sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O que é a história (I)

Carlos Nougué
Nosso primeiro olhar para a história nos deixa um sabor de indistinção: será ela uma mera coleção de fatos variados, dispersos no tempo e espargidos no espaço? As memórias particulares e as crônicas coletivas têm por certo a sua função, e função insubstituível: fornecer o material a partir do qual podemos elevar o olhar para as causas. Sucede, todavia, que se pode fugir do empirismo por duas vias, uma falsa, a outra verdadeira.

No primeiro caso, em vez de se entregar à sua tarefa como o fizeram os Evangelistas, ou seja, elevando o olhar dos fatos ou eventos para a única Causa que efetiva e derradeiramente os pode explicar, o historiador se entregará ao orgulho de criar sistemas utópicos ou quiméricos, antinaturais e antidivinos. Não que se negue aqui a importância e o valor intrínseco do estudo sistemático da história, o qual, no entanto, não pode dar nascimento a sistemas absolutos de caráter naturalista ou meramente humano. Schelling, Cousin, Thierry, Guizot, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Hegel, Comte, Marx e Engels viram a fonte e o motor da história ou no deus progresso ou no deus Estado, ou num Espírito imanente ou num infinito finito, ou na luta de raças ou na luta de classes — é a história romanceada, ou caricaturada. É a história vista do ângulo dos interesses humanos mais vis ou das seitas mais virulentas, e cujas máscaras ocultam os sonhos mais tresloucados e as ambições mais inconfessáveis.

No segundo caso, tem-se a sã vinculação e submissão dos eventos históricos aos princípios do plano divino e às regras do governo da Providência: abre-se, então, um vastíssimo panorama. Ainda assim, porém, deve-se ter o cuidado de não tentar explicar em história tudo, todos os eventos da humanidade: tem a história, como veremos em outra série, os seus muitos mistérios, as suas obscuridades insondáveis, e temos de considerá-los pressupostos. Como explicar os eventos passados sem a discrição de considerá-los imbricados indissoluvelmente com os segredos mais escondidos da alma humana e, sobretudo, da Vontade divina? Além disso, como é difícil, se não impossível, distinguir a parte que cabe ao individual e a parte que cabe ao coletivo nos eventos nacionais e internacionais! É por isso que já se pôde dizer, brilhantemente: “A história escrita por um homem não é senão o julgamento de Deus em primeira instância”, ou, mais diretamente: “A história do mundo só será conhecida pelo julgamento de Deus” (Staudenmaier).

Mas reconhecer a existência das faces misteriosas da história não deve de modo algum levar-nos a negar-lhe bases sólidas e certas, princípios estáveis e definíveis, tendências principais e razoáveis. São muitas também as suas luzes, e pode o homem compreendê-la, se não como o pode Deus, ou seja, pelo âmago mesmo do seu princípio, motor e fim, ao menos em termos suficientes. Fórmula absoluta, com efeito, nunca a encontraremos para a história; munidos porém da razão fecundada pela fé, podemos defini-la de modo verdadeiro. Façamo-lo por aproximações sucessivas.

Será a história um mero seguir-se de impérios e dinastias, batalhas e conflagrações, reis e capitães, partidos e federações, seja no plano das nações, seja no do planeta inteiro? Já vimos que não, ao rejeitar a miséria do empirismo. E pela mesma razão tampouco será ela o mero desdobrar-se do direito e das instituições políticas ou das artes e das ciências, nem, muito menos, o da indústria e do comércio. No entanto, ela não deixa de abarcar, como globalidade, aquele seguir-se e este desdobrar-se: a história é, nesta primeira aproximação, o quadro da marcha do gênero humano através dos séculos. Dito de outro modo, os diversos movimentos da humanidade — o jurídico, o político, o artístico, o científico, o militar, o econômico — são como que coordenados, ordenados, capitaneados pelo movimento geral, movimento este que não é senão o movimento que vai de um princípio motor para um fim ou termo designado ou planejado. Ou isto, ou se estaria diante do absurdo. Com efeito, se assim não fosse, seria preciso comparar a Terra e os homens que a habitam a um campo onde animais lutam pelo alimento escasso, e onde corujas chirriam no meio da noite entre o nada e a morte.

Não se trata, pois, insistamos, de desconhecer a importância da história política e militar, da história do direito, das ciências ou das artes. O que dizemos é que todas essas histórias dependem, principalmente, da sua relação com a história fundamental da humanidade: a história da sua origem, da sua natureza, do seu destino, e, como já se disse, “do movimento coletivo do mundo moral para o seu fim último”. Essa é a única história verdadeiramente geral, a única que estabelece um laço ou vínculo entre os povos de todos os tempos. Mas como a história que se indica por este laço ou vínculo pode chamar-se geral ou universal? Ela não é uma mera adição de eventos particulares, assim como a mera agregação dos mapas nacionais não constitui o mapa-múndi. Mas esse grande laço que faz perceber o conjunto do mundo moral não une os povos entre si senão com a condição de vinculá-los a um mesmo princípio e a um mesmo fim. Ora, o que religa o mundo ao seu princípio e ao seu fim chama-se religião, “e aí está por que”, como diz Dechamps, “a história religiosa é necessariamente a alma e a unidade viva da história do mundo”.

Em suma, a história religiosa é a alma da história geral porque só ela descreve o arco que vai do seu princípio ao seu fim, e porque só ela, no desenho deste arco e num mesmo movimento global, é capaz de impelir indissociavelmente todos os movimentos parciais do gênero humano em todos os tempos e em todos os espaços. E, ao fazê-lo, influi tão decisivamente sobre eles, determina-lhes tão absolutamente o resultado, que é o grau mesmo em que as diversas sociedades e civilizações resistem a seu impulso ou o aceitam o que as caracteriza essencialmente. Não poderia ser de outro modo: este laço geral é propriamente divino, e a história só é uma marcha global na medida em que é a história do gênero humano sob o governo de Deus.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Liberalismo e maçonaria

Sidney Silveira
No hoje distante ano de 1956, a editora Vozes apresentava ao público brasileiro o livro A Maçonaria no Brasil – orientação para os católicos, de autoria de D. Boaventura Kloppenburg, obra ricamente documentada. Nele são mostrados com meridiana clareza todos os mais importantes fundamentos do Syllabus maçônico, a partir das instruções das principais “lojas” brasileiras e do resultado de encontros como, por exemplo, a Conferência Interamericana da Maçonaria Simbólica, realizada em Montevidéu, em 1947 — entre vários outros documentos. Kloppenburg desce a detalhes e deslinda-nos o materialismo em ciência, o ecumenismo/igualitarismo em religião, o relativismo em moral, a recusa das verdades da metafísica e da fé e, em suma, o liberalismo que abarca todas essas e muitas outras idéias presentes nessas máximas maçônicas. Vejamos agora alguns destes princípios, na formulação de seus próprios artífices:

“A maçonaria não reconhece outras verdades além das fundadas na razão e na ciência, servindo-se somente dos resultados obtidos pela ciência”.

“A tolerância é sua lei fundamental. [A maçonaria] solenemente inscreveu no preâmbulo de sua Constituição Geral [a de Anderson, válida então para a maçonaria brasileira] o respeito a todas as crenças, a todas as idéias, a todas as opiniões (...). [Por isso] não impõe aos seus adeptos nenhum dogma”.

“Não procura a maçonaria as origens das idéias do dever, do bem, do mal e da justiça nem em pretensas revelações divinas nem em concepções da metafísica”.

“Cada cidadão possui o sagrado, inviolável e imprescritível direito de cultuar a Deus e praticar a religião de modo como ele mesmo bem entender, sem nenhuma interferência ou influência alheia. Qualquer intromissão nas idéias religiosas do cidadão é considerada violência, injustiça, tirania, ambição, fanatismo e condenável intolerância”.

“A maçonaria tem no seu programa, como uma de suas finalidades principais, defender, custe o que custar, os direitos do indivíduo e aniquilar, com uma guerra sem tréguas, toda e qualquer pretensão contrária à sua consciência”.

“A maçonaria considera-se protetora e defensora do ideal religioso do indivíduo (sic.) e da liberdade de culto, de crença, de consciência e de pensamento”.

“A maçonaria ensina, defende e propaga que a sociedade, e de modo particularíssimo o Estado, nãonão deve ter oficialmente nenhuma religião, mas deve excluir e eliminar do ambiente público tudo quanto se relacione diretamente com qualquer religião” [A propósito deste princípio, Kloppenburg nos conta que, quando o governo Vargas mandou colocar uma imagem de Cristo nos tribunais do júri, levantaram-se as lideranças maçônicas em peso para protestar em vários documentos dirigidos a todas as “lojas” brasileiras, dando orientação a ser seguida pelos maçons influentes na política. Cristo no júri “espezinhava a Constituição” no que ela tem de mais nobre: a liberdade de pensar (sic.)]

“É objetivo da maçonaria laicizar a sociedade por meio da imprensa”.

Esses textos da maçonaria falam por si. Mas continuemos o roteiro de Kloppenburg que enumera 9 teses maçônicas (algumas já citadas acima, mas agora formuladas com novas proposições), sempre a partir dos próprios textos maçônicos, ou seja, da própria comunicação exotérica dessas sociedades secretas:

1ª tese (livre pensamento): É sagrado e inviolável em todo indivíduo humano o direito de pensar livremente.

2ª tese (autonomia da razão): O homem deve dirigir seus atos e sua vida exclusivamente de acordo com o parecer da própria razão.

3ª tese (liberdade de culto): É o próprio indivíduo que deve regular suas relações com o Ser Supremo.

4ª tese (liberdade de consciência): Qualquer coação ou influência externa, seja de ordem física, seja de ordem moral, no sentido de dirigir ou orientar o pensamento ou a consciência do indivíduo, deve considerar-se como atentado contra um direito natural e sagrado (sic) e, por isso mesmo, deve ser denunciada como violência, ambição e fanatismo.

5ª tese (indiferentismo religioso): O ambiente em que vive e respira o indivíduo deve manter-se rigorosamente neutro, sem hostilizar ou favorecer a nenhuma religião determinada.

6ª tese (o Estado neutro): A sociedade, e mormente o Estado, deve manter-se oficialmente indiferente ou neutra perante qualquer religião concreta.

7ª tese (o ensino leigo): O ensino público, dado e mantido pelo Estado, deve ser absolutamente leigo ou neutro em assuntos religiosos.

8ª tese (moral independente): A moral não deve estar ligada a nenhuma crença religiosa nem fundar-se em pretensas revelações divinas.

9ª tese (a religião “natural” universal): A religião oficial e pública da humanidade deve manter-se nos limites da religião natural, indicados pelas verdades básicas, pacificamente aceitas e comuns a todas as religiões. [Alguma semelhança com a abstrusa tese da "unidade transcendente das religiões", de Frithjof Schuon?)

