Problemas teológicos, canônicos, filosóficos e morais resultantes da abdicação do Papa Bento XVI
“A mediocridade é o justo meio hesitante entre o bem e o mal”. (Garrigou-Lagrange)
Sidney Silveira
“A consciência apresenta-se como o baluarte da liberdade frente às limitações impostas pela autoridade”, escrevia o então Cardeal Ratzinger em 1991, referindo-se a uma controvérsia no meio católico. Nesse escrito bastante conhecido, o teólogo alemão afirmava: “Estão contrapostas [nesta disputa] duas concepções de catolicismo. De um lado, uma compreensão renovada de sua essência, que explica a fé cristã a partir da liberdade e como princípio da liberdade, e de outro, um modelo superado, ‘pré-conciliar’, que sujeita a existência cristã à autoridade”. Nas palavras do Cardeal Ratzinger, a moral da consciência e a moral da autoridade pareciam, em tal contexto, eliminar-se mutuamente, sendo a consciência a norma suprema que o homem deve seguir, mesmo quando o faz voltar-se contra autoridade. O teólogo alemão citava em tom crítico a fórmula — fiel à tradição filosófico-teológica moderna — de que a consciência é “infalível”.
Diz mais aquele texto de Sua Eminência Reverendíssima, o Cardeal: naquela visão, a autoridade (leia-se, literalmente, Magistério da Igreja) poderia até falar sobre moral, mas no máximo caberia a ela propor elementos para a formação dos juízos autônomos da consciência, a qual teria sempre a última palavra. Mas o ponto decisivo, para o que nos interessa apontar, vem do seguinte trecho: “Vivemos de uma maneira completamente nova a força da recordação [da fé] e a verdade da palavra apostólica. O verdadeiro sentido da autoridade doutrinal do Papa reside em que ele é o guardião da memória cristã. O Papa não impõe [a fé] desde fora, senão que desenvolve a memória cristã e a defende. (...) Sem consciência não haveria Papado. Todo o poder do Papado é o poder da consciência”.[1]
Se levarmos a premissa ratzingeriana às últimas conseqüências, veremos que, na sua concepção, a autoridade eclesiástica jamais se impõe pelo ensino da verdade, que os fiéis recebem ex auditu e à qual anuem por obediência à autoridade de Cristo, em cujo nome falam os Papas e o Magistério; ela no máximo dialoga com a consciência individual autônoma. O subjetivismo desta posição é patente, e não a troco de nada os anátemas quase desapareceram, tanto neste como nos Pontificados anteriores que remontam a João XXIII.
Respondamos a isto dizendo que a consciência não se forma por partenogênese. Ela não é infalível nem autônoma, pois, como demonstrara Santo Tomás, ela é regra regulada e não regra regulante, e para ser infalível infalíveis e perfeitas deveriam ser as espécies inteligíveis humanas, o que não é correto dizer, porque somos incapazes de esgotar a verdade. Para nós, pobres mortais, a verdade (mesmo a científica) é uma assíntota e comporta graus: assim, definir o homem como bípede vertebrado sem escamas é menos verdadeiro do que defini-lo como animal racional; embora ambas as proposições estejam certas, uma alcança o âmago da essência humana, a outra mira aspectos acidentais, em sentido metafísico. Traduzamos tudo isso num axioma de nossa lavra: ciência limitada, consciência imperfeita. Portanto, a expressão de que o Papado depende da consciência é absolutamente imprópria. O Papado, na doutrina tradicional, depende diretamente do carisma outorgado por Deus. A sua aceitação ou não pelos indivíduos é que, sim, pode radicar na consciência.
A consciência humana precisa ser formada e começa a sê-lo justamente pela autoridade. Mas que autoridade? A primeira delas é dos mestres e professores que nos ensinam as verdades em suas matérias. Afirmemos, pois, sem nenhum prurido eufemístico: a contraposição autoridade/liberdade é falsa, sobretudo quando se entende erroneamente a consciência como “baluarte da liberdade”, como advertia Ratzinger, visto que esta última reside na vontade — apetite intelectivo do bem — e não na consciência, pois os veredictos desta são falíveis. O problema é que, apesar de dominar as premissas, o teólogo alemão não supera a própria dicotomia que denuncia.
É assim em qualquer caso:
Ø Um soldado não forma a sua consciência militar questionando os generais, pois, se tivesse elementos e capacidade de julgar e repudiar cada ordem dada pelo superior, cairia o Exército.
