Espaço destinado a combater a insidiosa e multiforme cultura liberal, que tem entre as suas raízes mais daninhas: uma falaciosa noção de liberdade humana; a idolatria — implícita ou explícita — da consciência individual; a separação entre natureza e moral; a contraposição entre Estado e indivíduo; a dissolução da Religião em categorias morais sem fundamento metafísico; a perda da noção de bem comum político.
domingo, 30 de setembro de 2012
Estátua de Sto. Tomás
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
O Comentário de Santo Tomás à Física de Aristóteles,
Presente de um colega de trabalho
Enquanto continuo em minha pequena "via crucis" médica — ontem o Hospital de Cardiologia de Laranjeiras informou-me que este que será provavelmente o último exame pré-cirúrgico ainda demorará um pouco a ser feito —, recebo de presente do meu colega de trabalho Felipe Nogueira, ilustrador, esta caricatura. A propósito, é a segunda que fazem de mim em pouco tempo, o que deve ter lá algum significado "místico"...
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Carinho da Providência — notícias médicas
sábado, 22 de setembro de 2012
Importante Comentário de Sto. Tomás a Aristóteles
A obra é pequena; sua importância porém é considerável.
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Grande máxima de Tácito
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
A "Questão Disputada sobre a União Hipostática do Verbo Encarnado", de S. Tomás
"A única vocação do idiota é para o sucesso" (homenagem aos idiotas anônimos)
Quem sabe um dia não os publico, se algum editor doido os quiser aproveitar?
Outros:
"A semelhança entre o sábio e o estúpido é que, às vezes, ambos têm razão".
"Só discuta com um homem inteligente se ele estiver certo; caso contrário, ele o convencerá dos seus próprios erros".
Apotegma de um tomista genial
(Pe. Álvaro Calderón, em Los Umbrales de la Filosofía - Cuatro Introducciones Tomistas)
Vem aí uma "Gramática" de gente grande
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Filosofia, ascese e mística
Não há filósofo jovem. O que pode acontecer é o pendor filosófico manifestar-se desde a juventude, mas sempre se tratará de uma vocação que leva anos de maturação e estudo para cumprir-se efetivamente. Daí insinuar Platão, com toda sabedoria prática, que não se é filósofo antes dos 50 anos.[1] Entre outras coisas isto se deve ao fato de que, além de passar por várias etapas propedêuticas (para dominar os instrumentos da lógica, da retórica, da dialética, etc.), o aspirante a filósofo precisa saber o que de mais importante se pensou e se produziu a respeito das questões fundamentais — ou seja, ter uma visão crítica de toda a história da filosofia, até ele.
Uma das raríssimas exceções à regra foi Santo Tomás de Aquino, que com menos de 27 anos já tinha em seu currículo obras-primas filosóficas — como os opúsculos De Ente et Essentia e De Principiis Naturae, assim como boa parte de sua Expositio super libros Sententiarum. E, aos 49 anos, quando muitos filósofos estão começando a escrever coisas que realmente valham a pena ler, o Aquinate morria e nos deixava como legado uma sabedoria arquitetônica colossal. Mas não tomemos o extraordinário pelo ordinário: o fato é que o exercício da filosofia em nível de excelência requer formação progressiva ao longo de décadas e disciplina espartana, sem o que certamente muito da vocação filosófica se perde no meio do caminho.
Essa disciplina é uma espécie de ordálio de fogo por meio do qual a alma vai desapegando-se das paixões e se abrindo ao influxo de formas inteligíveis cada vez mais universais, que abarcam em si inúmeros aspectos do real. Noutras palavras: com cada vez menos pensamentos o filósofo vai tornando-se capaz de compreender mais coisas, contemplar a imensa complexidade da realidade com olhar unificador. Assim, após adestrar-se no caminho do múltiplo ao uno, por um procedimento que os escolásticos chamavam de compositio (análise), pelo qual se buscam conhecer as causas pelos efeitos, o filósofo acaba por adquirir uma visão de tudo à luz dos princípios, ou seja, conhecer os efeitos a partir das causas mais universais (síntese = resolutio), logrando uma visão sinóptica da ordem do ser — que parte de Deus, Causa Causarum, e a Ele retorna. Exitus e reditus.
Isto é, propriamente, sabedoria.