A maior parte dessas teses maçônicas ganhou o mundo atual, sobretudo no Ocidente. E vale dizer que todas elas se baseiam, direta ou indiretamente, na tese — insustentável, como já mostramos alhures — da autonomia da consciência individual. Mas vejamos adiante se é possível (malgrado esse erro metafísico, antropológico e gnosiológico basilar) sustentá-las racionalmente, sem exclusão de alguma verdade fundamental a que a razão humana possa chegar.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz (VII)

Carlos Nougué

ESCLARECIMENTO PRÉVIO

Antes de voltarmos a estudar o estado original do homem, é preciso mostrar o erro dos teólogos que, desde o século XIX, mas particularmente a partir de meados do século passado, pretendem negar o monogenismo, ou seja, o descenderem os homens de um único casal: Adão e Eva.

Um dos expoentes de tais teólogos foi De Lubac, que defendia o poligenismo (segundo o qual o nome “Adão”, em verdade, seria uma designação da humanidade, razão por que teria havido mais de um casal na origem do gênero humano); enquanto outros teólogos, entre os quais alguns brasileiros, sustentavam que o poligenismo, pelo menos, não contrariaria a fé. Não obstante esse esforço, porém, tanto aquela posição (a de De Lubac) como esta (a mais mitigada a que acabamos de nos referir) vão não só contra o Antigo e o Novo Testamento, mas também contra o Magistério da Igreja (para não citar a obra dos Doutores católicos, especialmente a do Doutor Comum, Santo Tomás de Aquino) – ou seja, são contrárias à fé.

Deixemos pois falar a Revelação e o Magistério.

I) “E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, e criou-o varão e fêmea. E [...] disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra” (Gênesis I, 27-28).

II) “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma [pessoa] vivente” (Gênesis II, 7).

III) “Foi ela [a Sabedoria] que guardou o primeiro homem formado por Deus, para ser o pai do gênero humano, tendo sido criado único” (Sabedoria X, 1).

IV) “E de um só [homem] [Deus] fez [sair] todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da Terra” (Atos XVII, 26).

V) “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado [original] neste mundo, e pelo pecado a morte, assim também passou a morte a todos os homens [por aquele homem] no qual todos pecaram” (Romanos V, 12).

VI) “Porque, assim como a morte [veio] por um homem, também por um homem [veio] a ressurreição dos mortos. E, assim como todos morreram em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo” (1 Coríntios XV, 21-22).

VII) “o primeiro homem, Adão, transgrediu o mandamento de Deus” (Concílio de Trento, sessão 5, cânon 1).

VIII)Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; já que não se vê claro de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles” (Pio XII, Humani generis).

P.S.: Além de tudo, o próprio bom senso repugna a tese do poligenismo. Como uma multidão de casais teria cometido o mesmo pecado original? Se disto não se trata, ou seja, se apenas um dos casais o teria cometido, como então o pecado original teria sido transmitido a toda a humanidade? A não ser que se negue a veracidade tanto do pecado original como de sua transmissão a todos os homens, e então haverá negação da fé sobre negação da fé.

Adendo do Sidney: A Humani generis de Pio XII é um documento do Magistério Ordinário Infalível. Para prová-lo, vejamos o que decretou o Concílio Vaticano I acerca da infalibilidade papal: "O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, cumprindo o seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólica que uma doutrina sobre fé e costumes deve ser sustentada pela Igreja Universal, pela assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro goza daquela infalibilidade de que o Redentor Divino quis que estivesse provista a Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes" (Vaticano I, Constituição Dogmática Pastor Aeternus).* Assim, este documento de Pio XII que proíbe aos católicos defender o poligenismo cumpre TODAS as prerrogativas da infalibilidade magisterial: quem fala é Pedro (o Papa), a todo o universo de fiéis da Igreja (por uma Encíclica), definindo que só o monogenismo pode ser católico, na medida em que o poligenismo não pode ser aceito (ou seja: definição de doutrina [com exclusão de outras] sobre fé e costumes). E aqui relembramos — como se lê no texto do link sobre autoridade apostólica, acima — que os teólogos têm um papel importante, mas subsidiário. E se contrariam o Magistério Infalível, não só não devem ser ouvidos e seguidos, mas, para o bem da comunidade dos fiéis (e em prol da salvação das almas), devem ter os seus erros refutados publicamente.

* Romanum Pontificem, cum ex cathedra loquitur, id est, cum omnium Christianorum pastoris et doctoris munere fungens pro suprema sua Apostolica auctoritate doctrinam de fide vel moribus ab universa Ecclesia tenendam definit, per assistentiam divinam ipsi in beato Petro promissam, ea infallibilitate pollere.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Idolatria ao trabalho

Sidney Silveira
Em várias passagens do Evangelho, Jesus critica a excessiva solicitude para com as coisas temporais, em particular com o trabalho, dando-nos, com a sua divina autoridade, a segura orientação de que tudo, no homem, deve estar subordinado ao que nele é espiritual — e o seu espírito, orientado ao fim último para o qual foi criado. Como, por exemplo, em:

“Eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais do que as vestes?” (Mt, VI, 25)

“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua Justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt, VI, 33)

Ou ainda, de forma veemente, nesta passagem:

“Estando Jesus em viagem, entrou numa aldeia, onde uma mulher, chamada Marta, o recebeu em sua casa. Tinha ela uma irmã de nome Maria, que se assentou aos pés de Jesus para ouvi-lo falar. Marta, toda preocupada com a lida da casa, veio a Jesus e disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Dize-lhe que me ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada”. (Lc, X, 38-40).

Juntemos a essas passagens — de mensagem tão simples, direta e objetiva — o fato de que, de acordo com alguns dos maiores doutores da Igreja, assim como do próprio Magistério infalível (e não de acordo com a nossa interpretação pessoal, que nisto absolutamente não a temos), há uma dupla maneira de considerar o trabalho:

1ª. No estado de inocência original, quando Deus confiou a Adão* o governo das coisas criadas. Leia-se, por exemplo, Gn, II, 15: “O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo”. Ou então essa outra passagem da Sagrada Escritura: “Vós o fizestes [a Adão] quase igual aos Anjos/De glória e honra o coroastes/Destes-lhe poder sobre as obras de vossas mãos/Vós lhe submetestes todo o universo” (Salmo VIII, 5-7).

O trabalho para com as coisas do universo submetidas ao primeiro homem não o afadigava, dado o seu estado de inocência original e, entre outras coisas, pelos dons preternaturais de que estava revestido. Para não estender por demais este post, poupo-me e poupo-lhes de citar amiúde o que sobre isso disseram lindamente tantos Doutores e Papas (Santo Agostinho, São Gregório Magno, São João Crisóstomo, etc.). Deixo consignada apenas uma coisa que afirma Santo Tomás, em diferentes passagens do segundo tratado de seu Compêndio de Teologia: no estado de inocência original, todo o trabalho do homem estava orientado para servir e honrar a Deus. Perdida, pelo pecado, essa orientação de todas as coisas pelo homem a Deus — para a qual o homem contava com auxílios sobrenaturais —, advirá também a diminuição dos bens da própria natureza, como diz São Beda: o homem foi despojado das coisas gratuitas e também diminuído na própria natureza. A propósito, o mesmo São Beda, ratificado por Santo Tomás (in Suma Teológica, IªIIª, Q. 85, a.3) enfatiza que a nossa natureza traz quatro feridas: debilidade, ignorância, malícia e concupiscência.

2ª. No estado de natureza caída, que é o atual, o trabalho passa a ser penoso em si mesmo e também sujeito a erros tanto quanto aos meios, como em relação aos fins intermediários, e destes com o fim último. O homem caído, fascinado e vencido por paixões que subjugam as suas potências intelectivas, terá mérito ou demérito no trabalho na exata medida em que este o ajude a desenvolver virtudes naturais e a combater os vícios. Ademais, o seu trabalho tornou-se servil, no sentido de que, como biblicamente se diz, o homem dele precisa para ganhar o pão com o suor do seu rosto (cf. Gn, III, 19). Isto sem contar as terríveis palavras da Vulgata Latina: Maledicta terra in opere tuo (“Maldita será a terra em teu trabalho”, Gn, III, 17).

Idolatrar o trabalho (coisa muitíssimo comum em nosso feérico tempo) é, portanto, além de uma agressão ao bom senso, o descumprimento de um conselho evangélico — e também um dar de ombros ao fato de que se trata de um castigo para a humanidade filha de Adão, diferentemente do que era o trabalho no estado de inocência original.

Se se elimina do horizonte a consideração desse estado original, e de sua corrupção após o pecado, nada impede que o trabalho se torne um ídolo, a razão de ser da vida das pessoas, um fim a ser buscado em si e por si.

* A propósito, a Santa Sé acaba de proibir o padre argentino Ariel Álvarez Valdés de exercer qualquer atividade acadêmica, assim como também proibir que publique artigos em revistas, jornais ou mesmo na intranet, além de também proibir que ele dê entrevistas a rádios e a emissoras de TV. O motivo da resolução vaticana (assinada nesta semana pelo Cardeal Bertone): o padre Ariel nega a existência de Adão e Eva, assim como nega a aparição do Anjo da Anunciação à Virgem, que ele considera como "passagens literárias". Colocamos esta informação porque, quanto ao primeiro tópico (Adão e Eva), no próximo artigo do meu amigo Carlos Nougué voltaremos ao tema do poligenismo — colocando-o ao lado do Magistério infalível da Igreja.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A importância da história (II)

Carlos Nougué
Mas note-se que o mero conhecimento dos fatos e datas históricos não é mais que um escalão preliminar do estudo histórico propriamente dito. Para que nos alcemos efetivamente a este, é preciso compreender as causas daqueles fatos e os resultados que eles produziram. De outro modo não serviria a história, como de fato serve, de elemento essencial da educação moral.

Se assim é, tudo vai depender, em história, de saberes que lhe são superiores: a filosofia e a teologia. Ora, a história é, como alguém já disse, um reservatório de onde saem numerosos canais destinados a regar e fecundar a inteligência das novas gerações segundo o conhecimento do passado. Logo, se o reservatório estiver envenenado de falsa filosofia, os canais não verterão senão veneno nas almas.

Por isso dizia no século XIX o Bispo francês Louis Delalle (e seja-nos permitido citá-lo longamente): “Tanto na ordem histórica como na ordem natural, a última palavra, a chave de abóbada da verdadeira ciência, a explicação final e a razão suprema de todos os fenômenos é Deus, Alfa e Ômega, princípio e fim dos [entes] contingentes. Tal é a conclusão que se impõe por uma soberania que não se destronará jamais — a do bom senso. Quem quer que queira subtrair-se a ela cairá, forçosamente, nas aberrações do fatalismo e do panteísmo, porque não quer ver no universo senão uma força cega inerente à matéria cósmica, fazendo-a piruetar de evolução em evolução, da molécula ao átomo, do átomo à condensação desejável, deste agregado progressivo ao surgimento da vida animal, onde a natureza começa a se sentir, e do surgimento desta sensação ao do ente inteligente, no qual a dita natureza começa a se pensar pela revelação do eu.

