Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
A. As potências superiores da alma
Após descrever todas as nossas potências sensitivas — externas e internas —, vamos dar um passo decisivo na psicologia e na gnosiologia tomistas (já que uma implica a outra) e abordar as potências superiores da psique humana, segundo o Aquinate.
A primeira observação a fazer (partindo da premissa, já destacada aqui, de que todas as potências sensitivas estão a serviço das potências intelectivas) é que o intelecto não se subordina às necessidades biológicas. Em segundo lugar, as operações do intelecto representam o grau mais elevado da ação vital humana, pois a vida humana em sua plenitude implica necessariamente a intelecção. Sendo assim, o nosso entender não pode reduzir-se a uma mera adaptação ao ambiente, nem a uma simples ação vital. E é justamente por ser capaz de conhecer a dimensão mais profunda da realidade — o caráter de ente e suas diferenças essenciais — que a ação humana transcende as necessidades vitais do organismo. E aqui lembramos que, para várias psicologias contemporâneas (de forte sabor psicanalítico), o entender é considerado uma pulsão vital, uma satisfação de necessidades congênitas. Isto é, diametralmente, o oposto da concepção de Santo Tomás, para quem o entender é um acidente imaterial de nossa potência intelectiva. Ou, noutros termos: não entendemos por necessidade vital, orgânica, mas intencionalmente. E, em terceiro lugar, destacamos que entender é um dos signos da liberdade humana (ainda voltaremos ao tema da liberdade e veremos que esta não pode fundar-se numa autodeterminação da vontade, como pensava Duns Scot. Mas isto em outro post).
Mas há limites nesse modo humano de conhecer. A começar pelo insumo do nosso pensar, que é a essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). Ora, a experiência demonstra, exaustivamente, que o conhecimento começa pelos sentidos, que captam o aspecto sensível da realidade e o gravam — na forma de imagem — em nossa potência sensitiva interna. Assim, toda vez que entendemos algo, é dessas imagens que nos servimos. Ao apreendê-las por nosso aparato sensitivo, tais imagens são inteligíveis em potência, e se tornam inteligidas em ato pela ação do chamado intelecto agente — do qual não falaremos neste texto, para não estendê-lo por demais. Deixaremos apenas registrado que, para Santo Tomás, o intelecto agente é a luz natural da mente, o princípio ativo de toda a vida do espírito. Entendemos graças a essa luz do intelecto agente, como diz o Angélico em várias passagens de seu magistral De Veritate, ao referir-se ao modo como as imagens da realidade se tornam inteligíveis para nós. Se tais imagens se apresentarem de forma confusa, a intelecção será prejudicada ou impedida.
Uma coisa é ainda importante destacar: se queremos cogitar outra possibilidade para o modo humano de conhecer, temos de propor a seguinte disjunção: ou conhecemos por abstração as coisas (como na premissa acima) ou por intuição direta de suas essências. Tertium non datur. Mas a suposição do conhecimento por intuição direta — proposta por Husserl — tem contra si as evidências já apontadas noutro texto, e a seu favor, nenhuma evidência ou experiência. Ademais, se conhecêssemos por intuição direta, não seria necessário nenhum método para provar que conhecemos por intuição direta (no caso de Husserl, o método é a chamada redução eidética). Na prática, pressupor a intuição direta da essência das coisas é igualar-nos aos anjos, literalmente, pois estes conhecem por intuição direta justamente porque vêem, num só ato, o princípio e os atributos da coisa contemplada pela inteligência, já que não têm, como nós, limitações de ordem material. Muito a propósito, Cornelio Fabro lembra-nos o seguinte, em seu Introduzione a San Tommaso – la metafisica tomista & il pensiero moderno:
1- Deus, quando pensa, cria a realidade pensada.
2- O anjo, quando pensa, intui a realidade pensada.
3- O homem, quando pensa, abstrai a realidade pensada.
4- (Acrescento): O animal irracional não pensa justamente porque está arrojado ao mundo da sensibilidade, ou seja: não transcende a imagem sensível captada por algum órgão corporal.
Em suma, de acordo com Santo Tomás, o conhecer humano não é ato de nenhuma potência corporal (cf. Suma Teológica, I, q. 85, a.1). Demos um exemplo: numa sala com 50 alunos, apenas um entendeu certo teorema de matemática pura explicado pelo professor. Todos ali têm cérebro, mas apenas um entendeu, o que mostra de início que o cérebro, embora seja uma certa causa instrumental do entender, não é a causa formal e muito menos causa final do ato do entendimento. Na mesma questão acima citada, diz Santo Tomás que conhecer é uma faculdade da alma que, por sua vez, é forma substancial de um corpo.
O desenho da ação humana em sua completude começa a fazer-se, na medida em que todas as potências da forma entis humana vão sendo descritas. Alguns textos adiante, veremos qual é o alcance da operação cognoscitiva humana, para depois mostrar que uma teoria econômica como a de Ludwig von Mises, que tem como suporte uma tão frágil psicologia — pois não foi à toa que, no seu calhamaço Human Action, o autor liberal descreveu primeiramente e de forma prolixa a sua “psicologia”, para servir de base para a sua teoria econômica —, nos subsume a um horizonte materialista altamente daninho.
Mas devagar com o andor, que o santo é (literalmente!) de barro...
