O resgate do conceito de ato de ser em Santo Tomás, pelo padre e filósofo italiano Cornelio Fabro, pôs fim a várias imprecisões terminológicas encontráveis mesmo na obra de alguns dos melhores pensadores do movimento neotomista do século XX — como entre as noções de “ser” e “ente”, por exemplo. Imprecisões essas que transcendiam à mera questão dos termos implicados, na medida em que chegavam aos conceitos a que se referiam os termos, o que deu margem a erros de interpretação da obra do Aquinate.
É justamente o actus essendi o que faz da metafísica de Tomás de Aquino não apenas uma metafísica do “ente enquanto ente”, mas propriamente uma metafísica do ser. Ou, noutra formulação: uma metafísica dos graus intensivos de participação no ser, como bem frisou o professor Jorge Martínez Barrera, quando da apresentação do seu livro A Política em Aristóteles e Tomás de Aquino no Brasil, lembrando-nos, na ocasião, que isto “escapou” a Heidegger, em sua crítica à metafísica ocidental. E acrescento eu: “escapou”, certamente, pela leitura superficial da obra de Santo Tomás feita pelo autor alemão, o que se pode vislumbrar nas referências ao Aquinate feitas em Ser e Tempo e alhures.*
Com o conceito de actus essendi, o Angélico faz uma síntese única, na história da filosofia, entre a metafísica aristotélica da potência e do ato e a teoria platônica da participação — corrigindo as aporias de um e de outro: em Aristóteles, a coexistência do Primeiro Motor Imóvel e da matéria prima incriada; em Platão, a cisão entre as formas puras e as essências participadas (metexis). Com esse conceito Santo Tomás nos mostra que, em relação ao ser, tudo o mais está em potência, pois o ser é o mais radical dos atos: o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições. Quanto mais um ente possuir de ato e menos de potência, maior será a sua dignidade na ordem do ser. Esse arco metafísico vai da matéria prima ao Ato Puro, este a quem, normalmente, todos entendem por "Deus" (et hoc omnes intelligunt Deum, como diz Santo Tomás numa linda passagem da Suma).
A idéia heideggeriana de que a metafísica ocidental, desde os pré-socráticos, “esqueceu-se do ser” e só abordou o ente, embora se aplique a boa parte dos filósofos, não se aplica a Santo Tomás. Quem o diz não sou eu, mas Johannes B. Lotz, discípulo de Heidegger que escreveu um belo trabalho sobre o ser em Heidegger e Tomás de Aquino. É essa pequena história que eu conto em mais um pequeno vídeo disponibilizado em nosso blog — na verdade, o trecho de uma aula ministrada num curso sobre metafísica tomista, ano passado.
* Falando de Heidegger, ocorreu-me agora uma passagem interessante de sua biografia, que vale a pena citar, pois muitos não a conhecem: nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (durante os escassos dois meses em que esteve no front, pois foi dispensado por “problemas de saúde” de cuja natureza os seus principais biógrafos não nos informam), o filósofo alemão foi chamado a atenção por um companheiro, por estar lendo em meio às escaramuças. Lendo o quê? A Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.
Palmas para ele!!!