sexta-feira, 27 de junho de 2014

A causa culpável: o inferno real e os infernados deste vale de lágrimas

Sidney Silveira
Entre muitas outras coisas, o inferno é a rememoração perpétua dos males cometidos, espécie de zurzir eterno do remorso que fustiga a consciência, a ponto de deixar espaço apenas para o ódio transformado em ímpeto perene. A alma, em tal estado, infelicita-se sumamente e sucumbe ao macabro mecanismo de co-responsabilizar a todos por sua infelicidade, a começar por Deus, objeto do ódio maior.

Diferentemente do que sucede às pessoas más deste mundo, o réprobo não tem a possibilidade de fazer do esquecimento um ardil psíquico com que possa cauterizar a consciência e apagar as culpas, nalgum grau e durante tempos intermitentes. Não! A dor do condenado é a memória transformada em castigo — consciência de culpa imune a terapias ou a justificativas de qualquer tipo.
Se fosse possível nesta vida aquilatar a latitude desse sofrimento que lembra para sempre das suas próprias causas culpáveis, talvez antes de chegarem ao estágio em que a cura da alma é impossível muitas pessoas emendassem a vida. E aqui, quando dizemos causa culpável, estamos acrescentando um vetor às formas clássicas de causalidade codificadas sobretudo por Aristóteles e por Santo Tomás de Aquino, seja no plano metafísico, seja no teológico: causa material, causa eficiente, causa formal, causa final, causa modelar, causa instrumental, causa meritória, etc.
Diga-se, antes de tudo, que a causa culpável só se aplica aos entes dotados de inteligência. No caso humano, ela aflora nos atos levados a cabo com maior ou menor negligência voluntária na averiguação da verdade, mas pode chegar à malícia, que não é outra coisa senão a maldade praticada com certa ciência, com certa indústria e por livre escolha. No caso diabólico, muitíssimo mais grave, a causa culpável aflora na ciência antecedente e na deliberação efetiva — e plena — do malefício implicado na ação, a saber: ela emerge na intenção de acarretar o maior mal possível a outrem. Em sua formulação mais generalista, a causa é culpável quando o agente poderia evitar os efeitos maus dela decorrentes. E será mais ou menos culpável numa escala que vai da maior ou menor ignorância negligente à perfeita consciência do influxo causal inerente ao ato.
Na perspectiva teológica, podemos dizer que o demônio é a causa culpável remota dos maus atos humanos. Na perspectiva psicológica, como o homem é dotado de livre-arbítrio — incoercível potência de escolha que radica na vontade —, tal causa remota não pode ser absoluta, pois há e haverá sempre a possibilidade de ele recusar o mal, não consentir. Portanto, o próprio homem é causa culpável próxima de sua infelicidade. E, diga-se a propósito, a infelicidade é o signo perdurável da vontade que frustrou o fim ao qual tende por natureza: o bem. Qualquer bem? Claro que não. Falamos do bem retamente assimilado e hierarquizado pela inteligência e, por conseguinte, apetecido de maneira ordenada pela vontade.
A vida espiritual genuína pressupõe uma crescente visão das causas culpáveis, e posterior afastamento delas. Crescer espiritualmente é, pois, enxergar cada vez mais e melhor a realidade, até chegar à compreensão de que a caridade ocupa o seu ápice. Em contrapartida, a falta de vida espiritual de um homem caracteriza-se por atos enceguecidos quanto ao universo causal em que se dão. O final dessa mortífera escada de Jacó às avessas é a incapacidade de abranger a visão à própria história pessoal, contemplada na perspectiva do seu conjunto.
Em síntese, no inferno, o conjunto das causas culpáveis estará dolorosamente iluminado na consciência de cada um. Ao passo que, nesta vida, o truque satânico que uma pessoa pode realizar contra si própria é viver na superfície das pequenas satisfações e insatisfações cotidianasviver alheia às conseqüências dos seus atos. 