É bem verdade que poucos filósofos chegaram a este cume, ou porque se contentaram com pequenos insigths em torno dos quais orbitaram ao longo de toda a sua trajetória intelectual, transformando-se em verdadeiros monomaníacos; ou porque tiveram preguiça para desenvolver as técnicas propedêuticas acima aludidas, tornando-se razoáveis retóricos, maus lógicos e péssimos dialéticos; ou porque sucumbiram às próprias paixões, vícios e interesses políticos; ou porque se contentaram com certo fulgor estético de seus pensamentos, sem jamais lhes extrair o sumo, a species inteligível com correspondência no mundo dos entes reais; ou porque sequer souberam separar os pontos cardeais da filosofia (metafísica, gnosiologia e ciências práticas); etc.
Nestes e noutros casos, ao pular etapas os filósofos jogaram fora o melhor de si, não raro seduzidos pela publicidade fácil e pela avidez de influir na ordem dos acontecimentos. Mas advirta-se bem: não é que os filósofos não devam atuar politicamente, e sim que só o devem fazer se estiverem de fato preparados, e isto na maior parte dos casos históricos, desgraçadamente, não ocorreu. Tal preparação específica passa, principalmente, pela aquisição de virtudes morais, porque sem elas o contato com as coisas políticas — em si baixas, sujas, torpes, mesquinhas — pode infectar letalmente uma inteligência filosófica, desviar sua trajetória, minar suas potencialidades.
Como se pode deduzir, para o filósofo é absoluta a necessidade de passar por um tirocínio moral mais ou menos rigoroso, pois entre a inteligência especulativa — que alcança as verdades — e a prática — que busca o bem agir — existe um secreto liame, o qual infelizmente escapou a muitos homens de talento filosófico. Em síntese, não obstante ser possível para uma pessoa ter virtudes intelectuais sem virtudes morais correspondentes, a contrária não é verdadeira, pelo seguinte: toda virtude moral traz consigo uma virtude intelectual anexa, porque é impossível agir bem sem o conhecimento atual dos primeiros princípios reitores da vida humana, embora tal conhecimento não precise ser, necessariamente, filosófico.
Ninguém se engane também quanto à formal impossibilidade de alguém com desvios de caráter tornar-se filósofo, pois neste caso faltam as predisposições psicológicas necessárias para as virtudes intelectivas e apetitivas tornarem-se aptas ao seu exercício ótimo. Seja como for, vale neste contexto lembrar que nem toda virtude intelectual é filosófica, mas toda virtude verdadeiramente filosófica é intelectual em elevado padrão, pois conduz a inteligência a laborar sem maiores empecilhos com vistas a alcançar o seu objeto terminativo: a verdade, forma imaterial com que a inteligência se assemelha às coisas como elas são.
Pelo fato de a filosofia não ser pura e simplesmente uma técnica, e sim sabedoria na acepção da palavra, os seus praticantes têm real necessidade de ascese, ou seja, de algo semelhante ao que grandes místicos prescreveram ao longo dos séculos, com a diferença de que o místico procura unir-se a Deus num êxtase para cuja consecução precisou esvaziar-se de todos os conteúdos inteligíveis, deixando-se submergir amorosamente n’Aquele que está para além de toda inteligibilidade; ao passo que o filósofo — se o é verdadeiramente — acaba por se unir a Deus por um caminho inverso, no qual de verdade em verdade o esplendor de Deus acaba por manifestar-se à sua inteligência, que então repousa na beatitude desse raio de trevas luminosas, metáfora usada pelo neoplatônico cristão Pseudo Dionísio Aeropagita para referir-se a Deus.
Trata-se de dois caminhos que, se bem feitos, levam o homem a entregar-se totalmente ao mistério, conduzem-no ao mesmo fim: ou esvaziando totalmente a inteligência com vistas a unir-se ao Sumo Inteligível, que é paradoxalmente incognoscível para qualquer criatura (trajetória mística); ou preenchendo a inteligência da maneira correta, a ponto de escalar a ordem das verdades e chegar, por necessidade racional, à Suma Verdade (trajetória filosófico-metafísica). No caso do místico, o não-saber é a supra-ciência adquirida na união amorosa com Deus; no caso do filósofo, o saber é tão somente uma senda maravilhosa na qual a Causa Primeira refulge na ordem criada, e então lhe cabe apenas silenciar a alma e adorar a Deus.
Esta certamente foi a razão por que, após um êxtase, Santo Tomás disse o seguinte a seu secretário e confessor, Reginaldo de Piperno:
“Tudo o que escrevi até hoje é palha”. E jamais retomou a pena.
Em ambos os casos, no entanto, fica a advertência: nem o místico deve supor que apenas por sua ascese pode chegar a unir-se à divindade, pois não bastam esforços humanos no plano natural para alcançar-se o sobrenatural que é Deus — libérrimo para manifestar-Se a quem quiser; nem o filósofo deve supor que as verdades que o levaram a tão alta contemplação lhe bastam, pois, sem o auxílio d'Aquele que é luz supra-essencial infinita, qualquer ciência é vã e a queda é certíssima.