Ø Um menino não forma a sua consciência cristã contestando o catequista.
Ø Um matemático não molda a sua consciência argüindo, desde o princípio, os experts na matéria.
Ø Um teólogo não “discute” com Santo Tomás de Aquino nos primeiros anos de Seminário.
Ø Um candidato a filósofo não refuta Aristóteles na primeira aula; somente depois de adquirir solidíssima formação ele deve atrever-se a fazê-lo, e com todo o respeito, toda a deferência devida ao Estagirita, chamado pelos medievais de O Filósofo.
Repitamos, pois, a seguinte regra, para guardá-la bem na memória: a consciência começa a se formar por anuência à autoridade, e esta é balizada pelo conhecimento da verdade. Neste sentido, todo magistério autêntico exige submissão do intelecto. Assim, se o professor ensina que 2+2=4, a nossa consciência não é “livre” para considerar que o resultado desta adição é 5. Que nos perdoe, uma vez mais, o teólogo Ratzinger, mas a sua concepção de liberdade e de autoridade (mantida durante todo o período em que foi Pontífice) é herdeira dos liberalismos da melhor cepa.
Pois bem. É justamente por dever de consciência que seguiremos à risca o conselho do então Cardeal Ratzinger: mesmo que as autoridades digam o contrário, não pecaremos contra a nossa consciência católica omitindo verdades em matéria gravíssima e em momento histórico tão delicado. Iremos, pois, contra a boiada, sem endeusar a própria consciência como se fosse uma Bastilha inexpugnável, pois ela é falível, porém muito seguros de tê-la formado no estudo continuado da obra de Santo Tomás de Aquino, Doutor Comum da Igreja.
Advirta-se que o dever de consciência, quando é necessário voltar-se publicamente contra alguma autoridade, se aplica nos casos de erros patentes em matéria grave; então o silêncio seria pecado de omissão. Assim explica Santo Tomás, no fabuloso De Veritate, o fato de São Paulo confrontar São Pedro in faciem, ou seja, contrariar o Papa frente a frente, diante de todos. Trata-se de ocasiões excepcionalíssimas, como a atual — fruto maduro das mudanças radicadas nos ambíguos textos do Concílio Vaticano II. Desde então, o Magistério da Igreja assumiu uma inédita linguagem resvaladiça aberta a várias interpretações, em contraposição aos documentos anteriores da Tradição bimilenar, cuja simplicidade e forma direta de se expressar não davam margem a qualquer dúvida sobre o seu próprio conteúdo.
Elegias mundanas a uma abdicação
A nossa primeira observação diz respeito à renúncia ao ministério petrino feita pelo Papa Bento XVI. É a seguinte: o ofício de um Papa não se exaure em sua humanidade, por se tratar do homem que, como Vigário de Cristo, é a suma ponte com a divindade. Se tivermos, pois, a clara consciência de que o Papado não é ofício político ou diplomático, e sim um poder instituído pelo céu, saberemos tratar-se de uma realidade espiritual que, dada a sua universalidade, abarca todas as demais coisas no tocante ao fim último do homem: Deus. Trata-se, pois, de um poder omniabarcante, em relação ao qual todos os demais poderes estão ordenados. Se estes se voltam contra o fim último, a Igreja militante, cuja cabeça visível é o Papa, tem autoridade para intervir. “Não terias nenhum poder sobre mim se não tivesse sido dado do Alto”, ensina Cristo a Pilatos. Esta é a tradicional doutrina dos dois gládios, tão repudiada pelos modernistas católicos denunciados por São Pio X e por seus herdeiros contemporâneos.
O Papa é o homem a quem estão dirigidas as palavras ditas pessoalmente por Nosso Senhor a Pedro: “Tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu”. Homem a quem é conferido o carisma sobrenatural da infalibilidade no exercício de seu poder de ensinar (potestas docendi), no tocante a questões de fé e costumes. Homem que possui o pleno poder de jurisdição na Igreja universal. Por isso, dizia o ab-rogado Código de Direito Canônico de 1917: “O Romano Pontífice legitimamente eleito, ao aceitar a eleição, recebe de imediato — por direito divino (iure divino) — a plenitude da jurisdição suprema”.[2]
Somente num catolicismo que, desgraçadamente, perdeu ou distorceu a noção de direito divino se poderia conceber a hipótese de haver um Papa emérito, sem a jurisdição suprema que o distingue, como agora nos querem impor; isto dá margem a confusões magisteriais, canônicas e teológicas tremendas, como se não bastassem as que já nos assolam. Somente num catolicismo naturalista se pode elogiar a decisão humana de um Papa de abdicar à sua autoridade magisterial e ao supremo primado apostólico, sob alegação de cansaço por conta da idade — em descontinuidade com a Tradição e a prática da Igreja, como diz o historiador Roberto de Mattei. Isto não obstante o seguinte (digamos sem meias palavras): não nos surpreende tal decisão pelos motivos alegados, vinda de quem possui do Magistério uma noção tão tímida perante as consciências individuais.
