Sidney Silveira
No seu extraordinário Tratado do Amor de Deus, o grande São Francisco de Sales — notável escritor e ainda mais notável Santo — nos diz que há dois principais exercícios em nosso amor para com Deus. Um afetivo, e outro efetivo, ou, como diz São Bernardo, ativo. “Por aquele, amamos a Deus e o que Ele ama; por este servimos a Deus e fazemos o que Ele ordena. Aquele nos une à bondade de Deus; este faz-nos executar as Suas vontades. Um enche-nos de complacência, de benevolência, de transportes, de desejos, de suspiros e de ardores espirituais; outro infunde em nós uma sólida resolução, a firmeza da coragem e a inviolável obediência requerida para efetuar as ordens da vontade de Deus, e para sofrer, aceitar, aprovar e abraçar tudo o que provém ao Seu beneplácito. Um faz-nos comprazer em Deus; o outro faz-nos aprazer a Deus. Por um concebemos a Deus em nosso coração; pelo outro produzimos as obras desta concepção”.
Um desses dois exercícios se realiza pela oração, na qual, segundo São Francisco de Sales, nos passam tantos movimentos interiores, que é impossível exprimi-los a todos — não apenas por sua quantidade, mas sobretudo por sua qualidade. E é isso mesmo, pois, como se disse no texto anterior, quanta diferença há entre os movimentos imateriais de um estado contemplativo (ato da nossa potência mais elevada), e outros movimentos meramente locais, físicos ou orgânicos, aos quais muitos quiseram reduzir o homem! Nossa vontade, sendo imaterial, está ordenada a querer algo semelhante a ela: o imaterial bem da divina perfeição, em relação ao qual tudo o que tem composição de matéria deve ser querido como meio, e não como fim. Seja a ingestão de alimentos, seja a audição de boa uma música, ou ainda a prática de exercícios físicos ou o pagamento do débito conjugal, enfim, todas essas coisas queridas não podem fazer a vontade repousar de todo, o que só acontecerá quando ela deparar-se com o bem imaterial que mais se assemelha a ela — na visão beatífica da Essência divina. Por essa razão essas coisas devem ser queridas e adquiridas com intenção sobrenatural, como diz Adolphe Tanquerey em seu clássico Précis de Théologie Ascétique et Mysthique, agora editado em português com o nome (explicado, mas não de todo justificado) de A Vida Espiritual Explicada e Comentada, livro na verdade indispensável para a formação de sacerdotes e utilíssimo para a dos leigos.
Se confiarmos apenas em nós mesmos, nos atos específicos das nossas consciências individuais (que, como já se mostrou aqui, não são uma superestrutura da alma), jamais chegaremos sequer à infância espiritual, pois estaremos arrojados no mundo das nossas próprias convicções, incapacitados para sobrenaturalizar os nossos atos. A propósito, ainda falaremos muito da noção de sobrenatural em Santo Tomás.
Se confiarmos apenas em nós mesmos, cairemos no desespero com qualquer sofrimento que o mundo nos faça passar (às vezes, por meio das pessoas que mais amamos, pois, como diz São Pio de Pieltrecina, o verdadeiro sofrimento é o que nos causam as pessoas que amamos). Assim, não veremos nesse mal — real —, nessa dor, um veículo conducente ao bem infinitamente maior, que é Deus mesmo.
Se confiarmos apenas em nós mesmos, na nossa cultura, nos nossos supostos bens pessoais, acabaremos na situação daquele insatisfeito profissional, que não se contenta em estar contente. Peçamos, pois, a Deus a graça de sairmos de nós mesmos, do limitado horizonte que as nossas consciências individuais vislumbram, por um “sim” semelhante ao de Maria ao Anjo da Anunciação. Um “sim” sobrenatural porque infuso, o "sim" do "faça-se a Vossa vontade", e não a minha.