quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O perdão dos cínicos: inviabilidade psíquica



Sidney Silveira

Ninguém mente sem querer. Isto porque a mentira é uma espécie de dissonância voluntária entre as palavras e os conceitos da mente, movimento contrário à natureza da inteligência, a qual tende à verdade como a seu fim próprio — razão por que o sentido de unidade psíquica do mentiroso vai fragmentando-se aos poucos, e nos casos mais aflitivos ele pode vir a perder a bússola cognitiva pela qual vislumbra, aquilata, diferencia o bem do mal nos atos humanos. Primeiramente, nos seus próprios; depois, a deformidade acaba por atarantá-lo a ponto de ele perder o discernimento dos matizes nas ações das outras pessoas. O último degrau desta queda é a homogeneização anômala de todos os valores, estágio em que o homem se torna incapaz de sinceridade para consigo mesmo.

O drama maior destes nebulosos meandros consiste no seguinte: o hábito esterilizador da mentira acaba por transformar a insinceridade em camada moral. Tem-se aqui o signo maior de que o caráter se deteriorou ao nível da incredulidade sonsa, feita de negações convenientes por cujo intermédio uma pessoa acaba por autojustificar-se para poder mentir sem culpa. Afinal, neste universo onírico de engano, de dolo, a bondade sequer desponta no horizonte como possibilidade efetiva, e portanto o relativismo moral apresenta-se à consciência lastimavelmente obliterada como única opção. "Todos agem assim, por que não eu?", raciocina o homem caído neste abismo.

Pela mentira transformada em vício, um homem torna-se inviável não apenas para os outros, mas sobretudo para si. Fecha-se a um conjunto de bens absolutamente necessários ao dinamismo psicológico ao qual costumamos chamar "sanidade". Esta verifica-se nas pessoas que se relacionam com as outras, consigo mesmas e com o mundo de maneira a não fazerem de suas vontades uma espécie de instância inegociável. De ponto fora de discussão do qual não aceitam abrir mão em hipótese nenhuma. Com tal sestro, de mentirosas ou autoenganadas para satisfazer quereres medíocres, fazem-se egoístas em superlativo grau. Sacralizam a própria vontade e profanam a inteligência.

A propósito, o mentiroso mantém-se numa situação de entorpecimento das faculdades intelectuais. Esta sua deliqüescência do espírito aproxima-o perigosamente das monomanias, dos delírios persecutórios, das paranóias e de outros estados de vigilância enfermiça, hipertrofiada, na medida em que a mentira praticada habitualmente tende a levar quem nela cai a tecer tramas cujas explicações acabam transformando-se em teias inarredáveis. Não erraria quem dissesse que a mentira é prima-irmã do pânico.

Do pânico de ser descoberta. 

É claro que, como ensinara Santo Agostinho nas magnas obras "De Mendacio" e "Contra Mendacium", nem toda mentira tem o mesmo peso e nem toda leva aos mesmos agônicos estados de espírito. No entanto, da mais insignificante mentira em matéria leve à mais dolosa em matéria grave, nenhuma pode ser nobilitada, justificada ou posta num patamar moralmente neutro, pois, até quando se trata de autodefesa ou da defesa de outrem, quem mente deve ter em vista que há omissões lícitas da verdade pelas quais é possível sair de situações as mais difíceis. É o que teologia moral chama de "restrição mental lata", quando uma pessoa sai com evasivas para não dizer uma verdade que não está obrigada a trazer à baila.

Como só existe perdão no horizonte noético da verdade, o mentiroso coloca-se à margem da possibilidade de perdoar e de ser perdoado. O perdão é, para ele, ou uma piada de mau gosto ou outra mentira conveniente, entre tantas. Ora, como perdão e arrependimento andam de mãos dadas, o mentiroso no melhor dos casos cai no remorso, por meio do qual busca fugir dos efeitos de suas más ações, sem nunca ir à causa delas para sanar o mal na raiz. Judas Iscariotes, por remorso, devolveu as trinta moedas com que vendeu Cristo: se se arrependesse, cairia prostrado aos pés do Mestre implorando perdão. 

De todos os malefícios que uma vida de mentiras pode trazer a uma pessoa, talvez este fechamento ao perdão seja o que há de pior, pois representa a mais completa perda do senso de proporções. E tudo por causa do cinismo no qual se engolfa o mentiroso. Neste contexto, cumpre frisar que os cínicos não perdoam não porque não queiram, mas porque não sabem. E mais: colocaram-se em situação psíquica de não poder saber, pois o cinismo é como uma doença auto-imune em que as defesas do organismo atacam por engano células saudáveis.