A propósito, no artigo intitulado Considerações sobre o ato de renúncia de Bento XVI, o mesmo historiador indaga: “O bem-estar físico nunca foi critério de governo na Igreja. Se-lo-á a partir de Bento XVI?”. Ora, o próprio Roberto de Mattei nos chamava a atenção, quando do anúncio da renúncia histórica de Ratzinger, para o fato de que as faculdades intelectuais do Papa abdicante estavam plenamente íntegras, e o estado de sua saúde era “geralmente bom”, de acordo com o porta-voz da Santa Sé, Frederico Lombardi. Ademais, carregar a Cruz até o fim, com confiança em Deus, é o heroísmo que caracteriza o cristão. Por isso há deveres de estado para leigos solteiros, leigos casados, sacerdotes, monges, freiras, bispos e... para o Papa!
Exemplifiquemos da forma mais didática possível, até para ficar claro que não estamos contrariando o princípio Romanus Pontifex a nemine iudicatur, pois o ato da renúncia de um Papa, como ensina o Código de Direito Canônico, não precisa ser aceito nem mesmo pelos Cardeais, dada a supremacia do poder papal. Portanto, não nos resta senão respeitosamente aceitá-lo, acatá-lo, mas o legislador canônico não quer com isto dizer que não possamos discordar dele. Vamos lá: se um marido, alegando cansaço, tristeza ou qualquer outra coisa, deixa habitualmente de cumprir para com a sua esposa o débito conjugal, cujo efeito próximo é aplacar a concupiscência, estando ambos em plenas condições de consumar o ato, peca. Se o leigo solteiro deixa de guardar a castidade, peca. Se o monge ou a freira quebram os votos perpétuos, pecam. Se os bispos não ensinam o que é conforme à Tradição, pecam. E algo análogo serve com relação ao Papa: há deveres inalienáveis que ele é chamado a cumprir. Somente um catolicismo aggiornato pode imaginar que um Papa é impecável, alguém transformado em Anjo imaculado ao assumir a sua missão. Somente um catolicismo água-com-açúcar pode imaginar que um Papa não é passível de críticas de nenhum tipo, mesmo quando feitas em vista do bem comum da Igreja e tendo como base a Tradição. Nunca foi assim.
Ademais, a história está aí para nos mostrar Papas moralmente indignos do supremo múnus que lhes foi confiado. Eles passaram e a Igreja permaneceu, apesar dos seus pecados. Papas simoníacos, nepotistas, gananciosos e imorais. Leiam a monumental Histoire Universelle de l’Église Catholique, do Pe. Rohrbacher, para ter a mínima noção de que há Papas que Deus nos impinge para cumprir os Seus inescrutáveis desígnios. Ora, para compreender como Deus se serve de males em vista de bens infinitamente superiores, é preciso ter em mente que não há comensurabilidade possível entre os pecados humanos (mesmo de um Papa) e a Providência Divina. A vontade de Deus sempre se cumpre, mesmo quando os homens falham.
A propósito, a coexistência de dois Papas indicava desde sempre que, na verdade, um deles era antipapa e a ameaça de cisma era iminente. Como a imaginação modernista é magicamente infinita, agora deparamos com uma circunstância impossível de resolver, jurídica ou teologicamente, sem cair nalguma contradição, considerados os princípios configuradores do poder papal: o fato inédito de haver dois Papas vivos, um com a jurisdição suprema e o outro emérito, sem ela. Isto afora a circunstância de que, tradicionalmente, só o Papa reinante usava as vestes totalmente brancas, representativas da pureza espiritual do cargo que lhe foi confiado. Agora há dois homens de branco aludindo de maneira simbólica ao Pontificado. Por sua vez, os que renunciaram anteriormente — com toda a razão! — se tornaram ex-Papas ainda em vida.
