrada Escritura: Mors peccatorum pessima (Sl. XXXIII, 22).

2- Entre outros, compulsamos como bibliografia básica para este breve artigo sobre Pascal e o jansenismo de sua época quatro livros antigos, encontráveis na internet: L’Éducation a Port-Royal, de Félix Cadet; Pascal et son temps, de Fortunat Strowski; Blaise Pascal et Antoine Escobar, de Augustin Gazier; e Les provinciales et leur réfutation, do padre M.U.Maynard.

3- É evidente que, para a mentalidade liberal do nosso tempo, tal ação parecerá a mais terrível das arbitrariedades, mas o exercício da autoridade numa sociedade cristã desde sempre implicou o ataque a idéias que pusessem em risco as verdades da fé, bem maior conformador da civilização.

4- Vale registrar que, segundo uma bibliografia hoje relativamente extensa, Joseph de Maistre foi um católico que aderiu à maçonaria. E também a erros do chamado tradicionalismo, de claras tendências pietistas, que entre outras coisas propugnava que a filosofia deve começar por um ato de fé. Aqui, a menção a de Joseph de Maistre explica-se porque o intento é tão-somente o de mostrar que Pascal, de uma forma ou de outra, foi tendo a sua atuação jansenista amenizada por escritores católicos influentes.

5- Historia de la Iglesia Católica – Edad Moderna. LLorca – Villoslada – Laboa. Vol. IV. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos – BAC, 2004. Pag. 372.

6- LLorca – Villoslada – Laboa. Op. Cit., p; 373.

segunda-feira, 19 de março de 2012

A Cidade e a Lei, segundo Sto. Tomás


Sidney Silveira
Enquanto tento recuperar o material gravado no evento "Santo Tomás, médico da alma" (que quase se perdeu totalmente, devido a uma pane em meu computador que está me levando a reinstalar todos os programas), vou postando outros vídeos relacionados a este trabalho de divulgação de Santo Tomás no Brasil — caso do trecho de aula acima, em que se cita de passagem o conceito de lei de acordo com o Doutor Comum.

Apenas uma observação: quando aí se fala que prestar o culto devido a Deus é um dever de justiça distributiva, está-se fazendo referência a um princípio anteriormente mencionado em sala de aula: dar a cada um o que é devido na medida do seu merecimento, tratando os iguais como iguais e os diferentes com proporcionalidade fundada em seu intrínseco valor.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A incognoscibilidade do sumamente cognoscível — Deus


“A inteligência humana é tênue claridade



a guiar-se no inefável”.


Sidney Silveira


Deus é uma treva luminosa, ensinava em linguagem mística o Pseudo Dionísio Aeropagita. Este aparente paradoxo reside no fato de que, para a inteligência humana — entretida com as inarredáveis dificuldades do plano material, que precisa transcender, abstrair, para alcançar o plano noético onde se dá o conhecimento —, a inteligibilidade do ser de Deus, em si absoluta, é pura obscuridade. Noutras palavras, a luz natural do intelecto humano não alcança identificar-se com a luz sobrenatural do ser divino, havendo, portanto, uma radical inadequação entre toda e qualquer inteligência criada e o ser de Deus.[1] Em palavras simples: o intelecto humano não está em potência para inteligir Deus. Por isso, pode-se afirmar que a nossa inteligência é potência para todos inteligíveis, como ensinara Aristóteles, mas com exceção do sumamente inteligível, o Próprio Ser.


Lembremos que conhecer, no caso do homem, é um movimento acidental da potência intelectiva pelo qual se assimila imaterialmente a forma dos entes. Esta definição implica várias coisas; uma delas é que a inteligência humana não é ato puro, no sentido de que está sempre em potência para adquirir um infindável número de novos conteúdos inteligíveis. Assim, por mais que o homem conheça, sempre haverá um infinito por conhecer, dada a inesgotabilidade do ser, que é o primeiro efeito da omnipotência divina.[2] Por esta razão, afirmava Santo Tomás que jamais homem algum será capaz de esgotar a inteligibilidade sequer de uma única essência,[3]ou seja: sempre será possível descobrir novos aspectos dela ou, então, de sua relação com as demais essências; sempre será possível lançar novas luzes sobre o que ela é; sempre será possível conhecer mais.