“Esta última fase, em que vemos o homem saído provavelmente do macaco ou do lagarto, não é ainda senão provisória, e deve dar lugar a outra, em que a natureza desarranjará talvez tudo o que ela fez, para recomeçar ainda as suas evoluções: tudo sob a influência do axioma eterno que se pronuncia no ápice luminoso do éter, como diz o filósofo Taine. Daí resulta que, segundo o filósofo Hegel, o ser [...] ainda não existe. Chega-se assim à negação de toda e qualquer verdade absoluta e da concepção mais geral do entendimento, a do Ser, porque não há mais que o devir.

“Em verdade, esta teoria não é senão a de Epicuro, completada por Espinosa e maquiada pela cor científica da sofística contemporânea. E aos homens que repisam essas loucuras os consideramos homens de ciência! E eles dizem-se os pedagogos do gênero humano! [...]

“Tal é o abismo profundo em que se debate o racionalismo com seus sistemas filosóficos e suas teorias históricas, dos quais se eliminou o elemento sobrenatural. O livre-pensamento, na impotência em que se encontra, pelo seu isolamento, de explicar o enigma da origem das coisas e a marcha do gênero humano ao longo dos séculos, é devorado pela Esfinge do ceticismo. Quando a razão humana se insurge contra Deus, que é o seu princípio, cai sob a tirania do sistema e cava o seu próprio túmulo.

“A teoria do naturalismo e do fatalismo panteístico aplicada à história não somente leva a negar, como impossíveis, os fatos da ordem sobrenatural, ou a explicá-los por hipóteses extravagantes, mas degrada a humanidade rebaixando-a ao nível de mera engrenagem que funciona no mecanismo da substância universal. Ela destrói a noção do bem e do mal moral ao negar o livre-arbítrio e a conseqüente responsabilidade; diviniza o evento, que aos seus olhos não passa de evolução irresistível da natureza; anistia todos os crimes que se cometeram e avilta todas as virtudes que sucumbiram, e não reconhece outra moralidade além do triunfo de uma força preponderante. Em suma, o homem existe apenas para esmagar e ser esmagado, sem nenhum mérito nem demérito. Ele não é mais vicioso nem mais virtuoso que o vento que sopra, que o cata-vento que gira, que o alambique que destila o veneno ou o remédio; porque tanto o mal como o bem não são mais que uma força, ou melhor, não há bem nem mal, há tão-somente forças a operar fatalmente as transformações sucessivas que compõem a trama da história do gênero humano, assim como as revoluções materiais do globo que são objeto dos estudos geológicos.

“Tal é a última palavra dessas teorias abjetas e embrutecedoras que se proclamam atuais com um cinismo revoltante, como a fórmula de uma ciência transcendente que deve destronar toda e qualquer idéia religiosa e livrar o gênero humano dos julgamentos e terrores da consciência, minando pela base a ordem moral inteira.

“À vista de tal degradação da inteligência, ou melhor, de tal cretinice, poderíamos crer-nos transportados a um asilo de loucos.

“Por esta exposição, é fácil compreender a enorme influência que a história, verdadeira ou falsa, exerce para o bem ou para o mal nas questões religiosas, filosóficas, políticas e morais, e que parte lhe cabe nos destinos futuros das novas gerações” (Carta do Bispo Louis Delalle ao Doutor Jacquinot acerca do seu opúsculo Philosophie chrétienne et théories rationalistes dans l’étude de l’histoire, apud L’Abbé Rohrbarcher, Paris, Librairie Louis Vivès, 1904, t. 1, pp. 163-164).

E a “mestra da vida” tornou-se, tristemente, em todo o mundo, mestra das mais variadas perversões e corrupções.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A importância da história (I)

Carlos Nougué
Por dois ângulos principais se pode demonstrar a imprescindibilidade da história, ou seja, do seu estudo e ensino, para os homens.

Primeiramente, do ângulo pessoal, é (como já se disse) no colo da mãe que começa para cada um de nós o ensino da história: uma narração impressionante, ou tocante, de um episódio qualquer da história pátria ou mesmo familiar nos insere, já em tenra idade e ao modo de elo, na grande e complexa cadeia da humanidade. Cada um de nós logo se descobre parte de um todo, de um fio temporal que se vem estendendo, sem solução de continuidade, desde a origem do homem. E o robustecimento dessa mesma descoberta, por sua vez, também não sofre interrupção; muito pelo contrário, ganha alicerces cada vez mais firmes ao longo dos sucessivos anos e graus de instrução. Por certo, em maior ou menor medida, cada um de nós terá a sua chave de abóbada deste edifício; alguns se aprofundarão efetivamente no estudo da história, mas todos, inexoravelmente, terão a imaginação tingida de certo colorido histórico, e terão preenchida a memória de fatos mais ou menos marcantes da história de seu povo, de sua nação, do mundo inteiro, enfim. Tudo isso, por conseguinte, propiciará uma base às suas convicções e à sua vida moral inteira. Cícero, o filósofo romano, com toda a justeza chamou a história de “mestra da vida”.

Em segundo lugar, do ponto de vista social, o gênero humano, assim como o indivíduo humano, não pode de modo algum prescindir da memória, e memória de si mesmo. É uma exigência, uma necessidade, uma imperiosidade moral, e sem ela a humanidade se veria reduzida a perpétuo estado de ressurgimento, não renascendo incessantemente senão para tornar a cair no nada. Como poderia haver a filosofia, as artes, as ciências, as tábuas das leis, as instituições políticas, a própria religião, ou seja, toda a trama do tecido social, sem tal memória? Sábia, sumamente sábia é a Providência, que faz sucederem-se no tempo as eras e as idades, impedindo assim a ruptura da continuidade do homem. A história, ou seja, o seu estudo e ensino, é, ainda segundo Cícero, a testemunha dos tempos: a partir do efêmero presente, ela estende uma ponte entre o passado e o futuro, e garante assim a permanência da civilização.

Neste sentido, a história é tradição — é a embarcação segura em que a humanidade navega no tempo, singrando-lhe as ondas freqüentemente revoltas e as correntes sempre muito fortes e contrapostas. E como não atestar, facilmente, que uma grande ignorância ou esquecimento da história provoca inevitavelmente num espírito a turvação e em toda uma sociedade o caos? Não se afirma com isso que é necessário a todo e qualquer indivíduo um estudo muito aprofundado da história, ou à sociedade um grande número de historiadores altamente capazes; o que se afirma é que sem certa quantidade de alimento para a memória, isto é, sem um mínimo de conhecimento da própria humanidade — que, como já vimos, ou é histórica, ou não seria nada —, qualquer indivíduo e qualquer povo tende a afogar-se no pântano de seu próprio esquecimento.

Ouçamos ainda a Cícero: “A história é a luz dos tempos, a contemporânea de todo o gênero humano, a depositária dos acontecimentos, a testemunha da verdade, a alma das lembranças, a grande conselheira e oráculo da vida humana, a mensageira e intérprete dos séculos passados. É meditando-a que se alcança a fonte dos sábios desígnios e da prudência, e que se descobre a regra da boa conduta e dos costumes. Sem ela permanecemos circunscritos aos limites estreitos do tempo e do lugar em que estamos, e vivemos numa vergonhosa ignorância de tudo o que nos precedeu e de tudo o que nos rodeia. E isso não é senão uma puerilidade eterna, que faz de nós crianças e estranhos a todo o restante do universo” (De Oratore, liv. XVIII ).

E a Bossuet, quando tentava fazer entender ao Delfim “quão vergonhoso seria, não somente a um príncipe, mas, em geral, a qualquer homem honesto, ignorar o gênero humano. [...] A Religião e o governo político são os dois pontos sobre os quais rolam as coisas humanas: descobrir-lhes toda a ordem e toda a seqüência é compreender [...] tudo o que há de grande entre os homens, e possuir, por assim dizer, o fio de todos os assuntos do universo. Ora, aí reside o grande ensinamento da história: por ele, tudo se vos tornará proveitoso. Não se passará nenhum fato de cujas conseqüências não vos apercebereis. Admirareis em seguida os conselhos de Deus nos assuntos da religião: vereis assim o encadeamento das coisas humanas, e por isso conhecereis com quanta reflexão e previsão elas devem ser governadas” (em Discurso sobre a história Universal).*

* Não se deduza desta citação que sejamos admiradores sem reservas de Bossuet. Por grande que seja, e de fato o é, pesa contra ele, sobretudo, o fato de ter sido galicano, ou seja, um defensor da independência administrativa da Igreja nacional com relação ao Papado. Nunca é demais lembrar que o rei francês Francisco I quase tomara o mesmo caminho do inglês Henrique VIII, e que o galicanismo não era de todo estranho a esse clima.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (VIII)

Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)

A. As potências superiores da alma

Após descrever todas as nossas potências sensitivas — externas e internas —, vamos dar um passo decisivo na psicologia e na gnosiologia tomistas (já que uma implica a outra) e abordar as potências superiores da psique humana, segundo o Aquinate.

A primeira observação a fazer (partindo da premissa, já destacada aqui, de que todas as potências sensitivas estão a serviço das potências intelectivas) é que o intelecto não se subordina às necessidades biológicas. Em segundo lugar, as operações do intelecto representam o grau mais elevado da ação vital humana, pois a vida humana em sua plenitude implica necessariamente a intelecção. Sendo assim, o nosso entender não pode reduzir-se a uma mera adaptação ao ambiente, nem a uma simples ação vital. E é justamente por ser capaz de conhecer a dimensão mais profunda da realidade — o caráter de ente e suas diferenças essenciais — que a ação humana transcende as necessidades vitais do organismo. E aqui lembramos que, para várias psicologias contemporâneas (de forte sabor psicanalítico), o entender é considerado uma pulsão vital, uma satisfação de necessidades congênitas. Isto é, diametralmente, o oposto da concepção de Santo Tomás, para quem o entender é um acidente imaterial de nossa potência intelectiva. Ou, noutros termos: não entendemos por necessidade vital, orgânica, mas intencionalmente. E, em terceiro lugar, destacamos que entender é um dos signos da liberdade humana (ainda voltaremos ao tema da liberdade e veremos que esta não pode fundar-se numa autodeterminação da vontade, como pensava Duns Scot. Mas isto em outro post).

Mas há limites nesse modo humano de conhecer. A começar pelo insumo do nosso pensar, que é a essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). Ora, a experiência demonstra, exaustivamente, que o conhecimento começa pelos sentidos, que captam o aspecto sensível da realidade e o gravam — na forma de imagem — em nossa potência sensitiva interna. Assim, toda vez que entendemos algo, é dessas imagens que nos servimos. Ao apreendê-las por nosso aparato sensitivo, tais imagens são inteligíveis em potência, e se tornam inteligidas em ato pela ação do chamado intelecto agente — do qual não falaremos neste texto, para não estendê-lo por demais. Deixaremos apenas registrado que, para Santo Tomás, o intelecto agente é a luz natural da mente, o princípio ativo de toda a vida do espírito. Entendemos graças a essa luz do intelecto agente, como diz o Angélico em várias passagens de seu magistral De Veritate, ao referir-se ao modo como as imagens da realidade se tornam inteligíveis para nós. Se tais imagens se apresentarem de forma confusa, a intelecção será prejudicada ou impedida.