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Para além da gramática


Sidney Silveira
QUEM NÃO CONSEGUE apreciar as dissonâncias oriundas das quebras conscientes de algumas normas gramaticais em prol da expressividade ou da clareza jamais poderá ser verdadeiro escritor. O motivo é elementar: o uso virtuoso de um idioma jamais se limita aos ditames da ciência normativa da linguagem, à qual chamamos gramática, mas pressupõe o domínio de algo que lhe é anterior, a saber, a índole mesma da língua, constitutivo formal de que a própria gramática se vale para codificar tendências e potências jazentes na estrutura mental de uma coletividade de falantes e escreventes de qualquer língua que seja. Não se chega, portanto, a um nível de compreensão superior de nenhum idioma apenas com a leitura dos bons gramáticos, pois esta deve ser complementada pela inescapável recorrência aos grandes poetas e prosadores, que elevaram o padrão da linguagem conotativa ao estado da arte. Por isso a boa regra gramatical jamais deve ser uma camisa-de-força semântica nem sintática, mas o razoável ponto de apoio para que a língua possa realizar de maneira plena as suas virtualidades expressivas. Não por outro motivo, diz o filósofo tomista Álvaro Calderón que a gramática serve à linguagem, e não o contrário.

Onde Tiriricas legislam



Sidney Silveira
O FATO DE A POLÍTICA NÃO TER FIM EM SI MESMA, mas subordinar-se a algo que lhe é superior e anterior — a saber: ao conjunto de valores universais pelos quais qualquer civilização se distingue de todas as formas de barbárie —, é, ou deveria ser, o indicador de que só está preparado para tratar com alguma competência das coisas políticas o homem alçado a um ponto teorético que lhe permita contemplar a Pólis a partir dos seus princípios conformadores.

Qualquer situação em que prevaleça politicamente a opinião do indouto sobre a do douto, a do estúpido sobre a do sapiente, a do malicioso sobre a do virtuoso ou a do cúpido sobre a do prudente aponta para um fato aterrador: o bem comum tornou-se uma impossibilidade ontológica, e de tal configuração não poderá advir outra coisa que não seja a mais dramática espiral de caos e violência. Este é o caso particular das democracias liberais, nas quais se consagra a cabal vitória do reino avassaladoramente tirânico da quantidade.

A propósito, ao contemplarmos a incapacidade até mesmo de articulação verbal básica de enormíssima parcela dos que hoje ocupam cargos legislativos no Brasil, ou seja, das pessoas responsáveis por criar e aprovar as nossas leis, de imediato somos levados a ver como a vaca está a mugir no brejo das almas.

Se porventura fossem inquiridos acerca do que seja a lei, em sua essência, os nossos parlamentares — ou boa parte deles — talvez fossem acometidos duma espécie de vácuo mental análogo ao das pessoas cognitivamente incapacitadas por causa de algum dano cerebral, físico.

Sem desdouro nenhum ao notável Tiririca como palhaço, o fato é que a sociedade brasileira merece tê-lo como alguém cujo ofício é aprovar leis. 

Epítome da calamidade que resiste ao otimismo irresponsável dos idiotas que da política só conseguem ver, miopemente, os partidos.

domingo, 22 de junho de 2014

Filologia



Sidney Silveira
Eis, neste vídeo, um trecho da aula do curso do Instituto Angelicum "A Língua Absolvida", ministrado pelo Prof. Sergio De Carvalho Pachá, que irá ao ar em breve no site do Angelicum, para os alunos matriculados.

A propósito, as inscrições continuam abertas em:

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Consciência e pessoa


Sidney Silveira

PESSOA não é o indivíduo dissolvido numa multiplicidade de atos mais ou menos conscientes, estanques entre si — e sim a substância espiritual possibilitante desses mesmos atos. 

No homem, quanto mais o sentido de unidade prevalece, mais decisivamente pessoais são os seus atos; a despersonalização da alma humana, em contrapartida, tem sempre como vetor a derrota do uno para o múltiplo, da paz para a agonia, da luz para a sombra. Seja como for, mesmo nas doenças mentais mais aflitivas — em que a consciência pode quase apagar-se por completo — permanece a pessoa. 

Em síntese, pessoa NÃO É a consciência: é o que subjaz aos atos conscientes. 

Esta brevíssima postagem é em resposta a leitores que me indagaram acerca da clássica definição de "pessoa" em Boécio (individua substantia rationalis naturae) e me perguntaram se ela coincide com a noção de "consciência" de algumas psicologias contemporâneas. 

Respondida a pergunta com uma cabal e definitiva negativa, acrescento:

Pessoa é a raiz metafísica da consciência. Identificar simpliciter ambas é erro para lá de primário.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Voz, palavra, conceito mental

Sidney Silveira

TRECHO DE AULA do curso "A Língua Absolvida", do Instituto Angelicum, ministrado pelo Prof. Sergio De Carvalho Pachá.

