domingo, 27 de julho de 2008

Natureza: ordem ao sobrenatural (I)

Sidney Silveira
Antes de prosseguirmos com os textos sobre a estrutura da ação humana, vale iniciar mais uma série paralela no blog, repisando um princípio metafísico universalíssimo — o de que, em todos os entes, o operar está orientado para algo além deles mesmos, pois, se assim não fosse, seriam todos incomunicáveis, o que é evidentemente absurdo. Seja um parafuso que segura a prateleira de uma estante de livros, o qual tem uma função que não se esgota em sua própria forma; seja o teclado onde agora digito estas palavras; seja o meu esôfago, sem o qual o alimento não me chegaria ao estômago; seja a minha vontade, que se dirige àquilo que quer; enfim, em absolutamente todos os entes, a forma é o princípio da operação, mas essa operação não termina na própria forma.

Sendo assim, da mesma maneira como todas as potências vegetativas, sensitivas, apetitivas e motrizes da alma humana estão ordenadas à ótima operação da potência intelectiva (para prová-lo basta uma caricatura: se eu estivesse, neste momento, com uma diarréia, não poderia no ato [permitam-me o chiste] fazer a análise retrógada de um problema de xadrez, nem resolver uma equação de matemática pura, etc.), assim também acontece no plano metafísico (e também teológico): os entes naturais estão ordenados a algo que está além não apenas de cada um deles individualmente — mas todo o conjunto de entes naturais está ordenado a algo além de todas as suas naturezas. A algo, portanto, sobrenatural. Vejamos mais de perto por que não pode ser de outra forma.

Antes de investigarmos o que seria o sobrenatural, é preciso verificar o que é o natural, ou seja, o que é a natureza. Aristóteles, na Física (Livro II, 1, 192b 10 ss), define a natureza como algo que opera a partir de seus próprios princípios intrínsecos. Ou seja: algo que cresce a partir de si mesmo, ou que tem em si o seu princípio intrínseco de movimento e de repouso. Uma árvore, por exemplo, deixa cair uma semente de um dos seus frutos, a terra é fértil, etc., e assim germina outra árvore, e com isto, de fato, vemos a natureza crescer por si mesma. Santo Tomás, comentando aquela passagem da Física do Estagirita, diz que não é verdade que na natureza ocorra apenas essa causalidade intrínseca, pois há também causalidade extrínseca. E dá um exemplo genialmente prosaico: o fato de a água esquentar a certa temperatura e produzir vapor. Neste movimento específico, o vapor não foi causado por um princípio de movimento e de repouso da própria água, mas por algo exterior a ela. Opa! Aqui já vemos que a natureza não pode ser definida, com propriedade, apenas como aquilo que tem em si o seu princípio de movimento e de repouso, como faz Aristóteles, pois há vários processos naturais — como o da produção do vapor, acima citado — em que o movimento é extrínseco ao ente natural movido da potência ao ato.

Agora vamos juntar duas pontas. 1º. O princípio acima descrito, de que a forma é o princípio de qualquer operação entitativa, a qual tem um fim além dela mesma; 2º. E o princípio de que nenhum ente natural pode ser a causa de si mesmo. Ora, se nenhum ente pode ser a causa de si mesmo (o que é impossível), e se a forma é o princípio da operação em cada um deles (dado ser impossível que operem fora de suas próprias formas), é preciso concluir que não haveria nenhum ente natural se não houvesse algo que está além de todas as naturezas: que doasse o ser por uma espécie de influxo (como diz Santo Tomás na pequena obra-prima De Substantiis Separatis), e, com isto, fosse literalmente a causa de todos os entes naturais. Em palavras chãs: ou há uma causa para toda a natureza ou não haveria nenhuma natureza, já que a natureza não pode ser autocausada.

Assim, para explicar com razões minimamente defensáveis a existência da natureza, é necessário conceber algo além dessa natureza, para não cairmos numa aporia. É justamente o que Santo Tomás faz no mesmo Comentário à Física de Aristóteles: ele afirma que a natureza é arte divina; eis a sua razão de ser. Vejamos a definição por inteiro: “A natureza é a razão de certa arte divina, intrínseca aos entes, que os faz mover-se por si mesmos a seu fim”. Essa definição do Doutor Angélico será muito importante, pelas razões que explicaremos noutro texto. Mas ela mostra, já pelo enunciado, que não há cisão entre natural e sobrenatural, mas ordem de um a outro. A confusão entre natural e sobrenatural começa com uma proposição de Duns Scot (séc. XIV) em sua extensa e sutil Ordinatio, que trará conseqüências tremendas para a história da filosofia e, principalmente, da teologia católica — neste último caso, pelas dissensões que gerará. Mas deixemos Scot para outra ocasião.
(Prossegue)