Uma coisa é ainda importante destacar: se queremos cogitar outra possibilidade para o modo humano de conhecer, temos de propor a seguinte disjunção: ou conhecemos por abstração as coisas (como na premissa acima) ou por intuição direta de suas essências. Tertium non datur. Mas a suposição do conhecimento por intuição direta — proposta por Husserl — tem contra si as evidências já apontadas noutro texto, e a seu favor, nenhuma evidência ou experiência. Ademais, se conhecêssemos por intuição direta, não seria necessário nenhum método para provar que conhecemos por intuição direta (no caso de Husserl, o método é a chamada redução eidética). Na prática, pressupor a intuição direta da essência das coisas é igualar-nos aos anjos, literalmente, pois estes conhecem por intuição direta justamente porque vêem, num só ato, o princípio e os atributos da coisa contemplada pela inteligência, já que não têm, como nós, limitações de ordem material. Muito a propósito, Cornelio Fabro lembra-nos o seguinte, em seu Introduzione a San Tommaso – la metafisica tomista & il pensiero moderno:

1- Deus, quando pensa, cria a realidade pensada.
2- O anjo, quando pensa, intui a realidade pensada.
3- O homem, quando pensa, abstrai a realidade pensada.
4- (Acrescento): O animal irracional não pensa justamente porque está arrojado ao mundo da sensibilidade, ou seja: não transcende a imagem sensível captada por algum órgão corporal.

Em suma, de acordo com Santo Tomás, o conhecer humano não é ato de nenhuma potência corporal (cf. Suma Teológica, I, q. 85, a.1). Demos um exemplo: numa sala com 50 alunos, apenas um entendeu certo teorema de matemática pura explicado pelo professor. Todos ali têm cérebro, mas apenas um entendeu, o que mostra de início que o cérebro, embora seja uma certa causa instrumental do entender, não é a causa formal e muito menos causa final do ato do entendimento. Na mesma questão acima citada, diz Santo Tomás que conhecer é uma faculdade da alma que, por sua vez, é forma substancial de um corpo.

O desenho da ação humana em sua completude começa a fazer-se, na medida em que todas as potências da forma entis humana vão sendo descritas. Alguns textos adiante, veremos qual é o alcance da operação cognoscitiva humana, para depois mostrar que uma teoria econômica como a de Ludwig von Mises, que tem como suporte uma tão frágil psicologia — pois não foi à toa que, no seu calhamaço Human Action, o autor liberal descreveu primeiramente e de forma prolixa a sua “psicologia”, para servir de base para a sua teoria econômica —, nos subsume a um horizonte materialista altamente daninho.

Mas devagar com o andor, que o santo é (literalmente!) de barro...

(Prossegue)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Maritainismo resistente

Carlos Nougué
Antes de prosseguir com o tema do pecado original (essencial para o entendimento correto do estado atual do homem e de sua ordenação segundo a economia da salvação), é preciso tratar, ainda que muito brevemente, do maritainismo, essa espécie de enfermidade que atingiu o tomismo e cujas seqüelas resistem a desaparecer.

Expoente do movimento neotomista, o francês Jacques Maritain introduziu profunda e daninhamente no pensamento católico concepções de pessoa humana e de natureza totalmente equivocadas. Até um pensador como Gustavo Corção só no fim da vida, mais precisamente após o belo Dois Amores, Duas Cidades, atinou para os malefícios causados pelo maritainismo, e mesmo assim, como muitos tomistas, ainda acreditava num Maritain duplo: um tomista perfeitamente ortodoxo, e um tomista desvirtuado, como numa espécie de esquizofrenia intelectual. Isto é verdadeiro, mas só em parte, porque como demonstrou cabalmente o Pe. Julio Meinvielle (em De Lamennais a Maritain e Crítica a la concepción de Maritain sobre la persona humana) as referidas concepções já estavam presentes desde o início na obra de Maritain, ao menos em germe. Já estão plenamente desenvolvidas em Três Reformadores, embora ainda não causem todos os seus efeitos, como farão, mais tarde, em obras como Humanismo Integral. É bem verdade que de tais concepções partilhou o grande Pe. Garrigou-Lagrange, o qual, porém, logo renunciou a elas, enquanto Maritain as elevaria à máxima potência.

Resumamo-las aqui (já que logo as retomaremos bem mais extensamente): enquanto indivíduo, ou seja, enquanto membro de uma espécie, o homem está sujeito ao Estado e à Igreja, mas, enquanto pessoa, tem relação direta com Deus e sua intimidade (o que decorre, como veremos em outro artigo, de conferir ao homem atributos semi-angélicos). Ora, o corolário disso é preciso: reduzir a um mínimo a importância e o papel do Estado e da Igreja, e elevar a um máximo a liberdade de consciência individual, cuja santidade já não requererá, necessariamente, os meios que, todavia, como sempre disse o Magistério, só a Igreja (por instituição divina) pode ministrar em ordem à salvação de cada homem e ao fim último da multidão (“o fim da multidão não pode ser senão o mesmo fim de cada indivíduo que a compõe”, dizia Santo Tomás). Na verdade, tal visão não se distingue, fundamentalmente, das teses de um Marc Sangnier senão pelo fato de se reivindicar do tomismo, ainda que ao preço das maiores piruetas lógicas (Maritain era de fato um grande lógico, mas, como nem tudo o que é lógico é verdadeiro...). Com efeito, ela tem muito não só de liberal, como de comunista...

Mas importa dizer aqui que de tal visão decorre um entendimento completamente equivocado das artes e ciências. Sim, porque, se como natureza pessoal (quase angélica, como disse) o homem está em relação direta com Aquele que é propriamente a Supernatura e autor de todas as naturezas, então todas as nossas artes e ciências já estariam preordenadas a Deus pelo mero fato de ser humanamente naturais. Logo, uma obra de arte pode ser considerada boa e ordenada a Deus pelo simples fato de o artista tê-la feita segundo regras perfeitamente naturais. Como o tentará demonstrar erudita e “tomisticamente” Maritain em Art et Scolastique, mesmo poemas como Les fleurs du mal, de Baudelaire, seriam obras de arte boas, tendentes naturalmente a Deus e de seu agrado, pelo simples fato de serem “artisticamente” bem-feitas, e independentemente de se ordenarem, em verdade, a Satã... Absolutamente falso. Nada pode deixar de ordenar-se a Deus não enquanto é humanamente natural, mas enquanto tem de tender a Ele ou intencional e formalmente, ou pelo menos de modo não-contraditório – sempre como meio, como fim intermediário ordenado, mais ou menos diretamente, à Causa Final.

Tudo isso, estou certo, se provará exaustivamente ao longo das séries escritas para este blog e nos demais trabalhos que tantas vezes já anunciei. Mas, por ora, fiquemos com uma voz da verdadeira autoridade: Pio XII. Lembremo-nos do artigo “Querem um esporte reto e honrado? Cumpram os mandamentos”: nele se viu o Papa exigir do próprio esporte, tão inferior à mesma arte, que se transformasse numa “quase ascese de virtudes humanas e cristãs” e se ordenasse, indubitavelmente, ao fim último do homem, a Deus: o esporte, assim como [atenção!] “toda e qualquer forma de atividade humana”, deve “aproximar o homem de Deus”. “Deve-se rejeitar, pelo contrário”, dizia ainda o Papa, “tudo quanto não conduz a tais fins [ou seja, o último e os intermediários], ou se afasta deles, ou sai do lugar que lhes é [devidamente] atribuído [na justa hierarquia dos fins]” (Esporte e Ginástica), exatamente, aliás, como no caso da música e da arte em geral.

Em tempo 1: Vejam o que, tão contrariamente a Maritain, diz o Pe. Meinvielle: “a produção econômica ordena-se ao consumo; o consumo ordena-se à vida material do homem; a sua vida material, à sua vida espiritual; e esta, a Deus. Todas as coisas devem ser à medida do homem, e o homem [inteiro, acrescento] à medida de Deus” (em Concepción católica de la economia, 1936). É esta a base para tudo quanto venhamos a escrever aqui e alhures.

Em tempo 2: Há algo que temos repetido insistentemente: a obra de arte que, embora conservando aspectos belos, não se ordene de algum modo ao fim último do homem é não só má em termos finalísticos, mas tem obrigatoriamente mescla de mais ou menos fealdade. Já veremos por quê.

Em tempo 3: E terminemos, por hoje, com estas santas palavras: “Os prazeres do ouvido me haviam enredado e subjugado com particular tenacidade, mas Vós me desembaraçastes e livrastes” (Santo Agostinho, Confissões, X 33, 49).

domingo, 17 de agosto de 2008

A imprudência, seus frutos e sua fonte

Sidney Silveira
Quando aborda, na Suma Teológica, a inconstância como vício contido no pecado da imprudência (que, por sua vez, é oposta à prudência, que é a reta razão no agir), Santo Tomás faz algumas preciosas considerações (in IIªIIª, q. 53, a.5):

a) A inconstância é o abandono de um bom propósito. Mas por que seria alguém capaz de abandonar um bom propósito? Responde-nos o Santo: “[Esse] abandono radica na vontade, pois ninguém abandona uma boa resolução tomada senão porque sobrevém algo que [lhe] seduz desordenadamente. O abandono se faz taxativo por um defeito da razão que incorre em engano, repudiando antes o que havia aceitado retamente. E se [o inconstante] não resiste aos embates da paixão quando poderia fazê-lo, deve-se imputar [esse abandono] à debilidade [da vontade], que não se mantém firme no bem (...). (...) por isso dizemos que o inconstante é aquele cuja razão não exerce o seu império sobre os atos [bons] deliberados (..)”.

Além da inconstância, outros vícios também são, por assim dizer, anexos à imprudência, de acordo com o Santo Doutor: a inconsideração (que é uma falta do juízo reto por desprezo ou descuido em considerar o que, por si, reclama toda a atenção); e a precipitação (que é o obrar por um impulso da vontade apaixonada, não observando todos os dados e circunstâncias implicados na ação).

