segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (IV)

Carlos Nougué
Como diz Maxence Hecquard (op. cit., p. 39), a definição que o liberal Raymond Aron dá de ideologia é tanto mais justa quanto menos precisa é. Isso porque, como escreve o próprio Aron, “as ideologias [...] sempre mesclam, com mais ou menos felicidade, proposições de fato e julgamentos de valor. Elas exprimem uma visão de mundo e uma vontade voltada para o futuro. Não caem diretamente sob a alternativa do verdadeiro e do falso, mas tampouco pertencem à ordem do gosto e das cores [...].” Não requerem “prova nem refutação; a análise dos fatos atuais ou a antecipação dos fatos do porvir transformam-se com o desdobramento da história e o conhecimento que temos dela. A experiência corrige progressivamente as construções doutrinais”.

Aí está, em primeira instância, por que o pensamento democrático liberal (e o econômico liberal, indissociável daquele) é tanto ideologia como o comunismo: porque pertence à mesma “realidade nebulosa” (o termo é de Maxance Hecquard) que ele. E o reconhece, ao fim e ao cabo, o próprio Aron não só ao definir o discurso democrático como algo entre a “formação de uma atitude histórica ou de uma hierarquia de valores” e um “sistema global de interpretação do mundo histórico-político”, mas também ao confessar que seu slogan “o fim da idade ideológica” não era senão uma forma de combater a ideologia stalinista e que, portanto, o conceito de ideologia pode ser reivindicado “quer como expressão permanente do pensamento digno do nome de filosofia” (ao modo da “ideologia” de De Tracy, vista no artigo anterior), “quer como uma inspiração necessária à ação eficaz” (ou seja, aplica-se também ao pensamento democrático) (Raymond Aron, L’Opium des Intellectuels, c. 7, p. 246, apud Maxence Hecquard, ibid.).

Mas, mais precisamente, o que é esse “sistema global de interpretação” que inspira necessariamente uma “ação eficaz”? Em que, suposto o enquadramento tanto do pensamento liberal como do comunista naquela “nebulosa” que exprime “uma visão de mundo e uma vontade voltada para o futuro”, em que se diferencia ideologia, toda e qualquer ideologia, quer das doutrinas político-econômicas dos antigos, de Platão, Aristóteles, Cícero, quer das doutrinas político-econômicas da Igreja? Em outras palavras: não seriam estas doutrinas, as dos antigos e as da Igreja, igualmente ideologias? Não envolveriam também elas uma “visão de mundo”? E não envolveriam elas, igualmente, uma “vontade voltada para o futuro”, como, por exemplo, a busca por parte de Aristóteles da melhor constituição para Atenas?

Para começar a responder a isso, recorramos antes de tudo às precisões que Julien Freund faz ao conceito de ideologia em L’essence du politique (pp. 4 ss., apud Maxence Hecquard, ibid., pp. 39-41): sendo uma “doxologia”, ou seja, “uma opinião que versa sobre os fins”, a ideologia é “uma idéia tornada desejo, aspiração”. Não se dirige à razão, mas apenas ao coração (digo-o parafraseando a Hecquard), e, embora privilegie sempre determinada realidade (uma classe, como o comunismo; uma raça, como o nazismo; ou o povo, como o demoliberalismo), tem “pretensão à universalidade”.

Mas estes mesmos traços contraditórios que definem toda e qualquer ideologia devem ser desdobrados, da seguinte maneira:

a) o ser uma idéia que não se dirige à razão implica duas coisas: a “negação da razão” e a “vontade de poder” (“a ideologia exige o poder”, diz Hecquard), dois dos principais alicerces sobre os quais se ergue o mundo nascido da negação da Cristandade;

b) o ser uma parcialidade que almeja a universalidade também implica, por seu lado, duas coisas:

a parcialidade do olhar ideológico, conquanto permaneça tal qual, ou seja, uma parcialidade, tende necessariamente ao autoritarismo por sua mesma pretensão à universalidade: para que uma parte “se torne” o universo, tem de forçosamente eliminar a(s) outra(s) parte(s) (assim como não há nada mais absoluto, ou absolutista, que o pensar que “tudo é relativo”) – afinal, como diz Hecquard, “qualquer universalidade que não seja Deus é redutora”;

tanto o “gnothi seauton” (“conhece-te a ti mesmo”) de Sócrates como as condições teóricas do pensamento desinteressado não podem ter lugar em nenhuma ideologia, porque, como diz Hecquard, “já não se trata de aperfeiçoar uma cabeça e um coração”, mas “de convencer uma massa”.

Como assim, perguntará um liberal? Não é o “povo” em si mesmo uma totalidade, uma universalidade? Que o diga, na esteira de Rousseau, Jacques Maritain, outro bravo defensor da democracia liberal: segundo ele, a democracia também tem seus “heréticos”, seus “blasfemadores”, ou seja, aqueles que infringem “as práticas democráticas comuns”, os quais, ainda segundo o democatólico, devem ser combatidos com a máxima energia (L’homme et l’État, c. 5, I, n. 2, p. 613, in Œuvres complètes, IX, Fribourg-Suisse, Saint-Paul, Paris, 1990). Na verdade, também a noção de “povo” é produto do pensamento mágico: é uma idéia nascida de uma ideologia para servir a uma quimera.

(Continua.)

Em tempo 1: Não foi deixada de lado a série “Comunismo e liberalismo – rebentos da mesma raiz”. Sucede apenas que a atual crise econômica mundial, causada pelo rompimento da bolha financeira em que se desenvolve a economia liberal, urgia se mostrasse a falácia do pensamento mágico de que esta decorre. Mas trata-se, em verdade, de séries complementares, sendo a atual parte antecipada da outra. Logo, pois, voltaremos a ela.

Em tempo 2: Estranhou a uma querida amiga a afirmação de que o entimema cartesiano “Penso, logo existo” teria por premissa maior “Para ser, é preciso pensar”, donde a afirmação de que, segundo tal raciocínio, “o pensar cria aquele que o pensa” (até porque, digo alimentando-lhe a estranheza, o próprio Descartes nega que se tratasse de entimema). Naturalmente, nos três artigos anteriores vali-me, como arma do bom senso contra o pensamento mágico, de provas chamadas per absurdum, com as quais se mostra a veracidade de uma proposição pela falsidade evidente das conseqüências da proposição contraditória. Mas fica aqui uma promessa: uma série exclusivamente sobre o pensamento de Descartes e seu papel fundador da modernidade liberal, na qual se verá, desenvolvidamente, que o dito sobre o Cogito cartesiano corresponde à realidade. Deixo, porém, desde já, uma “dica”: substitua-se o “Penso” enquanto “pensar em ato” pelo “Ser” enquanto “Ato puro” ou “pensamento de pensamento”, ou pelo “ente” enquanto “primum cognitum” (primeira coisa que se conhece) – não se exija coerência do fundamentalmente incoerente ou “psicopatológico” –, e se constatará o que em essência digo: o pensamento de Descartes é pensamento mágico de segunda vertente, ou seja, aquele que toma o efeito pela causa, ou o conseqüente pelo antecedente.