Essa aula teve convidado especial o meu querido amigo Luiz Astorga, Doutor em Filosofia Tomista pela PUC de Santiago do Chile, sob a batuta de autores de renome internacional como Jorge Barrera e Carlos Augusto Casanova. 

Como o brasileiro oscila entre dois extremos horrorosos, que são o de usar titulações acadêmicas como exibição circense ou desprezá-las de maneira absoluta, como se nada valessem para distinguir a formação de um especialista, faço questão de, no caso de Astorga, mencioná-la com satisfação.

Pois digo sem medo de errar que o seu "canudo" é signo material da ciência imaterial que se tornou "habitus" em sua inteligência.


terça-feira, 10 de junho de 2014

O temperamento filosófico

Cristo expulsa os vendilhões do Templo (Gustave Doré)
A Luiz Astorga
Sidney Silveira
Há quem confunda temperamento com caráter. O caráter, como nota distintiva predominante dos hábitos morais, pode e deve ser formado, ou seja, educado para o aprendizado do bem, da verdade, da beleza. Por sua vez, o temperamento é o conjunto de tendências que radicam no corpo, ao modo de predisposições naturais. A clássica teoria dos temperamentos de Hipócrates ainda tem muito a dizer a diferentes ramos da psicologia moderna — tal o realismo de suas finas observações. Ainda hoje, a um bom observador não é difícil entrever a irritabilidade e a impulsividade típicas dos homens sangüíneos; identificar as reações explosivas e repentinas dos coléricos; perceber a habitual apatia de muitos fleumáticos; e constatar a introspectiva excitação nervosa dos melancólicos.
Não se trata propriamente de emoções, no sentido moderno do termo, mas do substrato orgânico das emoções. Em síntese, o temperamento são as inclinações afetivas que predominam num sujeito — pertencentes, portanto, à instância sensitiva. Em vocabulário metafísico, podemos dizer o temperamento participa da sensibilidade; e o caráter participa da razão. Por isso, somente uma boa formação do caráter é capaz de fazer um sujeito vencer as inclinações radicadas em seu corpo que, se exacerbadas, podem transformar-se em vícios para lá de daninhos.
A educação da alma, sabemos desde Platão, passa pela estrita atenção do pedagogo ao temperamento do discípulo. É a partir desta identificação do feitio da têmpera que o mestre sem pruridos propõe privadamente práticas preventivas — com perdão da quíntupla aliteração —, no sentido de se evitarem os extremos indesejáveis. Ao fogoso aconselha o exercício da meditação; ao apático, atividades físicas que literalmente o acendam; ao irado, receita leituras espirituais; ao triste, banho frio e audição de boa música alegre, como por exemplo Vivaldi. A pedagogia dos séculos XIX e XX perdeu completamente esta noção elementar que abarca as relações entre temperamento e caráter.
Uma inteligência bem formada é a que resolveu satisfatoriamente a dicotomia temperamento/caráter. Noutras palavras: ela implica a vitória do caráter sobre eventuais inclinações más do temperamento. Tal vitória, diga-se, é consignada não pelo esmagamento das tendências naturais que radicam no corpo — entre as quais citemos a configuração hormonal predominante —, mas pelo aproveitamento eficaz delas, na medida em que a vida exige, em variadas ocasiões, a manifestação de aspectos distintivos de cada um dos temperamentos. Quando Cristo pôs para correr os vendilhões do Templo, não o fez com açúcar na boca nem nas mãos. As glândulas supra-renais de Nosso Senhor certamente fizeram-lhe subir a adrenalina, com o conseqüente aumento da tensão arterial provocado nas ocasiões de manifesta ira justa.
Se a formação da inteligência passa, entre várias outras coisas, pelos fatores anímicos acima arrolados, somos levados a concluir em favor da existência dum temperamento filosófico. Este se caracterizaria pela consolidação do hábito de (em sentido literal, estrito) temperar os afetos de acordo com a plasticidade da inteligência, de modo a não prejudicar a tendência natural do intelecto às formas inteligíveis. Como o filósofo — pelo menos o bom filósofo — necessita desenvolver em padrão elevadíssimo a capacidade de análise e síntese, na prática ele precisa estar muito bem treinado para acolher as objeções que se lhe fazem de maneira análoga à de um boxeador que suporta os socos do adversário e se mantém de pé.
Se o candidato a filósofo não é capaz de nem mesmo ouvir objeções razoáveis aos seus argumentos, saibamos que estamos diante duma pessoa que não possui temperamento filosófico — por mais cultura filosófica que possua. Em poucas palavras, trata-se de alguém cujo caráter ainda não está suficientemente moldado para vencer as inclinações desfavoráveis radicadas no corpo: irrita-se desproporcionalmente se uma pessoa o contraria; critica os objetores movido por impulsos irracionais; agita-se como se, a qualquer ressalva ao seu pensamento, estivesse diante de um inimigo mortal; atribui ao adversário intenções que jamais poderá comprovar, etc.
Alguém como Kant, por exemplo.
Muitas vezes, são homens talentosos que, por falhas de caráter alimentadas por seus maus bofes, deixam de realizar plenamente a sua vocação, por pura e simples falta de temperamento filosófico.