Mais adiante, nos informa Santo Tomás, nessa aula magna de teologia moral na IIªIIª da Suma, que tanto a imprudência como os vícios dela decorrentes têm raiz na luxúria. Ora, se pensarmos bem, o desejo irrefreável de obtenção de prazeres de toda ordem — que é um dos signos da luxúria — é, de fato, um impulso veemente à desobstrução, a todo e qualquer custo, dos obstáculos à obtenção do bem querido. O luxurioso — tipo particular de hedonista — é sempre um impaciente, um sujeito que tem realmente muita pressa. Pressa para o gozo, e tal atitude traz consigo a imprudência e os seus três frutos imediatos: a precipitação, a inconsideração e a inconstância (esta última porque ainda que vislumbre o bem moral o inconstante não consegue perseverar nele, pois lhe arde a lembrança da imagem apaixonada, o que faz a sua vontade sucumbir e ele voltar à ação má).

Ponhamos agora nesta balança o fato de a prudência ser uma virtude supracapital, fonte de todas as demais virtudes humanas, e veremos o quão triste é a alma do imprudente — o sujeito que abandona os bons propósitos (por exemplo: diz que não vai mais ofender ao próximo, mas sucumbe à paixão do apetite irascível desordenadamente, e repete o ato mau); o sujeito que não considera (por distração ou desprezo) a verdadeira hierarquia de valores; e o sujeito que se precipita na ação, por impulsos desordenados (num desrespeito ao dom do Conselho [falaremos deste último noutro post, ao abordar os dons e as chamadas virtudes infusas], o qual nos traz o vagar próprio dos atos imperados pela prudência, fazendo-nos sempre pensar antes de agir).

Estes são alguns critérios seguros para lograrmos um mínimo discernimento acerca de nós mesmos e das pessoas que se relacionam conosco, para evitarmos as ações temerárias, particularmente se atingem o próximo. É como me disse certa vez um sábio sacerdote, prudente diretor espiritual: como não entendemos as coisas humanas por intuição direta, é necessário partir de alguns de seus frutos, ou seja, dos dados que se nos apresentam. E, no caso do pecado, é a partir dos seus frutos que devemos iniciar a nossa luta espiritual.

E assim, crescendo na fé e nas virtudes, sempre com a necessária ajuda sobrenatural da Graça, cresceremos também no discernimento da malícia dos pecados já praticados por nós mesmos (o que é o primeiro passo para combatê-los conscientemente), e também no discernimento da malícia de quem se precipita contra nós imprudentemente, de forma inconsiderada e, às vezes, com certa inconstância — prometendo em diferentes ocasiões pôr um ponto final no litígio conosco, mas descumprindo a promessa e voltando à contumélia*, mostrando com isto haver, na verdade, um litígio mais da alma consigo mesma do que conosco. Ora, se não crescermos nesse discernimento espiritual, como poderíamos rezar por uma pessoa dessas?

* A contumélia é um pecado especial (tratado por Santo Tomás in Suma Teológica, IIª IIª, q. 72, a.1) que consiste em desonrar — de forma intermitente ou habitual — a pessoa do próximo com palavras que vão da ironia ao insulto, passando pelo humor tosco, pelas alusões desrespeitosas ou vulgares, pelo deboche ou ainda por chistes inconvenientes. Diz o Santo: “(...) E dado que a honra é conseqüência de certa superioridade de uma pessoa, a desonra a esta lhe priva [aos olhos das demais pessoas] da excelência pela qual possui essa honra”.

Para o Angélico Doutor, a contumélia nasce da ira. Portanto, se alguém anda por aí pecando com palavras desse naipe contra você, caro amigo, saiba que se trata de um irado que está espumando, literalmente. Defenda-se com firmeza e prudência, sem jamais usar dos mesmos expedientes do sarcasmo ou do escárnio — e sem jamais deixar a tristeza com a ação dessa pessoa contra você se transformar em ódio, o que se consegue com oração e freqüência aos Sacramentos. Por pior que seja o seu inimigo, ele não merece provar do próprio veneno. Ademais, num estado desses, é tudo o que ele quereria, consciente ou inconscientemente. Não o alimente nessa sua dor espiritual (que o leva a atacar você de forma tão candentemente triste), pois só Deus conhece essa dor por inteiro. Defenda-se e reze por ele.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O latim ainda (II)

Carlos Nougué
Pois bem, o latim expandiu-se na medida mesma em que se expandia o Império Romano, e em que se pavimentavam os caminhos por onde se propagaria o Evangelho: andá-los-ia o Apóstolo das Gentes, e tomá-los-ia São Pedro, para ir fincar a Rocha no coração mesmo do reino de César. E de certa forma o próprio latim formaria, de per si, uma via: a longa via por que se iria fazer entender em todo o mundo o conjunto da Revelação, especialmente o Novo Testamento, e a obra de grande parte dos Padres e dos Doutores da Igreja.

Em sua marcha foi o latim absorvendo não só os idiomas a ele mais aparentados, como o osco e o úmbrio, mas os de boa parte dos povos dominados pelas hostes romanas, idiomas estes que, por seu turno e em contrapartida, deixariam marcas mais ou menos profundas na língua imperial.

Mas leiamos o que diz do latim o filólogo e gramático Gladstone Chaves de Melo: “Costuma-se, sem razão, aproximar o latim do grego, e até, o que é muito mais grave, apresentá-lo como derivado do grego. A confusão parte do fato de se pensar que o latim é o latim clássico, de Cícero, Virgílio, Horácio, etc., forma culta e artificial de linguagem, fundamente influenciada pelo grego clássico. A não ser isso, o latim como língua tem tanta relação com o grego como com o germânico ou com o sânscrito ou o eslavo, quer dizer, é uma língua indo-européia” (Iniciação à Filologia Portuguesa, Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, p. 91).

Ora, ressalta nesta passagem de Gladstone o mais grave equívoco das modernas ciências da linguagem: por influxo dos igualitarismos, o ver na língua culta e gramaticalizada um mal, uma forma de “opressão” sobre os dialetos e falares plebeus. Analisemos o texto citado. Obviamente, tem toda a razão o conhecido filólogo ao dizer que a relação do latim com o grego é unicamente de influência literário-gramatical. Mas daí a chamar o latim clássico de “forma culta e artificial de linguagem” vai uma grande distância. Afinal de contas, em que linguagem se forjaram os grandes códigos de leis, como, por exemplo, o das Doze Tábuas, a primeira legislação escrita dos romanos? (Gravado em doze tábuas de bronze e publicado em 450 a.C, foi obra dos Decênviros, os dez magistrados designados, pouco tempo após a instituição da República, precisamente para elaborá-lo.) Ora, a linguagem culta é tanto a fonte como a cristalização da gramática, e, como já vimos, sem elas a tendência à incompreensibilidade lingüística universal, começada na Torre de Babel, se intensificaria dramaticamente.

Deve-se, pois, cultivar a língua dos maiores e acolher a linguagem forjada nas melhores fráguas da civilização. Nada disso, contudo, como também já vimos, implica reverência ao rigorismo gramatical nem, muito menos, à pedantaria pseudo-artística, e tampouco implica desprezo às obras vazadas em linguagem, digamos, rústica ou pouco castiça. Já veremos, ao mostrar o latim de Santo Tomás de Aquino, um exemplo de perfeito justo meio também no uso da linguagem, e perfeito antes de tudo porque perfeitamente adequado ao fim buscado pelo teólogo. Mas diga-se desde já que tanto no latim eclesiástico como pela pena dos grandes teólogos católicos o latim atingiu grandíssimas alturas.

Antes, porém, de falarmos um pouco do latim de Santo Tomás (e também de darmos noções gramaticais básicas do latim em geral), vejamos como comumente se divide o latim em termos temporais:

● latim arcaico ― aquele que se documenta desde a já referida fíbula áurea de Mânio (encontrada em Preneste, cidade do Lácio, no século VI a.C.) até o início do século I; nele escreveram o trágico Lívio Andrônico (c. 280-204), o comediógrafo Plauto (235-184), o poeta épico Ênio (239-170) e o poeta cômico Terêncio (c. 195-159);
latim clássico ― o de prosadores como o soberano César (102-44) e o filósofo Cícero (século I a.C.), e de poetas como Horácio (68-8) e Virgílio (70-19), e que perdura do fim do latim arcaico à morte do imperador Otávio Augusto (14 d.C.);
latim imperial ― o latim literário escrito, grosso modo, nos dois primeiros séculos da era cristã (após a morte de Otávio Augusto); nele escreveram o poeta Marcial (c. 40-c. 104), o literato Plínio, o Moço (62-c. 114), o retórico Quintiliano (c. 35-c. 96), o filósofo estóico Sêneca (c. 4 a.C.-65 d.C.) e o historiador Tácito (c. 55-c. 120);
latim tardio ― tanto o latim literário dos séculos de III a V, e que por vezes alcança os séculos VI e VII, como o também chamado baixo-latim, ou seja, o usado pelos monges medievais e pautado na tradição gramatical do latim literário;
latim medieval ― o falado e escrito no período compreendido, pouco mais ou menos, entre a queda do Império Romano (século V) e o Humanismo/Renascimento.

Mas também se divide o latim por outros critérios, como este:

latim eclesiástico ― o que constituiu a língua oficial da Igreja;
latim cristão ― o empregado pelos autores cristãos até a queda do Império Romano, especialmente o dos teólogos influídos literariamente por Cícero (Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho);
latim escolástico ― obviamente, o escrito pelos escolásticos.

Ou estes:

● latim vulgar (ou coloquial) ― a linguagem plebéia romana;
latim bárbaro ― o conjunto de fórmulas latinas mais ou menos corretas — mescladas com vocabulário de outros idiomas — que nos foi legado pelos documentos notariais da Idade Média;
latim científico ― o conjunto de terminologias adotadas pelos cientistas, particularmente a partir do século XVIII, com base na latinização de elementos lexicais gregos ou de outras línguas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ave Maria

Sidney Silveira
Essa interpretação da Ave Maria de Gounod (melodia) e Bach (harmonia), na voz de Andrea Bocelli, é comovente. Peço a todos que a ouçam e, se puderem, rezem neste exato momento uma Ave Maria dando graças à nossa Mãe, por tudo de bom que dela recebemos, ainda que nada mereçamos. A propósito, nunca é demais lembrar que, no Terço rezado sem pressa, com meditação profunda de cada Mistério que a Igreja nos propõe, a nossa devoção parece encontrar-se com o coração misericordioso de Maria. Sendo assim, antes do estudo, antes do trabalho, antes do lazer, enfim, antes de qualquer ato importante (ou mesmo simples, como uma refeição), nada como oferecer a nossa ação e os frutos que dela vierem à Santa Mãe de Deus, Virgem puríssima, mulher de beleza sem igual — beleza sem mácula a que nada se pode comparar.

Nós vos amamos com todo o coração, Mãe. E só queremos vos agradecer, hoje e sempre, pelas vezes em que o nada que somos foi contemplado, amorosamente, pelo muito que vós sois. Nestas ocasiões, o nosso coração se encheu de fervor, que é o melhor tempero da piedade. E, como certa vez escreveu o vosso filho Tomás de Aquino, o fervor é o desejo intenso de alcançar o objeto amado. Aproveitamos esta ocasião em que vos louvamos para pedir-vos, Mãe: não permitais que nos afastemos (nós e todos!) da vossa beleza, nem que sejamos seduzidos pelas vulgaridades do mundo que, por fraqueza nossa, tomamos por coisas belas.