Primeira confusão decorrente da presente situação: como era de se esperar, já começa a circular nos meios progressistas o murmúrio de um reinado papal duplo, ou seja, de um possível governo bipartido em que o Papa emérito continuaria a exercer o ministério petrino “espiritualmente”. Alerta o vaticanista Robert Moynihan, em artigo publicado por esses dias: as recentes palavras do Papa Bento XVI deixam em aberto a interpretação de que, no futuro, poderia haver uma dupla regência petrina. E isto é só o começo, caros: o modernismo católico tem o condão de transformar qualquer escrito ou ato solene em algo anfíbio, aberto a infinitas interpretações divergentes. É exatamente isto que o padre Álvaro Calderón — maior tomista vivo — chama de “consenso plurânime dos teólogos”, ou seja: uma babel em que todos detêm a verdade justamente porque não há verdades em sentido estrito, apenas visões particulares.
Reiteremos: a decisão de criar a distinção de “Papa emérito”, deixando-nos perante dois sucessores de Pedro vivos sob o título de Papa, embora um deles tenha abdicado formalmente ao poder, é uma monstruosidade doutrinal. Nenhum outro Papa renunciante virou emérito, até pelo risco de acarretar um cisma, razão pela qual Bento XVI se viu na contingência de jurar obediência e reverência ao futuro Papa, ciente dos problemas implicados na situação (mas aparentemente sem imaginar que alguém pode não julgar assim e propor algo contrário aos fins da Igreja. Há precedentes). Perdoem-nos as almas cândidas, mas recusar-se após a renúncia a ser chamado de Sua Santidade, Bento XVI, e vestir-se como religioso comum, isto sim, seria um ato de humildade. E não nos venham dizer que se trata de juízo temerário ou desrespeitoso; é evidente.
Até mesmo exegetas do novo Código de Direito Canônico, como na coleção organizada por A. Marzoa, J. Miras e R. Rodríguez-Ocaña, responsáveis pelo Comentario Exegético al Código de Derecho Canónico, editado em vários volumes pela EUNSA, teriam dificuldade de explicar tão anômala novidade. Ensinam eles que existe íntima conexão entre o munus petrinum e o poder do Papa — que é a um só tempo ordinário, supremo, pleno, imediato e universal. Portanto, a existência de dois Papas, sendo um deles emérito, fato não previsto pelos melhores canonistas, cria vários dilemas a resolver.
Por exemplo:
Ø Que tipo de assistência do Espírito Santo o ex-Papa, ou melhor, o Papa emérito, passa a ter?
Ø Qual o seu papel no governo da Igreja, mesmo estando recluso?
Ø Sendo ainda Papa, resta-lhe algum vestígio ou elemento, mesmo que adventício, do supremo poder papal? Se sim, em que sentido?
Ø Em relação ao novo Papa, como fica a plenitudo potestatis pontifícia (expressão usada pelos canonistas para explicar que o Papa possui a totalidade do poder que Cristo delegou à sua Igreja)?
Ø Mil etcéteras!
Na prática, com a renúncia pelos motivos alegados, a percepção do mundo (este mesmo que, antigamente, a Igreja chamava virilmente à conversão) é de que se trata de um governo político humano como outro qualquer. E mais: com a inaudita fórmula “Papa emérito”, presta-se um desserviço à compreensão da real dimensão monárquica (e divina) do Papado, abrindo-se flancos para, em breve, algum Cardeal ter a linda idéia de propor um governo colegiado ou repartido entre dois ou mais Bispos de Roma. Se isto não representa um precedente perigoso para a criação de uma Igreja bicéfala, além de um enfraquecimento ainda maior do caráter do Primado de Pedro — já tão diminuído pela colegialidade vaticano-segunda —, não sabemos mais o que pode significar.
No momento em que a nova ordem mundial mostra a sua ojeriza à Igreja e ao Papado, com manifestações públicas as mais vis de repúdio e desrespeito aos católicos; no momento em que a Igreja é humilhada por escândalos de pedofilia, homossexualismo e por evidências de corrupção política e financeira, direta ou indiretamente decorrentes da débâcle doutrinal; no momento em que forças internacionais fazem pressão para a Igreja mudar o seu Magistério; no momento em que, entre os próprios católicos, leigos ou sacerdotes, muitos não crêem no ensinamento tradicional; em suma, num momento gravíssimo como o presente, contemplada de um ponto de vista não mundano, a renúncia de um Papa — sem menção evidente a nenhum motivo sobrenatural — ganha o caráter de simbólica deposição do poder espiritual, que se omite diante da desgraça (em sentido teológico) reinante.