A inteligência humana é, portanto, luz no mistério. Ela está arrojada entre a obscuridade superior da realidade do Ser divino e a obscuridade inferior que radica na matéria, como lindamente escrevera Garrigou-Lagrange na obra-prima Le sens du Mystère. Entre essas duas obscuridades, pode-se dizer que a inteligência humana é tênue claridade a guiar-se no inefável. E não nos iludamos quanto a esta sua aparente indigência ontológica, pois ela esconde algo precioso: como potência para os inteligíveis, ela caminhará eternamente em meio a descobertas, dada a infinda riqueza ontológica do ser, participado por Deus.


Nem mesmo na situação que o Magistério da Igreja os teólogos e chamam de visão beatífica — na qual as inteligências criadas verão todas as coisas contemplando a causa primeira incriada, ou seja, verão tudo em Deus — se esgotará a inteligibilidade dos entes, pois sempre se poderá associar cada essência ao conhecimento de novos aspectos do ser divino que a Deus aprouver revelar. Neste sentido, podemos afirmar que, no céu, a única ciência efetiva será a teologia, ou seja, a permanente inquirição acerca da deidade e, por conseguinte, acerca de cada coisa que dela provém. Na eternidade, todos os demais conhecimentos relativos aos entes serão adquiridos à luz da compreensão assintótica do ser divino, cuja omnímoda perfeição e infinitude garantem um infinito de coisas por conhecer, como se apontou acima. Ora, como o aprimoramento do conhecimento da causa sempre lança novas luzes sobre a natureza dos efeitos, disto se segue que mesmo as almas que estiverem sob a luz da glória continuarão a maravilhar-se com a beleza do ser que será perene e crescentemente descortinada pela inteligência.


A propósito, vale neste contexto dizer que a omnipotência divina radica não no fato de que Deus não possa padecer nada, ou seja, que não possa ser afetado por outrem nem receber perfeições que já não contenha em Si, sendo Ele omniperfeito. Isto, como comprova Santo Tomás na densa obra De Potentia Dei, refere-se a aspectos operativos da omnipotência divina, mas não à essência dela. Esta pode ser definida como potência para atualizar tudo o que é possível, o que excetua as coisas de per si impossíveis — as quais implicam contradição. Por exemplo, não pode Deus fazer com que o que foi deixe de ter sido, ou seja, apagar o passado em si mesmo (embora de alguma maneira possa apagá-lo em nossa mente); não pode fazer o mundo girar para a direita e para a esquerda ao mesmo tempo sob um mesmo aspecto; não pode fazer com que, nos entes, a parte seja maior do que o todo; etc.


Tais impossibilidades, no entanto, não reduzem em nada a omnipotência divina, mas apenas apontam para o fato de que as ações e o ser de Deus não são autocontraditórios. A Sua inteligência não pode contrariar-se, pois em Deus ser e entender se identificam em máximo grau; o Seu ser é entender. E, sendo tal ser absoluto e infinito, o conhecimento com o qual ele se identifica será absolutamente infinito. Já o homem, cujo constitutivo formal implica composição de essência e ato de ser, tem um limite entitativo intransponível — sendo a finitude de sua potência intelectiva proporcional ao grau de ser que radica em sua forma. Assim, tendo potência para conhecer infinitas coisas, o homem não as pode conhecer infinitamente em ato.


Como se vê, os conceitos de potência e ato são fundamentais para a compreensão da teoria tomista do conhecimento, seja divino, angélico ou humano. E, no quadro das possibilidades cognoscitivas humanas, pode-se dizer que há uma conformidade — ou conaturalidade — da inteligência com diferentes tipos de inteligíveis, desde os entes mais próximos à materia prima até Deus, sendo este último conhecido apenas quanto à existência e atributos, mas não quanto ao ser, de per si insondável por qualquer inteligência finita. E a razão dessa impossibilidade radica no fato de que, numa substância que não seja ato puro, mas composta de ato e potência, matéria e forma, essência e ser, etc., as operações não podem ser infinitas em ato, porque isto pressuporia um ente atualmente infinito, e este é Deus, apenas.


Em resumo, todo agente obra na medida em que está em ato, daí que o modo de operar tenha uma radical correspondência com o ato de ser que o conforma. No caso do homem, cuja forma substancial é a alma racional, a inteligência está aberta ao entendimento da essência de todas as coisas (embora não as esgote, como acima se disse), com exceção da essência divina. Esta, embora sumamente cognoscível em si (quoad se), é absolutamente incognoscível para o homem (quoad nos). No entanto, nesta humana impossibilidade de conhecer o Infinito, que é Deus, jazem infinitas possibilidades de conhecimento.


E de assombro com a obra da criação.


