Nosso primeiro olhar para a história nos deixa um sabor de indistinção: será ela uma mera coleção de fatos variados, dispersos no tempo e espargidos no espaço? As memórias particulares e as crônicas coletivas têm por certo a sua função, e função insubstituível: fornecer o material a partir do qual podemos elevar o olhar para as causas. Sucede, todavia, que se pode fugir do empirismo por duas vias, uma falsa, a outra verdadeira.
No primeiro caso, em vez de se entregar à sua tarefa como o fizeram os Evangelistas, ou seja, elevando o olhar dos fatos ou eventos para a única Causa que efetiva e derradeiramente os pode explicar, o historiador se entregará ao orgulho de criar sistemas utópicos ou quiméricos, antinaturais e antidivinos. Não que se negue aqui a importância e o valor intrínseco do estudo sistemático da história, o qual, no entanto, não pode dar nascimento a sistemas absolutos de caráter naturalista ou meramente humano. Schelling, Cousin, Thierry, Guizot, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Hegel, Comte, Marx e Engels viram a fonte e o motor da história ou no deus progresso ou no deus Estado, ou num Espírito imanente ou num infinito finito, ou na luta de raças ou na luta de classes — é a história romanceada, ou caricaturada. É a história vista do ângulo dos interesses humanos mais vis ou das seitas mais virulentas, e cujas máscaras ocultam os sonhos mais tresloucados e as ambições mais inconfessáveis.
No segundo caso, tem-se a sã vinculação e submissão dos eventos históricos aos princípios do plano divino e às regras do governo da Providência: abre-se, então, um vastíssimo panorama. Ainda assim, porém, deve-se ter o cuidado de não tentar explicar em história tudo, todos os eventos da humanidade: tem a história, como veremos em outra série, os seus muitos mistérios, as suas obscuridades insondáveis, e temos de considerá-los pressupostos. Como explicar os eventos passados sem a discrição de considerá-los imbricados indissoluvelmente com os segredos mais escondidos da alma humana e, sobretudo, da Vontade divina? Além disso, como é difícil, se não impossível, distinguir a parte que cabe ao individual e a parte que cabe ao coletivo nos eventos nacionais e internacionais! É por isso que já se pôde dizer, brilhantemente: “A história escrita por um homem não é senão o julgamento de Deus em primeira instância”, ou, mais diretamente: “A história do mundo só será conhecida pelo julgamento de Deus” (Staudenmaier).
Mas reconhecer a existência das faces misteriosas da história não deve de modo algum levar-nos a negar-lhe bases sólidas e certas, princípios estáveis e definíveis, tendências principais e razoáveis. São muitas também as suas luzes, e pode o homem compreendê-la, se não como o pode Deus, ou seja, pelo âmago mesmo do seu princípio, motor e fim, ao menos em termos suficientes. Fórmula absoluta, com efeito, nunca a encontraremos para a história; munidos porém da razão fecundada pela fé, podemos defini-la de modo verdadeiro. Façamo-lo por aproximações sucessivas.
Será a história um mero seguir-se de impérios e dinastias, batalhas e conflagrações, reis e capitães, partidos e federações, seja no plano das nações, seja no do planeta inteiro? Já vimos que não, ao rejeitar a miséria do empirismo. E pela mesma razão tampouco será ela o mero desdobrar-se do direito e das instituições políticas ou das artes e das ciências, nem, muito menos, o da indústria e do comércio. No entanto, ela não deixa de abarcar, como globalidade, aquele seguir-se e este desdobrar-se: a história é, nesta primeira aproximação, o quadro da marcha do gênero humano através dos séculos. Dito de outro modo, os diversos movimentos da humanidade — o jurídico, o político, o artístico, o científico, o militar, o econômico — são como que coordenados, ordenados, capitaneados pelo movimento geral, movimento este que não é senão o movimento que vai de um princípio motor para um fim ou termo designado ou planejado. Ou isto, ou se estaria diante do absurdo. Com efeito, se assim não fosse, seria preciso comparar a Terra e os homens que a habitam a um campo onde animais lutam pelo alimento escasso, e onde corujas chirriam no meio da noite entre o nada e a morte.
Não se trata, pois, insistamos, de desconhecer a importância da história política e militar, da história do direito, das ciências ou das artes. O que dizemos é que todas essas histórias dependem, principalmente, da sua relação com a história fundamental da humanidade: a história da sua origem, da sua natureza, do seu destino, e, como já se disse, “do movimento coletivo do mundo moral para o seu fim último”. Essa é a única história verdadeiramente geral, a única que estabelece um laço ou vínculo entre os povos de todos os tempos. Mas como a história que se indica por este laço ou vínculo pode chamar-se geral ou universal? Ela não é uma mera adição de eventos particulares, assim como a mera agregação dos mapas nacionais não constitui o mapa-múndi. Mas esse grande laço que faz perceber o conjunto do mundo moral não une os povos entre si senão com a condição de vinculá-los a um mesmo princípio e a um mesmo fim. Ora, o que religa o mundo ao seu princípio e ao seu fim chama-se religião, “e aí está por que”, como diz Dechamps, “a história religiosa é necessariamente a alma e a unidade viva da história do mundo”.
Em suma, a história religiosa é a alma da história geral porque só ela descreve o arco que vai do seu princípio ao seu fim, e porque só ela, no desenho deste arco e num mesmo movimento global, é capaz de impelir indissociavelmente todos os movimentos parciais do gênero humano em todos os tempos e em todos os espaços. E, ao fazê-lo, influi tão decisivamente sobre eles, determina-lhes tão absolutamente o resultado, que é o grau mesmo em que as diversas sociedades e civilizações resistem a seu impulso ou o aceitam o que as caracteriza essencialmente. Não poderia ser de outro modo: este laço geral é propriamente divino, e a história só é uma marcha global na medida em que é a história do gênero humano sob o governo de Deus.