Por fim, se o filósofo não chega sequer a concluir pela absoluta necessidade da existência de Deus, na verdade naufragou de maneira rotunda — e sua subida na contemplação das verdades correspondentes aos graus de ser que há na realidade terá sido interrompida.
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1- Platão. República, VII, 540a.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
As Idéias para o tomismo: realismo sóbrio
Sidney Silveira
Eivada de nominalismo e de subjetivismo, a filosofia moderna inaugurada por Descartes — que, travestida de nomenclaturas as mais diversas e valendo-se de métodos reducionistas, se prolonga até a pós-modernidade — operou um funesto descasamento entre a inteligência e as coisas. O motivo é relativamente simples: privada de mínima base metafísica, ela acabou por descambar em teorias do conhecimento mais ou menos esquizofrênicas, como por exemplo a de Kant, becos sem saída geradores de intermináveis sutilezas lógico-teoréticas que, ao fim e ao cabo, dão em nada.
Para explicar melhor isto, convém salientar que, sendo a filosofia o notável esforço humano para alcançar a verdade, é necessário valer-se de formas inteligíveis às quais chamamos Idéias. Mas o que é propriamente uma Idéia? Centremo-nos na perspectiva tomista, mas antes façamos referência, ao modo de preâmbulo, às três principais maneiras pelas quais o intelecto humano pode abstrair uma forma inteligível da realidade sensível.
Os graus de abstração da matéria
Ao longo de 700 anos, a escola tomista notabilizou-se por cerrar fileiras em torno de alguns temas gnosiológicos, ciente de que uma teoria do conhecimento errônea é capaz de lançar por terra as mais finas intuições filosóficas. Advirta-se que o seu olhar sobre esses temas se deu sempre numa rica perspectiva metafísica, a qual considera o ser como o mais íntimo das coisas, assim como o mais abstrato que nelas pode haver, pois não radica na matéria.
Comecemos por dizer o seguinte: como a inteligência humana chega aos entes de razão a partir das realidades sensíveis com que depara, o primeiro grau de abstração separa a matéria singular, ou seja, a materia signata que se apresenta aos sentidos. Noutras palavras, a matéria singular é esta ou aquela matéria captável a olho nu ou por meio de algum instrumento: a matéria quantificada nesta cadeira, nesta porta, nesta cama, neste átomo, neste homem, naquele astro de outra galáxia, etc. O segundo grau de abstração, por sua vez, separa a matéria sensível em sentido geral, ou seja, alcança o aspecto quantitativo já isento de matéria, embora dela proveniente em última instância. Assim, por exemplo, chegamos ao número onze, que se pode abstrair de onze mulheres, onze peras, onze cães, etc., mas não necessariamente destas onze mulheres, destas onze peras e destes onze cães, entre outras coisas porque há a possibilidade de se tratar de simples relação numérica. O terceiro grau de abstração separa toda matéria e chega à fonte das ciências, porque contempla o que não muda e não se quantifica.
A primeira dessas abstrações pertence à ciência física, que, abstraindo a matéria singular, põe foco no movimento. A segunda dessas abstrações diz respeito às ciências matemáticas, que, abstraindo o aspecto quantitativo da matéria em sentido geral, põem foco nas relações de razão. A terceira dessas abstrações pertence à ciência metafísica, que tem como sujeito o ente em sentido absoluto. Assim, conforme destaca a longa tradição da escola tomista, a inteligibilidade de primeiro grau pertence ao âmbito do mundo sensível, que transita da potência ao ato; a inteligibilidade de segundo grau vai um pouco além da existência sensível e se encontra no âmbito do imaginável, das relações de razão propriamente ditas; e a inteligibilidade de terceiro grau, por sua vez, alcança o reino do supra-sensível por excelência. É a instância do formalmente imutável.
Em síntese, tudo o que é forma imaterial residente no intelecto é ente de razão, mas aqui interessa-nos apenas destacar o seguinte: qualquer Idéia — enquanto ente de razão ou inteligível em ato — é uma realidade separada da matéria em algum grau.