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1- Não se confunda essa inadequação entre a nossa inteligência e o ser divino com aquilo que os neoteólogos modernistas (com patente malícia, como demonstrou o Pe. Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire) chamam de inadequação dos dogmas. A tese parte da correta premissa da incognoscibilidade da essência divina, para então afirmar que tanto os dogmas como a Sagrada Escritura são “inadequados” para referir-se a Deus, daí que haja grande liberdade para interpretá-los. O sofisma consiste em não considerar que a doutrina revelada é absolutamente adequada ao modo humano de conhecer, entre outras coisas porque o que se recebe é recebido ao modo do recipiente (quidquid recipitur per modum recipientis recipitur). E mais: o que Deus revelou de Si na Escritura é não somente inteligível para o homem, mas também suficiente para conduzi-lo à salvação.


2- Dar o ser é algo exclusivo da causa primeira e universal, que é Deus. Em todas as causas segundas, o ser está pressuposto, ou, nas palavras do Aquinate, “o ser é o primeiro efeito que não pressupõe nenhum outro” (De Potentia Dei, q. 3, art. 4, ad. 19.). Ele radica em Deus e se espraia por todos os entes, em formas e graus diferenciados.


3- Nem de uma mosca, cfme. Santo Tomás de Aquino, Expositio in Symbolum Apostolorum, Proêmio.

terça-feira, 13 de março de 2012

Da série "crítica ao sedevacantismo"

Sidney Silveira

Leia-se, neste link do blog do SPES, mais um texto do Pe. Curzio Nitoglia sobre o sedevacantismo.

Apostasia, atentado contra um direito divino

Sidney Silveira

O conceito de apostasia, depois da clássica formulação de Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica (II-II, q. 12, art.1), passou a ser definido pelo Magistério da Igreja e pelos mais importantes teólogos como uma deserção da fé em tríplice perspectiva:

Ø A pura e simples renúncia às verdades da fé cristã (apostasia a fide);

Ø O abandono do estado religioso — monacal — após a realização dos votos solenes (apostasia a religione);

Ø O abandono do estado clerical, ou seja: o padre simplesmente dar as costas ao sacramento da Ordem, largar a batina (apostasia ab ordine).

Dentre estas, a verdadeira apostasia é a que implica uma renúncia à fé. As outras duas recebem o nome de apostasia em sentido analógico; são um pecado grave e especialíssimo, sem dúvida, mas que não necessariamente implica uma perda da fé. Diz o Aquinate: “A apostasia simpliciter é a de quem abandona a fé; é a chamada apostasia de perfídia”.[1]

Outro ponto a destacar é que, para haver apostasia, não é necessário que o fiel passe a professar outra religião, como por exemplo o judaísmo ou o islamismo. Basta ter recebido o batismo e não crer nas verdades da fé, e isto pode manifestar-se de maneiras diversas — seja negando-a formalmente, seja defendendo teses que a contrariem em seus princípios. Por exemplo: em se tratando de batizados, um materialista (que nega a criação por deificar a matéria dando-lhe caráter de primeiro princípio), um ateu (que teoriza sobre a inexistência de Deus) ou um panteísta (que identifica substancialmente Deus com as coisas), entre outros, são apóstatas, ou seja: renunciam à fé em alguns de seus princípios universais.[2]

Neste ponto, algumas distinções se fazem necessárias. Uma pessoa que, por exemplo, formule idéias contrárias a algum dogma, mas aceite os demais, não pode ser chamada com toda a propriedade de apóstata, e sim de herege. Neste contexto, vale frisar que apostasia e heresia são duas formas distintas do pecado de infidelidade: a primeira implica uma renúncia à religião fundada por Cristo; a segunda, uma ruptura parcial com a doutrina cristã, conforme descrita na Sagrada Escritura e ensinada pelo Magistério.

É verdade que houve teólogos importantes, como Suárez, para os quais toda heresia deve ser considerada como um tipo de apostasia, não havendo meio termo; neste caso, todos os hereges deveriam ser considerados essencialmente apóstatas, não importando se o abandono da fé católica é total ou parcial (cfme. Suárez, De Fide, disp. XVI, sect. V, n. 3-6). É verdade que, desde tempos imemoriais, as penas canônicas para hereges e apóstatas foram iguais ou muito semelhantes, o que parece corroborar a tese de Suárez, mas por outro lado ela deixa de resolver várias questões teológicas, como as que dizem respeito às diferenças entre heresia formal e material. E mais: a apostasia é um retrocesso completo porque aparta o homem totalmente da fé, virtude teologal infusa, ao passo que a heresia só pode dizer-se completa se o herege mantém sua opinião após a autoridade ter-se manifestado contrariamente a ela, em se tratando de matéria até então opinável do ponto de vista teológico.