O que virá em seguida, não sabemos. Mas sabemos que só um milagre de proporções gigantescas pode mudar o deplorável quadro eclesiástico atual. A propósito, temos diante de nós a profecia de La Salette, que nos diz “apenas” o seguinte: os sacerdotes serão cloacas de impureza e Roma se transformará na sede do Anticristo. Será agora, com o próximo Papa? Será daqui a 50 ou 100 anos? Repitamos: é impossível saber e nos cabe rezar para cumprir-se a vontade de Deus de forma a iluminar as consciências dos mornos, dos tíbios, dos que aderem a uma cegueira voluntária. Seja como for, o fato é que todos somos chamados pelo próprio Cristo, e também por São Paulo, a ler os sinais dos tempos.
Cada um chegue à sua conclusão.
A lenda do santo desertor
Acrescentemos outra coisa, antes de encerrar. Não deixa de ser irritante, e em alguns casos ridícula, a postura de alguns padres e também de diletantes metidos a teólogos de dizer que o católico verdadeiro não pode criticar a abdicação do Papa Bento XVI — agora na prática ex-Papa, apesar dos malabarismos canônico-dialéticos das autoridades romanas. E mais: afirmando com ar de sapiência infusa que este foi um “santo ato de coragem e humildade”. Desculpem-me, amigos: acordem da letargia! Saiam da aurea mediocritas de que falava Horácio, aquela atitude que macaqueia o justo meio das virtudes, sem o ser, pois nas sábias palavras de Garrigou-Lagrange a mediocridade é o justo meio hesitante entre o bem e o mal. Assim, se por acaso ainda não temos todos os elementos para emitir um juízo definitivo, todavia nós os temos em grau suficiente para, à luz da Tradição, considerar essa abdicação, da maneira como foi feita, o ato solene que presta um desserviço ao Papado, mesmo inserindo-se no plano da Divina Providência. Como Bento XVI não mudou o discurso até o fim, somente um claro sinal dos céus que o justificasse poderia dar-lhe outra dimensão. Será que o teremos?
Não nos custa aqui aludir a um critério ensinado por grandes teólogos ao falar da importância do conselho como dom do Espírito Santo: assim como a virtude da prudência não se identifica com a pura inação, que aconselha sempre a não agir e a não empreender coisas de importância, a fim de evitar incômodos ou dificuldades — pois muitas vezes o prudente é avançar, realizar, mover-se ao ataque quando a situação o exige —, assim também os juízos temerários não se dão apenas nas críticas, sobretudo quando o temerário é calar, omitir. Eles podem materializar-se nos elogios irresponsáveis, aduladores ou cínicos, em ocasiões nas quais o juízo da razão prática não se baseia em nenhuma evidência plausível. Ora, se o critério para não incorrer em juízo temerário, neste caso, é justamente considerar a regra próxima da fé, que é o Magistério, assim como a História da Igreja, temos maior quantidade de elementos para criticar do que para louvar esta renúncia, da maneira como foi feita.
Portanto, o elogio beócio e babão é mais irresponsável e condenável do que a crítica construtiva — e mostremos isto lembrando do ocorrido com Celestino V, único Papa que, a exemplo de Bento XVI, renunciou por vontade própria; todos os demais abdicantes o fizeram premidos por diferentes situações, políticas ou eclesiais. Vale mencionar Celestino V justamente porque alguns, para encomiar o ato de Bento XVI, ficam por aí citando o fato de Celestino V ter sido um Papa santo. Sim, caros, é verdade, mas não foi santo enquanto Papa. Expliquemo-nos melhor.