A Idéia como atualização da potência inteligível dos entes — ou como fonte do seu ato-de-ser
1. Como oriunda dos entes e existente no intelecto
Como se pode deduzir do que acima foi dito, entre as Idéias e as coisas há uma evidente diferença formal, e não uma identidade absoluta, pois existem aspectos em que se diferenciam. Portanto, demarcando a um só tempo semelhança e diferença, a relação das idéias com as coisas é analógica e não unívoca, justamente porque conhecer é apossar-se imaterialmente dos entes. Quando, pois, Aristóteles salienta que o intelecto humano é, de certo modo, todas as coisas, está afirmando que a elas se assemelha, mas não ao modo de identidade unívoca.
Como verdade lógica, a Idéia se dá formalmente no intelecto humano, mas, se porventura não queremos descambar para as aporias nominalistas, cabe dizer que tal forma inteligível depende ontologicamente de algo que está além e fora do intelecto: o ente real. Há, em resumo, uma estrita interdependência entre estas duas realidades entitativas, a inteligência e as coisas, pois a Idéia, ao adequar-se a algo que está além dela mesma, é forma inteligida em ato abstraída do inteligível em potência que todo ente possui. Reiteremos, para guardar bem: todo ente é inteligível em potência, e para a inteligência humana essa inteligibilidade radica na forma que organiza a matéria. Entre outras coisas, a forma é, como dizia a máxima escolástica, princípio de operação e de inteligibilidade. E, no caso humano, a Idéia é antes de tudo essa forma inteligível exemplar das coisas, ou seja: o que as faz ser deste ou daquele modo.
Em vista disso afirma Santo Tomás numa conhecida passagem da questão 15 da I Pars da Suma Teológica:
“O que em grego se chamou idéia, em latim se chama forma. (...) Por idéia entendemos a forma das coisas enquanto existente fora das coisas mesmas. Assim, quando uma coisa tem uma forma que existe fora dela, tal forma pode expressar dois aspectos: servir como exemplar daquilo de que é forma ou ser o seu princípio de conhecimento, e desta última maneira se diz que a forma cognoscível está no sujeito cognoscente. (...) Por ambos os aspectos são necessárias as idéias. Isto se explica porque, excetuando o que é produzido ao acaso, o fim que se persegue na produção de todos os entes é necessariamente a sua forma. (...) Há agentes nos quais a forma do que vão fazer já se encontra neles naturalmente (...) caso do homem quando engendra o homem, ou do fogo quando acende o fogo; mas em outros, a forma está em seu ser inteligível, e assim se encontra naqueles que obram segundo o intelecto; deste modo preexiste a semelhança da edificação na mente do arquiteto, e a ela podemos chamar idéia do edifício, pois o arquiteto se propõe fazer com que a edificação seja semelhante à forma (inteligível) que concebeu no intelecto”.[1]
Resumamos tudo isso em alguns axiomas:
Ø a Idéia, enquanto forma inteligível, é uma semelhança das coisas existente no intelecto humano (não nos referimos aqui ao intelecto angélico, para não confundir os leitores);
Ø Nada produzimos artificialmente senão por meio de uma forma inteligível, a qual serve de causa exemplar para as coisas produzidas;
Ø A um só tempo, a forma inteligível informa o intelecto no ato de conhecer e forma as coisas externas ao intelecto — que participam dela imitando-a. Ao primeiro modo de forma inteligível (o que informa o intelecto), chamamos conceito; ao segundo modo (o que dá forma às coisas), chamamos idéia, pois o agente dotado de inteligência não obra ao acaso ou fortuitamente, senão que se serve de algo como exemplar, por meio do qual dá forma a novas coisas.[2]
Como se pode deduzir das palavras acima, será absurda toda filosofia que separe a Idéia (forma inteligível existente na mente) das coisas (entes reais extra mentis). Veja-se o quão distantes estamos das várias filosofias da linguagem, pois estas, sem nenhuma exceção, se tivessem compreendido as primeiras palavras do Peri Hemeneias de Aristóteles saberiam que a linguagem é tão-somente um veículo do pensamento humano. E o é enquanto signo de que ele se reveste, mas não se identifica com ele em sentido absoluto, porque o pensamento ultrapassa formalmente a linguagem. Que dirá qualquer boa filosofia, em que o pensamento penetra o íntimo das coisas e lhes descortina o ser que a elas foi participado!