A propósito, vários teólogos fizeram outra distinção que vale mencionar neste breve texto: entre apostasia implícita ou explícita. De acordo com isto, a apostasia será explícita e formal se o fiel renunciar à fé cristã por declaração categórica ou por atos que equivalham a uma declaração, como por exemplo o converter-se ao maometanismo — o que, ipso facto, revela a sua infidelidade. A apostasia será implícita ou interpretativa quanto o cristão, sem formalmente renunciar à doutrina, conduzir-se de forma tal que se mostre um verdadeiro estranho às verdades da fé. Por exemplo: católicos que aplaudam ataques diretos ou indiretos à religião por parte dos infiéis (diríamos hoje, dos neopagãos). Ou então, acrescentemos nós, que defendam legislações atentatórias ao direito divino ou ao direito eclesiástico,[3] como as que justificam a separação formal entre o Estado e a Igreja, condenada milenarmente pelo Magistério e inequívoca difusora do laicismo.

É verdade que estas e várias outras distinções se perderam dramaticamente após a revolução do Concílio Vaticano II e do magistério liberal que se lhe seguiu. Assim, numa Igreja cuja apostolicidade se esfumou totalmente com o ecumenismo, tanto a heresia como a apostasia se tornaram conceitos abstratos, e qualquer pena canônica será vista como usurpação indevida da autoridade eclesiástica — imiscuída na “liberdade” dos fiéis. Ora, se lembrarmos que, até então, até mesmo a cooperação com a apostasia ou com a heresia era apenada com a excomunhão latae sententiae, como por exemplo o ato de ler e difundir a obra de apóstatas ou hereges ou participar de suas atividades (conforme a bula de Pio IX Apostalicae sedis, de 1869, confirmada por Leão XIII na Constituição Oficciorum, de 1897), veremos o quão distantes estamos hoje do Magistério tradicional, pois católicos ou filocatólicos podem editar, ler ou indicar a obra dos hereges mais cabais com toda a liberdade, ou seja, livres de qualquer tipo de coação eclesiástica.

O excomungado Xavier Zubiri, por exemplo, poderia hoje freqüentar as aulas de Alfred Loisy e ler as suas obras sem nenhum problema. Poderia também ser leitor voraz dos livros de Maurice Blondel incluídos no Index, com a consciência aparentemente livre de quaisquer remorsos. Seja como for, isto não o livraria (a ele e a outros) do direito divino,[4] de acordo com o qual a apostasia ou a colaboração direta ou indireta com ela é sempre um pecado contra a fé, porque, levada às últimas conseqüências, implica rejeição à doutrina revelada e, portanto, à religião, na medida em que tal recusa traz consigo o não-cumprimento ou a indiferença em relação ao culto verdadeiro a ser prestado a Deus — primeiro dever de justiça dos homens.

A apostasia vai contra as promessas feitas no batismo, razão pela qual ela é agravante em relação à heresia. Trata-se, em verdade, de um suicídio religioso, como afirma Jean-François Badet no livro Le peché de l’incroyance.

Suicídio que, em si, é o mais grave dos pecados, porque atenta contra a lex aeterna.

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1- Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 12, art. 1, resp.

2- Cfme. A. Vacant, E. Mangenot et É. Aman. Dictionaire de Théologie Catholique. Tome Premier –Deuxième Partie. Paris: 1931, Librarie Letouzey et Ané, p. 1602

3- A. Vacant, E. Mangenot et É. Aman. Dictionaire de Théologie Catholique. Tome Premier –Deuxième Partie. Paris: 1931, Librarie Letouzey et Ané, p. 1604.

4- Sobre os tópicos do direito divino, escreveremos um texto noutra ocasião.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Pequeno aviso

Sidney Silveira

Tenho recebido emails de pessoas que acompanham o Contra Impugnantes, indagando-nos acerca do fato de que não temos atualizado o blog. É verdade. Mas há uma razão: estive doente nos últimos 10 dias e ainda estou convalescendo. Seja como for, lembro o que foi dito neste outro texto: a época de superprodutividade de textos ficou para trás, entre outras coisas porque este trabalho de divulgação da obra de Santo Tomás de Aquino não é premido, vetorizado, orientado por quaisquer esperanças de retorno — seja material ou espiritual. Apenas fazemos na medida das nossas possibilidades o que julgamos um dever, mas sem qualquer tipo de pressão quanto ao tempo.

Agradeço pelas mensagens carinhosas. Nos próximos dias voltaremos a atualizar o blog.