Primeira observação: dentre os Papas santos, Celestino V é uma espécie de justificada exceção. A sua bula de canonização nos informa que ele foi canonizado como Pedro de Morrone, e não como Celestino V, ao contrário dos demais Papas santos, que foram canonizados com o seu nome papal — como São Gregório Magno, São Leão Magno, São Pio V, São Pio X, etc. Para compreender os porquês disto, remontemos às conclusões de numa série de textos inacabada, sobre Bonifácio VIII (que em breve retomaremos), cujas fontes foram todas apontadas nos respectivos artigos:
Ø Bonifácio VIII não foi o articulador da renúncia de Celestino V;
Ø Bonifácio VIII não mandou assassinar Celestino V;
Ø Bonifácio VIII não mandou torturar Celestino V, que, segundo fontes primárias, se manteve em “honesta reclusão”, levando vida contemplativa até morrer em 19 de maio de 1296;
Ø Celestino V foi eleito Papa — no que tange aos negotia secularia dos quais Deus muitas vezes se vale, para fazer cumprir os Seus desígnios — graças aos ardis de um político inescrupuloso e à pressão de fanáticos franciscanos de uma linha “espiritualista” e sectária condenada pelo Magistério, dado o seu falso messianismo à Joaquim de Fiore;
Ø Celestino V, no curtíssimo tempo de seu pontificado, concedeu benesses indevidas a membros da Cúria apaniguados da corte de Carlos II;
Ø Celestino V colocou injustificadamente homens de Carlos II nos Estados pontifícios;
Ø Celestino V foi subserviente ao poder político por cujo influxo se elegera Papa, chegando a nomear cardeais indicados por Carlos II e indo residir, por ordem expressa do rei, não em Roma e sim em Nápoles, onde poderia ser melhor manipulado;
Ø Celestino V queria, como Papa, continuar vivendo vida de anacoreta, algo absolutamente incompatível com as exigências do cargo;
Ø Logo após a renúncia formal de Celestino V, a família Colonna e os “espirituais” franciscanos tentaram responsabilizar Bonifácio VIII pela abdicação do Papa anterior, e começaram a espalhar que a renúncia fora canonicamente inválida;
Ø A encarniçada campanha sedevacantista desses sequazes ditos “espirituais” materializou-se na publicação de inúmeros panfletos satíricos contra Bonifácio VIII. Nesses textos, entre inúmeras outras coisas dizia-se que Celestino V continuava Papa, sendo Bonifácio VIII um anticristo usurpador.
Continuaremos a falar de Bonifácio VIII quando retomarmos a série, mas vale dizer uma coisa que nenhum historiador sério da Igreja ignora: a canonização de Celestino V se deu em circunstâncias altamente duvidosas de pressão política da parte do rei Felipe, o Belo. Neste contexto, advirta-se o seguinte: nem de longe estamos afirmando que Pedro de Morrone não tenha sido santo. Também não estamos afirmando que a sua inclusão entre os santos reconhecidos pela Igreja se tenha dado por um processo inválido. Mas não paira a menor sombra de dúvida de que, como ressalta Luigi Tosti a certa altura de sua Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, Pedro de Morrone foi elevado aos altares graças ao empenho tenaz dos inimigos de Bonifácio VIII, os quais por força queriam declará-lo “mártir” e, ao mesmo tempo, inculpar Bonifácio VIII por sua morte. Graças a Deus, o frágil e subserviente Clemente V não chegou a tanto: canonizou o ex-Papa como Pedro de Morrone e não como mártir, e sim como Santo Confessor.
Como a Igreja, ao canonizar alguém, propõe o Santo como modelo a ser imitado, o simples fato de que Celestino V não foi canonizado com o seu nome papal indica que não é um modelo de Papa, embora possa sê-lo com relação a suas virtudes piedosas ou a quaisquer outros fatores de sua vida. Curiosamente, Dante — a quem tantas críticas fazemos, com relação à sua idéia de Igreja — o “condena” ao Inferno (Il gran rifiuto, no famoso verso). Seja como for, caros, se querem elogiar a renúncia de Bento XVI, não o façam aludindo a Celestino V, mascarando o intuito consciente ou inconsciente de, em breve, propor o Papa Ratzinger como mais um beato, a exemplo de João Paulo II e, agora, Paulo VI, cuja beatificação desponta no horizonte...
Por fim, não se ofendam as almas sensíveis ao ler uma crítica firme como esta. Nem Bento XVI nem João Paulo II se escandalizariam com ela; afinal, em diferentes alocuções elogiaram publicamente ao sedevacantista medieval Jacopone de Todi — que os franciscanos consideram beato, com celebração em 25 de dezembro no Martirológio da Ordem dos Frades Menores. E o fizeram apesar de saber o seguinte: Todi é o notório autor das mais injuriosas, infames e imorais sátiras jamais escritas contra um Papa. No caso, Bonifácio VIII, chamado por Todi (e por outros) de coisas como demônio, sodomita, satanista, blasfemo, sacrílego, ladrão...
Quanto a nós, com total respeito à pessoa do Cardeal Ratzinger — hoje Papa emérito, neste incrível "achado" da nova teologia —, apenas estamos apontando para o significado de sua renúncia, à luz de uma visão não mundana, não modernista, não covarde.
Com relação ao que virá a partir de agora, Deus nos proteja e à Sua Igreja.
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