domingo, 8 de junho de 2014

A impermeabilidade do Amor — ou “por que sou católico”


Sidney Silveira
Ao frisar que o amor é o ato perfeito e supremo da vontade, aponto para a liberdade das ações amorosas, pois ninguém é, nem pode ser, coagido a amar. Da mesma maneira, nenhuma pessoa deixa de amar sob ameaça — ainda que submetida a lancinantes torturas psicológicas, ou mesmo físicas. Se um hipotético sujeito encostasse o cano frio duma pistola 9mm nas têmporas de outro e dissesse “Deixa de amar a tua mãe agora, ou eu te mato!”, nem assim teria o condão de fazer valer o fortíssimo argumento da arma de fogo, pois o amor é realidade impermeável a tiranias de qualquer tipo. A total intangibilidade do amor assegura-lhe a liberdade, à qual podemos atribuir o caráter de infinitude fazendo uso do grandioso instrumento metafísico da analogia entis. Em breves palavras, o amor é a vontade no exercício translúcido e pleno de sua mais absoluta impenetrabilidade.
Se o amor se transforma em hábito, podemos dizer que a liberdade humana realizou-se superiormente. Mas ninguém chega a tal ápice sem vencer obstáculos inescapáveis, como por exemplo tentações, fraquezas, ignorância. A famosa e bela máxima de Plutarco segundo a qual “nem Deus pode dar nem o homem pode receber nada mais excelente que a verdade” vale ainda mais para o amor, pois este não é outra coisa senão a verdade em ato assimilada pela inteligência e querida pela vontade. Em suma, no amor dá-se a comunhão destas duas potências superiores da alma na escolha efetiva do bem. Por isso, as ações humanas ou se orientam a abarcar os transcendentais verum e bonum, ou se degradam progressivamente. Porque sem verdade e sem bondade o amor se transforma na mais cabal das impossibilidades, cedo ou tarde.
Se o universo das relações afetivas de uma pessoa não possui o vetor amoroso, logo ela cai na degradação moral da inconstância, da tibieza, da falsidade. Ao contrário, quem ama acaba por se tornar constante, forte e veraz. O “sim” e o “não” do verdadeiro amante não obedecem a condicionamentos acidentais, ao contrário do “sim” e do “não” de homens que se colocaram culpavelmente em situação de desamor. Estes agem de acordo com momentâneas conveniências, razão pela qual não são confiáveis em hipótese nenhuma. Na realidade, eles pioraram por não amar, e jamais poderão culpar a quem quer que seja por isto. Não há desculpas nem justificativas para a simulação de auto-indulgência que culmina em maldade.
No sentido sublime aqui aludido, nenhum homem é capaz de, sem o auxílio divino, amar. E tal auxílio não vem de outro modelo senão do próprio Verbo Encarnado — que nos revelou de maneira cristalina e objetiva o caminho, a verdade, a vida. Quando penso, pois, por que sou católico, penso nisto: o amor em estado puro dá-Se a mim por completo, sem que eu mereça. Faz-Se humildemente tangível para elevar-me a uma condição superior, intangível. A Sua entrega benevolente não conhece condicionamentos. Ela não é mérito meu, nem apetite d’Ele. É libérrima e eficacíssima.
Jamais conseguirei, nesta vida ou na outra, fazer jus ao amor perfeito de que sou objeto. Amor que honra o desonrado e dignifica o indigno. Que perdoa o imperdoável e eleva o vil. Amor absolutamente impermeável a todos os seus possíveis contrários. E por isso mesmo eterno.
Até nas ocasiões em que, ritualmente, desce ao tempo na forma de hóstia viva e se faz Presença Real, fonte infinita de bens. 