Não sabendo perdoar e estando à margem da possibilidade de ser perdoado — devido à corrosão espiritual que inviabiliza o arrependimento —, o cínico depravou tanto as potências superiores de sua alma que provavelmente só um milagre poderá curá-lo.  

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Curso "Manifesto das Sombras", novamente disponível


Sidney Silveira

BREVE ENSAIO DE TEOLOGIA DA HISTÓRIA

A PEDIDO DE ALUNOS E AMIGOS, o curso "Manifesto da Sombras", que fora ministrado em 2013, está de volta — desta vez, no site do Instituto Angelicum.

Quem quiser JÁ PODE INSCREVER-SE diretamente no link abaixo:


O curso também está sendo disponibilizado como uma das opções de cotas para o magnífico projeto da editora Concreta — do audaz empreendedor Renan Martins Dos Santos — de editar o "Comentário à Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses", profundo trabalho exegético de Santo Tomás de Aquino.

Em:

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

No forno, o "Comentário à Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses", de Santo Tomás de Aquino

Os cavaleiros do Apocalipse, Gustave Doré

Sidney Silveira

Final dos tempos: necessidade metafísica contemplada pela teologia sagrada

Ter fé não é a mesma coisa que estar na fé. A distinção é simples: ter fé é simplesmente crer, e estar na fé é crer na Sagrada Escritura, assim como em seu intérprete espiritual abalizado, o Magistério da Igreja. No primeiro caso, de acordo com Santo Tomás de Aquino, trata-se do ato próprio da fé; no segundo, do objeto material da fé, que não é outro senão a Revelação. O católico não apenas tem fé, mas precisa estar na fé.

Tudo isso levando-se em conta que a fé, por não ser passível de demonstrações racionais, é dádiva de Deus à qual a tradição teológica chamou virtude teologal infusa – força que vem do Alto e se torna habitual na mente de quem crê. Assim, se o fiel crê na Virgindade Perpétua de Maria, não o faz porque descobriu tal verdade por meio de inquirições quaisquer, mas porque a recebeu como selo espiritual indelével que leva a razão prática a anuir, a lhe dizer “sim”.

Quem está na fé crê, portanto, que haverá o momento derradeiro do mundo, após o qual as coisas não serão como hoje as conhecemos. Crê que haverá o momento derradeiro do devir histórico, amálgama das vicissitudes humanas no decorrer do tempo. Crê que surgirá o homem ímpio, o Anticristo, após uma apostasia da fé como nunca até então se viu, na Igreja e no mundo. Crê que Cristo virá novamente, desta vez não como cordeiro a ser imolado, mas em glória e poder. Crê, por fim, no Juízo Final, que destinará individualmente as pessoas ou à pena eterna ou à visão beatífica da essência divina: reprovação ou salvação.

Estamos no âmbito do mistério, e é justamente aqui que se insere o Comentário à Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses de Tomás de Aquino. Nele, o Aquinate põe a lupa num dos mais terríveis textos da Escritura, em que São Paulo escreve acerca do final dos tempos. Em síntese, com a habitual argúcia teológica, com a habitual capacidade dedutiva, com a habitual clareza expositiva frei Tomás mostra que o Anticristo, quando vier, será recebido por muitos na própria Igreja.

Embora trate de questões teológicas, este precioso comentário à Sagrada Escritura tem como objeto um acontecimento que também pode ser vislumbrado pela razão natural, a saber: a impossibilidade de que o tempo não termine, caudatária do fato – demonstrável pela razão – de que não se pode remontar ao infinito nas causas essencialmente ordenadas, e portanto o tempo, que teve um começo, devido à sua natureza de “contagem do movimento”, não pode ser eterno.

Quem apoiar o projeto e adquirir esta obra inédita em português, saiba que terá em mãos um tesouro espiritual de grande valia, nestes tempos de inegável confusão espiritual e política por que o mundo passa. Saiba que terá em mãos um dos notáveis comentários bíblicos de Santo Tomás de Aquino – os quais muitas vezes são deixados de lado inclusive por estudiosos dos seus escritos.

PARTICIPE do projeto! 

Para fazê-lo, acesse o link abaixo: