terça-feira, 7 de outubro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (II)

Carlos Nougué
Como vimos no artigo anterior, o liberalismo econômico (como, aliás, todo e qualquer liberalismo, como teremos oportunidade de mostrar) funda-se em duas espécies de pensamento mágico. A primeira é a que toma o efeito pela causa. Tal espécie de pensamento não é privilégio desse liberalismo: ao contrário do que se dá com a razão natural e, pois, com o realismo filosófico, é característica de todos os idealismos, tomada esta expressão em sentido lato. Assim, para Descartes o efeito pensar é “causa” do ser; para Kant e Hegel o efeito idéias (ou a Idéia) é “causa” da realidade; para Darwin e Engels o efeito fazer instrumentos é “causa” do ser homem; para Karl Marx, Engels e Lênin o efeito violência de classe é “causa” (ou “parteira”) da história; e para o liberalismo econômico, como já vimos, os efeitos troca, moeda e mercado são “causas” da confiança entre os homens.

O absurdo de tudo isso salta aos olhos (e se não feriu os olhos de seus propugnadores é porque, como disse Étienne Gilson, o problema de grande parte do pensamento moderno é de “psicopatologia”). Imagine-se, por exemplo, o “Penso, logo sou” de Descartes: o pensamento cria aquele que o pensa... É mais ou menos como um embrião gerar aquele que o gera, ou um alimento engendrar aquele que o ingere. Do mesmo modo, como o produzir instrumentos pode produzir aquele que os produz, ou seja, o homem? É mais ou menos como crer que a habilidade do joão-de-barro para construir sua linda casinha é capaz de construir o próprio joão-de-barro. E como é possível que a troca de mercadorias, esse mágico cavalo-de-batalha (ou será um cavalo alado?) do liberalismo econômico, possa causar a confiança que, em verdade, ela pressupõe? É mais ou menos como uma mãe dizer a seu filhinho: “Aceite, querido, balas de qualquer estranho na rua, que assim vocês estabelecerão uma bela relação de confiança mútua”...

Mas por que tanto insiste o liberalismo econômico nesta verdadeira aberração? Para justificar o seu grande objetivo, qual seja, a construção de uma economia absolutamente de mercado, com agentes econômicos absolutamente livres, sem nenhuma trava por parte da moral, nem da religião, nem do Estado. De nada! Dizia Von Mises: “A produção material é o que de mais importante faz o homem”. Dizem seus seguidores: “Bancos, atuem e lucrem livremente!” “Empresas, atuem e lucrem livremente!” “Alguns falirão? Trabalhadores passarão necessidades? Famílias se verão na rua da amargura? Tudo passageiro, porque, no final, o mercado, fundado na [sacrossanta] lei da oferta e da procura, se auto-regulará perfeitamente, e trará para todos a felicidade geral!” Deixemos de lado, por ora, o talvez maior escândalo desta tese, precisamente porque amoral: o fato de o paraíso prometido ser material, e não espiritual (como, em seu Jardim, daria saltitos de alegria Epicuro ao ouvir tal promessa!). Concentremo-nos, aqui, no ângulo estritamente econômico da tese, para mostrar que, em verdade, ela preenche todos os requisitos da segunda vertente, anunciada mais acima, do pensamento mágico: a vertente quimérica.

O que é uma quimera nos termos que, aqui e agora, nos interessam? Dizem, pouco mais ou menos, os dicionários: “produto da imaginação; fantasia, utopia, sonho”. Mas aprofundemos, filosoficamente, a definição: “qualquer projeto de sociedade futura baseado não em uma lei eterna, nem na ordem do cosmos, nem em nenhuma realidade social preexistente, mas em mera idéia nascida, voluntariosamente, na cabeça de seu(s) propugnador(es)”. Ou seja, toda e qualquer quimera é produto de uma ideologia. (No próximo artigo veremos que o liberalismo é tão ideologia quanto o comunismo, e isso segundo a própria definição de ideologia de um dos mais importantes pensadores liberais do século XX: Raymond Aron). Fecha-se assim o círculo (como a cobra que morde o próprio rabo...): depois de se fazer do efeito causa, elimina-se toda e qualquer causa real, para substituí-la por uma “causa” ideal. E, justo por não ter alicerces reais, tal “causa” merece perfeitamente as aspas: ela não causa senão uma deformação, uma monstruosidade, um aborto, sempre distante daquilo que se ideou. Uma prova? A atual e gravíssima crise econômico-financeira mundial, engendrada integralmente nos porões amorais do liberalismo econômico.

O livre mercado, o livre lucro, a livre usura bancária sempre gerarão o que agora vemos (e vamos sentir na carne), porque seus propugnadores, em seu idílico Parnaso, esquecem o que qualquer homem do povo sabe perfeitamente: porque muitos homens são gananciosos, o dinheiro traz infelicidade. É o bom senso, é o senso comum quem o diz.

Mas, por favor, não se diga que somos contra a propriedade privada, contra o lucro, contra o mercado, porque nos bastará, para desmenti-lo, pôr aqui, na íntegra, os documentos do Magistério infalível relativos ao assunto. (Ademais, tenha-se um pouquinho de paciência, a paciência da verdadeira ciência, que já mostraremos nesta mesma série as teses do realismo filosófico com respeito à economia.)

O que importa, aqui e agora, é insistir no caráter ideal (e pois ideológico) do liberalismo econômico. E tampouco nos venham falar de Platão: o idealismo platônico, conquanto equivocado por dar existência substancial às idéias, sempre se fundou em algo que ele considerava real ou extramental (aquelas mesmas idéias substancializadas). Além disso, é Platão o primeiro formulador de algo fundamental em filosofia: a noção de participação. Demos um exemplo: uma coisa é mais ou menos boa porque está mais ou menos próxima da Idéia de Bem, ou seja, porque participa mais ou menos da Idéia de Bem.

Ora, segundo alguns liberais, sua corrente, “ao contrário da comunista, aceita que uma economia pode ser mais ou menos liberal”. Imagino, antes de tudo, que os próprios comunistas, de mãos dadas com os liberais, tenham de aplicar à China atual a noção de mais ou menos: será o gigante asiático mais ou menos comunista, ou mais ou menos capitalista? Comunistas e liberais que o digam, porque de fato a coisa é complicada: a China, ao que parece, é maximante comunista em termos estatais, e maximamente liberal em termos econômicos... Mas o que importa aqui é que, se os liberais aplicam a noção de mais ou menos às economias liberais, é porque têm algo como modelo de que possam tais economias participar mais ou menos. Com respeito à sociedade, tinha Platão por modelo as Idéias do Hiperurânio e os deuses; Aristóteles, o Primeiro Motor Imóvel e a ordem do cosmos; os católicos, a lei eterna, a lei natural e a lei divina positiva. E os liberais? Pois a sua própria e exclusiva mente!

(Continua.)