Ave Maria, gratia plena
Dominus tecum
Benedicta tu in mulieribus
Et benedictus fructus ventris tui Jesus
Sancta Maria, Mater Dei,
Ora pro nobis peccatoribus
Nunc et in hora mortis nostrae
Amen.

Metafísica do ser e Martin Heidegger

Sidney Silveira
O resgate do conceito de ato de ser em Santo Tomás, pelo padre e filósofo italiano Cornelio Fabro, pôs fim a várias imprecisões terminológicas encontráveis mesmo na obra de alguns dos melhores pensadores do movimento neotomista do século XX — como entre as noções de “ser” e “ente”, por exemplo. Imprecisões essas que transcendiam à mera questão dos termos implicados, na medida em que chegavam aos conceitos a que se referiam os termos, o que deu margem a erros de interpretação da obra do Aquinate.

É justamente o actus essendi o que faz da metafísica de Tomás de Aquino não apenas uma metafísica do “ente enquanto ente”, mas propriamente uma metafísica do ser. Ou, noutra formulação: uma metafísica dos graus intensivos de participação no ser, como bem frisou o professor Jorge Martínez Barrera, quando da apresentação do seu livro A Política em Aristóteles e Tomás de Aquino no Brasil, lembrando-nos, na ocasião, que isto “escapou” a Heidegger, em sua crítica à metafísica ocidental. E acrescento eu: “escapou”, certamente, pela leitura superficial da obra de Santo Tomás feita pelo autor alemão, o que se pode vislumbrar nas referências ao Aquinate feitas em Ser e Tempo e alhures.*

Com o conceito de actus essendi, o Angélico faz uma síntese única, na história da filosofia, entre a metafísica aristotélica da potência e do ato e a teoria platônica da participação — corrigindo as aporias de um e de outro: em Aristóteles, a coexistência do Primeiro Motor Imóvel e da matéria prima incriada; em Platão, a cisão entre as formas puras e as essências participadas (metexis). Com esse conceito Santo Tomás nos mostra que, em relação ao ser, tudo o mais está em potência, pois o ser é o mais radical dos atos: o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições. Quanto mais um ente possuir de ato e menos de potência, maior será a sua dignidade na ordem do ser. Esse arco metafísico vai da matéria prima ao Ato Puro, este a quem, normalmente, todos entendem por "Deus" (et hoc omnes intelligunt Deum, como diz Santo Tomás numa linda passagem da Suma).

A idéia heideggeriana de que a metafísica ocidental, desde os pré-socráticos, “esqueceu-se do ser” e só abordou o ente, embora se aplique a boa parte dos filósofos, não se aplica a Santo Tomás. Quem o diz não sou eu, mas Johannes B. Lotz, discípulo de Heidegger que escreveu um belo trabalho sobre o ser em Heidegger e Tomás de Aquino. É essa pequena história que eu conto em mais um pequeno vídeo disponibilizado em nosso blog — na verdade, o trecho de uma aula ministrada num curso sobre metafísica tomista, ano passado.

* Falando de Heidegger, ocorreu-me agora uma passagem interessante de sua biografia, que vale a pena citar, pois muitos não a conhecem: nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (durante os escassos dois meses em que esteve no front, pois foi dispensado por “problemas de saúde” de cuja natureza os seus principais biógrafos não nos informam), o filósofo alemão foi chamado a atenção por um companheiro, por estar lendo em meio às escaramuças. Lendo o quê? A Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.

Palmas para ele!!!

Democracia e “democracia” segundo a verdadeira autoridade

Carlos Nougué
Hoje tem certo curso a opinião de que algumas coisas que a Igreja condenava outrora já deixaram de ser condenadas por ela.

Esta é discussão grave, que requer um trabalho de fôlego muito mais amplo. Mas uma coisa já pode ser respondida aqui e agora, de forma breve: a verdadeira autoridade da Igreja é o seu Magistério. Não o são os teólogos, conquanto a um em especial o próprio Magistério tenha dado a autoridade específica de Doutor Comum da Igreja: Santo Tomás de Aquino. E explica-o: foi-lhe dada tal autoridade porque “a sua doutrina soa em uníssono com a Revelação divina e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé” [destaque nosso] (DS 3894).

Sendo assim, se um teólogo escreve que antigas condenações formais da Igreja estão circunscritas ao tempo em que foram feitas, isto é pura e simples interpretação dele, sem a mais ínfima autoridade magisterial.

Pois bem, dito isso, diga-se também que efetivamente tem certo curso hoje a opinião de que a democracia foi, de fato, condenada pela Igreja no século XVIII, porque, de fato, tinha caráter anticatólico, mas a partir de então deixou de ser condenada por ela precisamente por ter perdido tal caráter. Como nada pior que uma meia verdade, cujos efeitos daninhos sobre as almas podem ser ainda mais devastadores que os de uma inverdade, diga-se que esta opinião encerra uma falácia e uma falsidade histórica: a) a falácia de pôr sob uma só designação (democracia) coisas em verdade díspares; b) a falsidade histórica de esquecer o que disseram das democracias papas como, por exemplo, São Pio X e Pio XII (em pleno século XX!!!). Vejamos, de início, o ensinamento de São Pio X sobre o assunto, o qual, como não poderia deixar de ser, tem por fundamento a concepção católica da origem do poder.

Retomando a célebre frase de São Paulo: “Não há poder que não venha de Deus” (Rom, XIII, 1), afirma o santo Papa: “O Senhor [é] princípio de todo e qualquer poder e de toda e qualquer soberania” (Carta de 1913, VIII, 30). “A autoridade humana”, diz ainda São Pio X, “[é inoperante] se se esquece ou põe em dúvida que todo e qualquer poder vem de Deus” (Encíclica Jacunda sane, 155), e mais que inoperante, perigosa, “porque ela já não terá mais que um freio, a força, para governar todas as coisas” (idem).

Estabelecido, assim, que o reconhecimento da origem divina do poder (e da lei natural, acrescente-se, e da lei divina positiva) é a única verdadeira garantia contra a tirania, o ensinamento de São Pio X resolve, sobretudo na Carta sobre o Sillon (de agosto de 1910), a questão da delegação do poder. Extraiamos desta solução uma síntese: se o poder é diretamente delegado por Deus aos governantes, a escolha de um governante por eleição designa a pessoa desse governante, sim, mas não lhe pode delegar o poder de governar, sob pena de reduzir a autoridade a um mito (ver ibid., V, 130).

Ora, tudo isso conduz, naturalmente, à questão das formas de regime. E, quanto a isto, começa São Pio X por relembrar o que sempre dissera o Magistério: a Igreja não tem preferência por nenhum regime político. Como ensinara Leão XIII, “Não é vedado aos povos dar-se o governo que mais corresponda a seu caráter ou às instituições e costumes que eles receberam de seus ancestrais” (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).

Ora, se, como vemos, a Igreja admite a democracia (ou seja, o modo de designação do chefe de Estado por meio de sufrágio), ela porém condena, antes de tudo, o democratismo (ou seja, a ideologia que só admite a democracia como regime legítimo): “A democracia não goza de nenhum privilégio especial”, diz Leão XIII (apud São Pio X, Carta sobre o Sillon, V, 131).

Mais que isso, porém: a Igreja condena também a democracia liberal, fundada que é na tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”, esse arremedo das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que São Pio X considerava um conjunto de “noções erradas e funestas” (Carta sobre o Sillon, V, 131), fruto do individualismo e do idealismo: “E eis”, escreve ironicamente o Papa, “a grandeza e a nobreza humanas ideais realizadas pela célebre tríade...” (ibid., V, 129). Parece-me ouvir os acordes ribombantes do coral da Nona Sinfonia de Beethoven...

E, dada a exigüidade de tempo e espaço, parece-me que com relação a São Pio X basta o já dito. Mas e com relação a Pio XII, a respeito do qual alguns dizem que era um entusiástico defensor da democracia? Outra meia verdade, porque, em primeiro lugar, a democracia que Pio XII considerava aceitável não era a democracia “absoluta”, mas una forma popular moderada; em segundo, ele nunca a proclamou a única forma boa de regime; em terceiro, ele dizia que ela não devia ser condicionada pela idéia de liberdade, mas sim pela de bem comum; em quarto, ela supunha a constituição não de uma massa igualitária, mas de um povo hierarquicamente ordenado; em quinto, requeria uma autoridade real, derivada e submetida a Deus; em sexto, compreendia um corpo legislativo composto de homens seletos, espiritualmente superiores e de caráter íntegro [como na democracia atual, sem dúvida...] que se considerassem representantes de todo o povo e não mandatários de uma massa; etc., etc., etc. ― como, aliás, já dizia Santo Tomás, e sobretudo como sempre dissera o Magistério. E leia-se de Pio XII especialmente as palavras de Summi Pontificatus referentes ao processo de descristianização do mundo, que se entenderá essencialmente tudo quanto acabamos de dizer.

Em tempo: Falando criticamente do romantismo e citando a Bíblia, dizia o Papa Pio X que a Igreja sabe perfeitamente “quanto os sentimentos e os pensamentos da alma humana são inclinados ao mal” (Gên, VIII, 21, em Carta sobre o Sillon, V, 137).

terça-feira, 12 de agosto de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (VII)

Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)

Chegamos enfim à potência cogitativa — último dos chamados sentidos internos. Pelo que vimos até aqui, já ficou evidente que, por receber as coisas de modo fragmentado a partir da sensibilidade, não possuímos instantaneamente (ou intuitivamente, diriam os fenomenólogos) nenhum conhecimento integral, nenhuma verdade completa acerca de qualquer ente, mas, ao contrário, nosso intelecto precisa fazer um esforço, não raro penoso, para alcançar a verdade. Trata-se de um processo do mais confuso ao menos confuso, como indica Santo Tomás (in Suma Teológica, I, 85, a.3), citando a Aristóteles, ao verificar isto já nas crianças, que primeiro distinguem um homem do que não é um homem, depois este homem de outro, etc.

b.4) A cogitativa

A via cogitativa é capaz de captar certas intenções que não são percebidas pelos demais sentidos, como o caráter de conveniente ou nocivo, de amizade ou inimizade. Nos animais, Santo Tomás afirma que essa captação pertence à potência estimativa: a ovelha, ao ver o lobo, estima que este é seu inimigo e foge. É algo muito semelhante ao que várias psicologias contemporâneas chamam de instinto (e o homem, segundo o Angélico, também o possui, e aduz como evidência fatos como o citado na seguinte passagem: “Vemos naturalmente que a parte se expõe para conservar o todo, como a mão se expõe, sem deliberação, para a conservação de todo o corpo [cf. Suma Teológica, I, 60, a.5]). Assim, são instintivas certas ações dos animais irracionais, que se guiam por uma espécie de “juízo” natural, que produz sua capacidade estimativa. Mas, no caso do homem, a cogitativa é guia e conduta de toda a atividade afetiva, porque combina intenções individuais, e por isso afirma Santo Tomás que, no homem, a cogitativa não opera de maneira puramente instintiva, senão como certa razão particular, de modo que o nocivo e o útil se distingam por certa comparação (collatio). Essa capacidade de estimar comparando sob certa razão particular é, para Santo Tomás, uma potência própria do homem, apenas.