terça-feira, 3 de junho de 2014

O alcance das leis más

Ao desembargador Ricardo Dip
Sidney Silveira
Desde Aristóteles, sabemos que a lei é um dos princípios extrínsecos da vida moral do homem. Sua pedagogia não é outra senão orientar a coletividade ao bem comum, esteio da paz social, e fazê-la minimamente discernir o seu valor. Mas, para tanto, a lei precisa ser boa em essência, ou seja: deve tratar-se duma regra da razão prática que ordena as ações humanas ao bem. Ora, qualquer regra genuína necessita de um princípio que sirva de medida para o universo das coisas de que trata — assim como, de maneira análoga, a unidade é princípio da numeração e o primeiro movimento é princípio dos que se lhe seguem. No caso do homem, tal medida reitora do bem chama-se, em sentido lato, "razão".
Vamos a um exemplo extraído duma prosaica situação em que a norma legislativa acaba por induzir ações moralmente más. Certa vez, andava eu de metrô aqui no Rio, coisa que não fazia há tempos. No trajeto entre a estação onde peguei o trem e a seguinte, todos ouviram a aveludada voz duma jovem a transmitir o seguinte enunciado pelos alto-falantes:
“Os assentos de cor laranja são preferencialmente destinados a idosos, gestantes, pessoas acompanhadas de crianças com até cinco anos de idade e deficientes físicos”.[1]
De imediato, o absurdo da proposição feriu-me os ouvidos. Na verdade, se a norma — ancorada numa decisão de nossa pândega Câmara dos Vereadores — quisesse ser justa e ensinar algo, a frase deveria ser: “TODOS OS ASSENTOS são preferencialmente destinados a idosos, gestantes, etc.” Mais ou menos como acontecia no tempo em que o grau de civilidade predominante fazia as pessoas espontaneamente cederem os seus lugares a idosos e gestantes nos transportes coletivos, sem que lei nenhuma lhes apontasse o cumprimento deste dever moral. A propósito, o presente texto não se destina a demonstrar a tragédia que é o Estado se meter a este ponto nas relações interpessoais, e ademais fazê-lo deseducando as pessoas.
Naquela ocasião, logo pude aferir o resultado prático da tal norma, duas estações adiante: como os assentos de cor laranja estivessem todos ocupados por idosos, adentrou o vagão onde eu estava uma gestante — e ninguém, ninguém foi capaz de lhe ceder o lugar, pois os demais assentos, de acordo com os pressupostos da funesta lei da municipalidade carioca, não são preferencialmente destinados a estas pessoas. Estava eu de pé e cutuquei uma jovem que subitamente fingiu dormir, com o intuito de ver se a criatura cedia lugar à grávida. Mas o conveniente sono da má-criação é profundo, sobretudo quando tem a lei como maior cúmplice.
No Brasil, boçais politicamente engajados sequer conseguem entender a distinção fundamental entre lei (ditame da razão prática), direito (ars boni et aequi, a qual traz sempre consigo o pressuposto do justo natural) e justiça (virtude moral e social), porém cerram rumorosas fileiras na defesa de teses fundantes do caos contemporâneo, com apoio financeiro e político de um governo mancomunado com as elites globalistas. Não por outro motivo, multiplicam-se ao infinito os “direitos”, pulveriza-se completamente a noção de deveres, ao passo que a idéia de justiça simplesmente desaparece — no turbilhão de normas e regras que de leis, ou seja, de propriamente legislativas, guardam apenas certo invólucro semântico.
Quando Tomás de Aquino indaga, na Suma Teológica, se o efeito comum da lei é tornar os homens bons (utrum effectus legis sit facere homines bonos), a resposta afirmativa às objeções é simples e objetiva — sempre a partir do pressuposto de que uma lei tirânica, por não ser conforme a razão, não é propriamente lei, mas perversão da lei. Em síntese: é impossível que o indivíduo seja bom se não guarda certa proporção com o bem comum da cidade onde vive.
Ora, sendo o bem comum o principal fim da lei, torna-se evidente que as verdadeiras leis têm o condão de melhorar os atos humanos. De que maneira? Entre outras coisas proibindo e castigando o mal e, por conseguinte, induzindo os homens ao bem.
A nossa equidistância cósmica deste princípio elementar define o atual padrão civilizacional em que jazemos, no qual maldades de todos os tipos vão sendo prescritas nas leis positivas. 
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1- Depois o politicamente correto gerou a semanticamente monstruosa expressão “portadores de necessidades especiais”, que pode dizer tudo ou nada.