(Prossegue)
A. As potências superiores da alma
Após descrever todas as nossas potências sensitivas — externas e internas —, vamos dar um passo decisivo na psicologia e na gnosiologia tomistas (já que uma implica a outra) e abordar as potências superiores da psique humana, segundo o Aquinate.
A primeira observação a fazer (partindo da premissa, já destacada aqui, de que todas as potências sensitivas estão a serviço das potências intelectivas) é que o intelecto não se subordina às necessidades biológicas. Em segundo lugar, as operações do intelecto representam o grau mais elevado da ação vital humana, pois a vida humana em sua plenitude implica necessariamente a intelecção. Sendo assim, o nosso entender não pode reduzir-se a uma mera adaptação ao ambiente, nem a uma simples ação vital. E é justamente por ser capaz de conhecer a dimensão mais profunda da realidade — o caráter de ente e suas diferenças essenciais — que a ação humana transcende as necessidades vitais do organismo. E aqui lembramos que, para várias psicologias contemporâneas (de forte sabor psicanalítico), o entender é considerado uma pulsão vital, uma satisfação de necessidades congênitas. Isto é, diametralmente, o oposto da concepção de Santo Tomás, para quem o entender é um acidente imaterial de nossa potência intelectiva. Ou, noutros termos: não entendemos por necessidade vital, orgânica, mas intencionalmente. E, em terceiro lugar, destacamos que entender é um dos signos da liberdade humana (ainda voltaremos ao tema da liberdade e veremos que esta não pode fundar-se numa autodeterminação da vontade, como pensava Duns Scot. Mas isto em outro post).
Mas há limites nesse modo humano de conhecer. A começar pelo insumo do nosso pensar, que é a essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). Ora, a experiência demonstra, exaustivamente, que o conhecimento começa pelos sentidos, que captam o aspecto sensível da realidade e o gravam — na forma de imagem — em nossa potência sensitiva interna. Assim, toda vez que entendemos algo, é dessas imagens que nos servimos. Ao apreendê-las por nosso aparato sensitivo, tais imagens são inteligíveis em potência, e se tornam inteligidas em ato pela ação do chamado intelecto agente — do qual não falaremos neste texto, para não estendê-lo por demais. Deixaremos apenas registrado que, para Santo Tomás, o intelecto agente é a luz natural da mente, o princípio ativo de toda a vida do espírito. Entendemos graças a essa luz do intelecto agente, como diz o Angélico em várias passagens de seu magistral De Veritate, ao referir-se ao modo como as imagens da realidade se tornam inteligíveis para nós. Se tais imagens se apresentarem de forma confusa, a intelecção será prejudicada ou impedida.
Uma coisa é ainda importante destacar: se queremos cogitar outra possibilidade para o modo humano de conhecer, temos de propor a seguinte disjunção: ou conhecemos por abstração as coisas (como na premissa acima) ou por intuição direta de suas essências. Tertium non datur. Mas a suposição do conhecimento por intuição direta — proposta por Husserl — tem contra si as evidências já apontadas noutro texto, e a seu favor, nenhuma evidência ou experiência. Ademais, se conhecêssemos por intuição direta, não seria necessário nenhum método para provar que conhecemos por intuição direta (no caso de Husserl, o método é a chamada redução eidética). Na prática, pressupor a intuição direta da essência das coisas é igualar-nos aos anjos, literalmente, pois estes conhecem por intuição direta justamente porque vêem, num só ato, o princípio e os atributos da coisa contemplada pela inteligência, já que não têm, como nós, limitações de ordem material. Muito a propósito, Cornelio Fabro lembra-nos o seguinte, em seu Introduzione a San Tommaso – la metafisica tomista & il pensiero moderno:
1- Deus, quando pensa, cria a realidade pensada.
2- O anjo, quando pensa, intui a realidade pensada.
3- O homem, quando pensa, abstrai a realidade pensada.
4- (Acrescento): O animal irracional não pensa justamente porque está arrojado ao mundo da sensibilidade, ou seja: não transcende a imagem sensível captada por algum órgão corporal.
Em suma, de acordo com Santo Tomás, o conhecer humano não é ato de nenhuma potência corporal (cf. Suma Teológica, I, q. 85, a.1). Demos um exemplo: numa sala com 50 alunos, apenas um entendeu certo teorema de matemática pura explicado pelo professor. Todos ali têm cérebro, mas apenas um entendeu, o que mostra de início que o cérebro, embora seja uma certa causa instrumental do entender, não é a causa formal e muito menos causa final do ato do entendimento. Na mesma questão acima citada, diz Santo Tomás que conhecer é uma faculdade da alma que, por sua vez, é forma substancial de um corpo.
O desenho da ação humana em sua completude começa a fazer-se, na medida em que todas as potências da forma entis humana vão sendo descritas. Alguns textos adiante, veremos qual é o alcance da operação cognoscitiva humana, para depois mostrar que uma teoria econômica como a de Ludwig von Mises, que tem como suporte uma tão frágil psicologia — pois não foi à toa que, no seu calhamaço Human Action, o autor liberal descreveu primeiramente e de forma prolixa a sua “psicologia”, para servir de base para a sua teoria econômica —, nos subsume a um horizonte materialista altamente daninho.
Mas devagar com o andor, que o santo é (literalmente!) de barro...
(Prossegue)