sexta-feira, 13 de junho de 2008

A liberdade humana e os atos livres dos homens

Sidney Silveira
Um princípio metafísico válido sem nenhuma exceção para todas as realidades — sejam materiais ou imateriais — nos servirá para lançar luzes sobre o que seja a liberdade humana. É o seguinte: nenhum ente pode ser causado pelo seu próprio operar. Apliquemos o axioma: um estômago, por exemplo, não pode ser causado pela digestão; um olho não pode ser causado pelo ato de ver; uma perna não pode ser causada pelo próprio caminhar. Tudo isso seria um grandíssimo absurdo. Deixaremos de lado, por ora, as sofismáticas, aporéticas e não raro sedutoras tentativas de desqualificar o princípio de causalidade, como por exemplo a do pobre David Hume (o que faremos em outro “post”). No momento, apliquemos essa norma à liberdade humana, para chegarmos à necessária conclusão de que a liberdade não pode ser causada pelos atos livres dos homens, da mesma forma que a percepção táctil não é a causa da mão que tateia. Em suma, não somos livres porque escolhemos, mas escolhemos porque somos livres. Um corolário óbvio desta premissa é que a consciência individual, por meio da qual uma pessoa faz as suas escolhas, não pode ser a raiz da liberdade, mas apenas a instância pela qual a liberdade exerce o seu ato formal próprio: a escolha.

Sendo assim, quando liberais de colorações as mais díspares defendem que a consciência
individual é a sede da liberdade, estão contrariando um princípio metafísico elementar, que não passaria despercebido a um estudante do período escolástico: nenhum ente é causado pelo seu próprio operar, porque, neste caso, tal ente seria a causa de si mesmo, o que é absurdo. Portanto, a liberdade — sendo uma potência cogniscitivo-volitiva — não escapa à norma: ela não pode ser causada pelas suas operações, que são as escolhas.

Não é o ato de escolher o que nos faz ser livres. Há uma instância anterior e propiciante do ato de escolha, já que esta se dá apenas secundum electionem voluntatis, de acordo com Santo Tomás. Essa instância é a vontade mesma, definida pelo Angélico como o apetite intelectivo do bem. É isto o que nos propicia escolher — razão pela qual os animais irracionais não são capazes de escolha, a não ser que, com relação aos animais, apliquemos o conceito de “escolha” com analogia de atribuição — a qual se dá quando a forma significada pelo nome análogo se encontra em diferentes sujeitos: num analogado primário de forma perfeita e principal, e em analogados secundários de forma imperfeita e derivada. Ora, o leão não escolhe comer ou não a zebra, pois não é dotado de apetite intelectivo do bem (ou seja, de vontade, a qual só pode ser dita do leão por analogia), mas somente de apetências sensitivas que o impelem a agir sempre da mesma forma, em resposta ao que os dados sensíveis lhe apresentam. Por isso, ele está arrojado no mundo da sensibilidade, onde não há ética, moral nem a recta ratio da lei.

Infelizmente, os liberais “pularam” essa aula de metafísica. E, com eles, grandíssima parte do mundo contemporâneo — idólatra da consciência individual e da “liberdade” de escolha, ainda que se trate de escolha dos erros mais diabólicos.