Vale assinalar que, de acordo com alguns tomistas, é por intermédio dessa razão particular ou cogitativa que a razão universal exerce sua influência sobre as paixões, o que veremos noutra ocasião.

Breves apontamentos sobre este tópico

Foi evidenciado, ao longo dos textos desta série sobre as nossas potências sensitivas — os quais sugiro aos leitores imprimir, na ordem em que foram escritos, ou então copiá-los e colá-los nessa ordem, em vista de uma leitura profícua — que é pelos sentidos que nos chegam as primeiras notícias da realidade. Por isso, em alguns trechos do seu hoje clássico Existencialismo y tomismo, Octavio Derisi assinala que a única intuição direta de que somos capazes é a sensitiva. É a do ente apreendido em suas qüididades materiais.

E não confundamos a refluência das potências intelectivas sobre os sentidos (toda vez que, pela memória, nos lembramos do que já foi sentido e entendido) com intuição direta da essência das coisas, pois, neste caso específico, se trata de um conhecimento que já fora abstraído anteriormente, e do qual nos lembramos no ato em que os sentidos recebem novamente aqueles dados.

Adiante, estudaremos as potências superiores da nossa psique (inteligência e vontade), com o propósito de mostrar o seguinte, à luz do que já foi apresentado e sempre seguindo de perto a Santo Tomás:

a) A verdadeira natureza da liberdade;
b) O que é a eleição humana (o ato de escolha, em sentido próprio).

Dadas essas realidades antropológicas fundamentais, e considerando tudo o que pode formalmente prejudicar a nossa liberdade — sempre tendo em vista a noção de fim último —, veremos:

a) Que lugar devem ocupar as teorias econômicas.
b) Tendo em vista as potências que somos capazes de atualizar e os bens mais excelentes que podemos alcançar (para cuja consecução todas as nossas potências inferiores estão a serviço), veremos se o crescente aumento da reprodutibilidade de bens materiais é necessariamente um bem, ou se há casos em que, em relação aos bens espirituais superiores (não só os religiosos, mas os da inteligência no exercício dos seus atos formais), esse aumento da reprodutibilidade de bens materiais pode representar um mal de grandes proporções, a ponto de transformar-se naquilo que, na "Regra de São Bento", se chama vitium proprietatis — o “vício da propriedade” que deve ser extirpado na raiz, nas palavras do Santo, sob risco de transformar-se em impedimento formal para chegarmos ao céu.
c) Que não há paralelismo entre bens materiais e bens espirituais, mas ordem dos primeiros aos segundos. Perdida essa ordem, o abismo é certo.

Somente então voltaremos ao liberal Ludwig von Mises, e ao seu Human Action. Mas continuemos devagar, que assim se chega ao longe...

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Querem um esporte reto e honrado? Cumpram os mandamentos

Carlos Nougué
Por ocasião das atuais Olimpíadas, meditemos um pouco sobre o esporte. Sim, porque que fim ou fins buscam os homens quer com as várias modalidades de atletismo, quer com os diversos esportes coletivos?

Ora, relembremos o que essencialmente se disse nas duas séries escritas neste blog sobre a música: a arte ordena-se ou deve ordenar-se a um de quatro fins, adquirindo porém cada um desses fins caráter de meio com relação ao fim último do homem. Tal caráter de meio decorre de um fato ineludível, assim expresso filosoficamente: é impossível à vontade humana desejar ao mesmo tempo objetos diversos como fins últimos. (Para o perfeito entendimento desse princípio, leia-se Santo Tomás, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 1, a. 5, artigo intitulado, precisamente, “Pode um homem ter muitos fins últimos?”.)

Pois bem, algo semelhante sucede com o esporte: porque, como disse há 50 anos o grande Papa Pio XII em Esporte e Ginástica, “tudo o que serve para a consecução de determinado fim deve extrair sua regra e sua medida de tal fim. Ora, o esporte e a ginástica têm como fim próximo educar, desenvolver e fortificar o corpo em seu aspecto estático e dinâmico; como fim mais remoto, a utilização, por parte da alma, do corpo assim preparado para o desenvolvimento da vida interior ou exterior da pessoa; também como fim mais profundo, contribuir para a sua perfeição; por último, como fim supremo do homem em geral e comum a toda e qualquer forma de atividade humana [grifo nosso], aproximar o homem de Deus”.

Estabelecidos assim os fins do esporte em geral, “segue-se que neles se deve aprovar tudo quanto serve para alcançar os fins indicados, naturalmente na ordem que lhes convém; deve-se rejeitar, pelo contrário, tudo quanto não conduz a tais fins, ou se afasta deles, ou sai do lugar que lhes é [devidamente] atribuído” (idem), exatamente, aliás, como no caso da música e da arte em geral.

Não que o senso religioso e moral desconheça e rejeite o que é próprio do corpo (que é o fim próximo do esporte) ou a necessidade estética do homem (que é o fim próximo da arte [no sentido moderno]). Mas vai muito além e, ensinando a relacioná-los com a sua primeira origem, atribui-lhes “um caráter sagrado de que as ciências naturais e a arte não têm, de per si, nenhuma idéia” (idem).

Sim, porque Deus coroou a criação visível formando do barro o corpo humano e “inspirou-lhe na face”, prossegue Pio XII, “um sopro de vida que fez do corpo a habitação e o instrumento da alma, o que é o mesmo que dizer que, com isso, elevou a matéria ao serviço imediato do espírito” (idem). Estava preparado o corpo humano, portanto, para receber a dignidade de templo de Deus, “com aquelas prerrogativas, também superiores, que correspondem a um edifício a Ele consagrado” (idem), razão por que dizia o Apóstolo: “Glorificai e levai Deus no vosso corpo”, que “pertence ao Senhor” (ver Cor., VI, 13, 15, 19-20).

Por tudo isso, se é verdade que o esporte não deve temer de modo algum tais princípios religiosos e morais, é preciso, no entanto, excluir dele algumas coisas que se opõem ao que acaba de ser indicado, tal como se deve fazer na música e na arte em geral. É ainda do Papa a palavra: “A sã doutrina ensina a respeitar o corpo, mas não a estimá-lo mais que o devido. A máxima é esta: Cuidado do corpo, fortalecimento do corpo, sim; culto do corpo, divinização do corpo, não”, porque “o corpo não ocupa no homem o primeiro lugar, nem o corpo terreno e mortal, como é agora, nem o glorioso e espiritualizado, como será um dia. Ao corpo tirado do barro não cabe a primazia no composto humano, a qual corresponde ao espírito, à alma espiritual” (Pio XII, Esporte e Ginástica).

Além do mais, assim “como há uma ginástica e um esporte que com sua austeridade concorrem para refrear os instintos, assim também há formas de esporte que os despertam, quer com uma força violenta, quer com as seduções da sensualidade. Ainda do ponto de vista estético, com o prazer da beleza, com a admiração do ritmo na dança e na ginástica, o instinto pode inocular seu veneno nas almas. Há, além disso, no esporte e na ginástica, na rítmica e na dança, certo nudismo que não é necessário nem conveniente. Não sem razão [...] disse um observador totalmente imparcial: ‘O que interessa à massa neste campo não é a beleza do nu, mas o nu da beleza’. Diante de tal maneira de praticar a ginástica e o esporte, o senso religioso e moral põe seu veto” (idem), assim como o põe na arte em geral.

Mais ainda, na própria prática do esporte devem ou deveriam ser observados certos requisitos, como “franqueza, lealdade, cavalheirismo”, que excluem, “como a uma mácula infamante, o emprego da astúcia e do engano” (idem), devendo o bom nome e a honra do adversário ser tão queridos e respeitados como os próprios.

O fato evidente, porém, é que no mundo moderno o esporte (como a arte) desatende a tudo quanto se disse acima. Mais que nunca, ele transformou-se em ídolo, e não raro em objeto supremo da vida. Mas, assim como a arte, o esporte deveria “converter-se quase numa ascese de virtudes humanas e cristãs [...], por mais penoso que seja o esforço exigido, a fim de que o exercício do esporte se supere a si mesmo, consiga um de seus objetivos morais e seja preservado de desvios materialistas que rebaixariam seu valor e nobreza. Aí está resumido o que significa a fórmula: Querem agir retamente na ginástica, no jogo, no esporte? Guardem os mandamentos em seu sentido objetivo, simples e preciso” (idem).

Ora, se o esporte não se converte em tal, mas antes em ídolo, é porque o mundo atual já se esqueceu culpavelmente do principal dos mandamentos do Decálogo: Eu sou o Senhor teu Deus, e tu não terás outro Deus além de mim, “nem sequer o próprio corpo nos exercícios físicos e no esporte’, o que representaria “quase uma volta ao paganismo” (idem).

Cinqüenta anos após o saudoso Papa Pio XII ter escrito isso, já se deu cabalmente tal volta ao paganismo. Mais que isso, porém: se o mundo pagão como que ansiava uma justiça e uma verdade que ele não podia alcançar por si mesmo, o mundo atual, neopagão, impugna a própria Verdade e Justiça, que, feita Carne, habitou entre nós.

domingo, 10 de agosto de 2008

Metafísica do pecado e teoria liberal

Sidney Silveira
Em todo ente composto de potência e ato, de matéria e forma, há uma distância entre o seu agir e a atualidade que busca, como por exemplo (no caso do homem) entre o querer uma coisa e o possuí-la, entre o estudar uma matéria difícil e o entendê-la. Os entes, sem nenhuma exceção, se movem para os fins, e todo movimento é o trânsito de uma potência a um ato. Com Deus não ocorre isto: Ele possui o fim possuindo-Se, porque é Ato Puro, sem mescla de potência. Em termos metafísicos, a Sua impecabilidade explica-se pela instantaneidade do seu agir que coincide com a Sua eterna atualidade, daí que Ele não pode desviar-se do fim que, afinal, Ele é (e lembramos que o pecado é sempre um desvio do fim). Quanto a nós, é possível que pequemos porque não possuímos o nosso fim imediatamente, mas o buscamos, no tempo, a partir dos atos próprios da nossa forma entis (atos da inteligência e da vontade), que são complexos porque dependem, por sua vez, da operação ótima de várias potências sensitivas — neste composto psicossomático que nos constitui.

Por aí já se vislumbra que o problema do pecado tem resolução metafísica. Vamos a um esboço dela em Santo Tomás:

1- Deus é impecável porque o seu a agir e o seu Ser identificam-se absolutamente. E, sendo o pecado também definido como deficiência de ser na ação, em Deus não pode haver pecado, pois Ele é sumamente Ser e é Ato Puro. No Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Santo Tomás nos diz que o fato de que Deus não pode pecar não derroga em nada a Sua liberdade, porque “o pecado nem é a liberdade nem faz parte da liberdade. É justamente a perfeição da liberdade de Deus que O priva de toda possível defectibilidade. Ademais, sendo Ele a Bondade subsistente, o Seu querer coincide com essa Sua suma bondade. Por fim, não tendo Deus nenhuma deficiência ou carência quanto ao ser, é evidente que não pode pecar nem na inteligência, nem na vontade.
2- O Anjo — embora tenha uma inteligência intuitiva que não lhe permite errar com relação aos objetos inteligidos — não tem a intuição simultânea de toda a realidade, nem do que Deus é em si mesmo. Diz Santo Tomás que “a causa primeira excede a medida da substância dos Anjos e dos demônios. Daí que, mesmo ao conhecer [intuitivamente] a essência de Deus, [a inteligência angélica] não apreende a ordem total da Providência divina” [De Malo, q. 16, a. 2. ad 10]. Por isto, frisa o português Celestino Pires, no seu excelente Inteligência e Pecado em Tomás de Aquino, que a ignorância dos Anjos, de que fala Santo Tomás, não é privação de conhecimento devida à natureza angélica. Não é obnubilação da inteligência. É simplesmente que o seu conhecimento não é total, ou seja: não exaure a inteligibilidade da causa que Deus é. Sendo assim, podemos dizer que há uma ignorância metafísica nos Anjos, razão pela qual o demônio pôde considerar possível assemelhar-se a Deus e, com isto, pecar (pois é claro que a inteligência angélica não quereria algo que a ela se apresentasse como impossível). Foi possível o demônio querer a autonomia em relação a Deus porque não conhece toda a ordem da Providência. E assim, considerando o seu próprio bem, desconsiderou a sua ordem necessária em relação ao Bem que Deus é.
3- O ser humano (no estado de inocência original) — Recém-saídos das mãos do Criador, dotados de dons preternaturais e com a superabundância da Graça, dada a sua amizade com Deus, Adão e Eva tinham uma inteligência não passível de erro. O pecado, portanto, não residiu na inteligência, mas na vontade, que os fez amar desordenadamente a própria excelência, e só depois, então, errar na inteligência e crer na possibilidade — proposta pela serpente — de ser semelhantes a Deus. Não foi o erro ou defeito na inteligência o que os fez pecar, mas o pecado na vontade é que os fez errar na escolha feita. Erro de eleição: elegeram o próprio bem sem ordená-lo ao Bem que Deus é. E essa eleição foi causada pelo pecado na vontade, que quis autonomia, independência em relação a Deus.
4- O homem caído — Após o pecado, todas as potências inferiores não mais puderam estar perfeitamente ordenadas às superiores, como no estado original. E se o homem depois de Adão nasce em pecado, isto significa que teve um déficit de liberdade, na medida em que tem enorme dificuldade de praticar o bem e de conhecer a verdade. A sua inteligência é passível de erro, ao contrário da dos Anjos e de Adão.
A propósito, lembra-nos o mesmo Celestino Pires que Santo Tomás estuda as causas do pecado atual no homem caído formulando um problema geral: deve-se supor uma deficiência na vontade anterior à sua ação moral má? Diz Celestino — e nisto é perfeitamente concorde com o Angélico — que a vontade age sob a moção da inteligência quando esta lhe propõe o bem querido. Mas a inteligência pode propor um bem falso ou aparente. Assim, o pecado no homem caído proviria de duas possibilidades: ou porque a vontade cedeu à apreensão sensível (o que não poderia acontecer com Adão e muito menos com os Anjos), ou porque seguiu a razão que não lhe apresentou o bem com propriedade, ou seja: não o ordenou ao bem superior. Esse seu ato da vontade também constitui, portanto, uma falta de ordem ao fim. E essa desordem, segundo Tomás de Aquino, é voluntária porque a vontade, mesmo no homem caído, pode não ceder ao atrativo. “O deleite dos sentidos move a vontade do adúltero e a atrai ao deleite que exclui a ordem da razão e a lei divina. O que é mal moral. (...) [Mas] por mais que o bem sensível solicite a vontade, está no poder desta ceder ou não ceder ao atrativo” (De Malo, I, 3).

Pois bem, se na atual condição nascemos em pecado (se se é católico, é necessário crer nisto por fé!!!!), e se neste estado de natureza caída temos grande dificuldade de alcançar a verdade e de querer os bens ordenando-os a Deus, o que dizer de uma teoria (como a liberal) que põe a liberdade no ato de escolha e entroniza a consciência individual “autônoma”, se acabamos de ver que o pecado (em todos os níveis e estados!) é, literalmente, um ato de escolha movido pela vontade que quer o bem de forma autônoma em relação à ordem que Deus criou?

Por favor, pensem e respondam a si mesmos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz (VI)

Carlos Nougué
Vimos nos artigos anteriores desta série que, no âmbito da “pura naturalidade humana”: a) a “suprema felicidade” consiste na “contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas”; b) o conhecimento de Deus é possível (ainda que seja muito inferior ao que nos é dado pela fé: com efeito, dizia Santo Tomás que “nenhum dos filósofos de antes da vinda de Cristo, apesar de todos os seus esforços, podia saber tanto acerca de Deus [...] quanto depois da vinda de Cristo sabe qualquer velhinha por meio da fé” [In symbolum Apostolorum sc. “Credo in Deum” expositio. Prologus, 4]); c) são impossíveis a total incolumidade do corpo, o apaziguamento total das perturbações das paixões internas por meio das virtudes e da prudência que adquirimos naturalmente, e o total apaziguamento das paixões externas mesmo pelo melhor dos regimes ou governos.

Ora, se, como o mostra Santo Tomás na Suma contra os Gentios (ver Livro III, caps. 25-63) ao traçar a regra geral de aperfeiçoamento do homem, a incolumidade do corpo e o apaziguamento das perturbações das paixões (internas e externas) são precondições daquela contemplação das coisas divinas, temos que o homem seria um ente, digamos, “problemático”: tem por felicidade suprema algo a que tende ou deveria tender e de que é intelectualmente capaz, mas, por mais que se esforce, é incapaz de cumprir totalmente os requisitos que a tornariam perfeitamente possível. Com efeito, não só mesmo os maiores filósofos pagãos não alcançaram o conhecimento correto de Deus, por exemplo, como criador (de fato, nem Platão, nem Aristóteles, nem Cícero, nem nenhum outro pensador de antes de Cristo conseguiu superar a aporia de considerar incriada a matéria prima), mas vivemos hoje num mundo crescentemente ateu e idólatra (e idólatra, antes de tudo, da liberdade de consciência individual). Tudo isso se deve, como diz o Aquinate, ao fato de que “a inclinação natural à virtude está estragada pelo vício” e de que “o próprio conhecimento natural do bem é obscurecido pelas paixões e pelos hábitos pecaminosos” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 93, a. 6, corpus).

Apesar disso, porém, o homem, qualquer homem, mesmo o ateu, quereria atingir um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude ― quereria atingir propriamente a beatitude (lembremo-nos de que a reflexão sobre a beatitude remonta aos filósofos pagãos), ainda que a creia impossível, assim como mesmos os que não crêem na imortalidade da alma gostariam, porém, de ser imortais.

De tudo isso decorrem duas perguntas: 1) Terá Deus feito o homem assim mesmo, como um ente que apetece naturalmente algo (a beatitude) que, porém, não pode naturalmente atingir? 2) Merece naturalmente o homem, portanto (como o sugere, por exemplo, Jacques Maritain ― já o veremos detidamente), o estado de beatitude de que fala o Evangelho? Em outras palavras: dando ao homem tal estado, estaria Deus simplesmente corrigindo uma natureza que está atualmente imperfeita, já que Deus seria incapaz de deixar imperfeita uma natureza que Ele mesmo criou? Em outras palavras, ainda: ao contrário do que sempre disse o Magistério da Igreja e os doutores católicos, tal beatitude não seria algo dado gratuitamente e sem nenhum mérito por parte do homem?

Comecemos a responder, neste artigo, à primeira questão.

Antes de tudo, o homem é uma fronteira não só entre o invisível e o visível, entre o espiritual e o corpóreo, mas entre o incorrutível e o corruptível: tem ele (como o veremos aprofundadamente em outra série) uma alma imortal e (como é evidente) um corpo mortal. Em outros termos, “o homem é naturalmente corruptível segundo a natureza da matéria entregue a si mesma [grifo nosso], mas não segundo a natureza de sua forma [ou seja, segundo a natureza de sua alma espiritual e pois imortal]” (Santo Tomás, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 85, a. 6, corpus).

Ora, isso já implica uma “problematicidade”, porque, com efeito, embora o homem seja uma unidade de corpo e alma, o fato é que o corpo humano, que segundo a sua natureza material é corruptível, de certo modo está adaptado à sua forma ou alma espiritual, que é incorruptível, e de certo modo não o está. Sim, porque a matéria pode ter duas condições: uma escolhida pelo agente, e a outra segundo a sua própria natureza. Assim, por exemplo, como diz Santo Tomás (e deixemos falar longamente o mestre), “o artesão, para fazer uma faca, escolhe uma matéria dura e flexível, que possa ser afiada para ser apta para cortar. Segundo esta condição, o ferro é a matéria apta para a faca. Mas o fato de o ferro ser quebrável e adquirir ferrugem decorre da disposição natural do ferro e não é escolhido pelo ferreiro, que, antes, se pudesse, o evitaria. Portanto, esta disposição da matéria não é adequada à intenção do artífice nem à da arte. Analogamente, o corpo humano é a matéria escolhida pela natureza por ser de uma constituição apropriada para ser o órgão convenientíssimo do tato e das outras faculdades sensitivas e motoras. Mas o fato de ser corruptível é segundo a condição da matéria e não é escolhido pela natureza: antes, ao contrário, se pudesse, a natureza escolheria uma matéria incorruptível” (idem).

Mas, repito, terá Deus criado o homem assim, como um ente “defeituoso”, Deus, a quem estão absolutamente sujeitas todas as naturezas? Não, porque, ao criar o homem, Deus “supriu o defeito [ou falta, ou imperfeição] da natureza e, com o dom da justiça original, deu ao corpo certa incorruptibilidade, como dissemos na primeira parte [q. 97, a.1]. E neste sentido se diz que ‘Deus não fez a morte’ e que a morte é castigo por causa do pecado [original]” (idem).

P.S.: Em seu estilo não propriamente filosófico, mas eficientissimamente apologético, Chesterton disse muitas coisas a respeito do pecado original. Por exemplo: “a realidade do pecado original pode ser observada naquelas agradáveis tardes de verão em que as crianças, enfastiadas, começam a torturar o gato”.