Vejamos, a propósito, o que magistralmente ensina o Estagirita:
“As palavras faladas são símbolos das paixões da alma,[3] e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas. E assim como a escrita não é idêntica para todos, tampouco as línguas o são. Mas as paixões da alma, das quais as palavras são signos imediatos, são idênticas para todos os homens, assim como também as coisas de que essas paixões são imagens são as mesmas para todos”.[4]
Como se pode ver, as paixões ou afecções da alma — a que se refere Aristóteles — são exatamente as Idéias enquanto formas inteligíveis provenientes das coisas, quer dizer, enquanto imagens aptas a ser inteligidas efetivamente pelo intelecto agente. Para ilustrá-lo bem, vale encerrar este trecho do artigo citando uma magnífica passagem do tomista Álvaro Calderón, baseada no parágrafo do Peri Hermeneias acima referido:
“A arte que dispõe as afecções da alma, isto é, as concepções do intelecto em adequação às coisas — das quais são imagens ou representações —, é a filosofia. A arte que ordena os conceitos entre si, para que sirvam à filosofia, é a lógica. A arte que dispõe as palavras escritas, que por sua vez significam as orais, é a gramática. [Assim], a gramática serve à linguagem, a linguagem serve à lógica, a lógica serve à filosofia e a filosofia serve à arte com que Deus dispôs todas as coisas”.[5]
2. Como causadora das coisas
Há uma certa relação horizontal entre as Idéias humanas e as coisas, na medida em que a forma inteligível presente em nossa inteligência é proveniente dos entes reais a partir da essência das coisas materiais (quidditas rei materialis) abstraídas pelo intelecto. Em suma, inteligência e coisa coexistem, participam de modos diversos da ordem do ser. Neste horizonte, a verdade no intelecto está para o ente assim como o “manifestativo” está para o manifestado (ut manifestativum cum manifestato)[6], ou, em palavras modernas, é o intelecto que manifesta a verdade do ente — e o faz sempre por meio de uma Idéia, uma forma inteligível.
Os entes artificiais são, como vimos, causados pela forma inteligível exemplar, mas o mesmo não se dá com os entes naturais. Estes não são causados por inteligências finitas — as quais que não têm potência para criar naturezas —, mas tão-somente assimilados formalmente por elas. E aqui entra o outro aspecto relacional da Idéia segundo Santo Tomás. Expliquemos com nossas próprias palavras:
Ø o ente artificial está para a Idéia humana assim como o ente natural está para Idéia divina.
Ou seja, neste último caso há uma relação vertical entre as Idéias e as coisas, na medida em que estas são criadas pela infinita Inteligência de Deus. Ora, não podemos dizer propriamente que Deus coexiste com as coisas, mas sim que elas, como entes contingentes, existem tão-somente em relação ao único Ente Necessário, que é o Próprio Ser — Deus mesmo. Entre elas e Ele há, pois, uma radical relação de de-pendência.
Neste contexto, como afirma com muito acerto o filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, a relação de adequação que as coisas naturais mantêm com as Idéias divinas corresponde a uma conformidade passiva, no sentido de que recebem da Idéia divina a norma, a medida e a causalidade.
Assim, temos o seguinte:
Ø A verdade transcendental é a própria coisa real criada pela Idéia de Deus — o ente que é regulado pelo intelecto divino em todos os sentidos;[7]
Ø A verdade formal é a Idéia, a species inteligível abstraída pelo intelecto humano das coisas reais — o ente de razão que é, a um só mesmo tempo, medida das coisas (enquanto causa exemplar dos entes artificiais) e medido pelas coisas (enquanto precisa valer-se dos entes naturais, sem os quais sequer pode existir).
1-Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 15, art. 1
2- Cfme. João de Santo Tomás. Cursus Theologicus, In STh, q.15, d.21, a.1, n2.
3- Paixão enquanto afecção da alma, ou seja: enquanto movimento do apetite sensitivo a partir de imagens, substrato de que se vale a potência cogitativa para operar.
4- Aristóteles. Peri Hermeneias, Livro I, cap. 1, 16a3.
5- Álvaro Calderón. Los Umbrales de la Filosofía – Cuatro Introducciones Tomistas. Buenos Aires: 2011, Edición del Autor, p.208.
6- Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 16, art. 3, ad.1
7- Juan Cruz Cruz. Verdad Transcendental y Verdad Formal. EUMSA Navarra: 2002, p. 23.
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
As três virtudes intelectuais especulativas, segundo Tómás de Aquino
Sidney Silveira
Inteligência (dos primeiros princípios), ciência (hábito mental da verdade) e sabedoria (conhecimento arquitetônico: metafísica e teologia).
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Agradecimento
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Duas obras teológicas do tomista Édouard Hugon
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Hedonismo totalitário
Sidney Silveira
A humildade possui um dinamismo psicológico ascendente, pelo fato de que o seu ponto inicial de inflexão é o mais sólido senso de realidade. Em síntese, o humilde reconhece-se finito, propenso a erros, pobre mortal insignificante na cadeia dos acontecimentos cósmicos, tendente a doenças, premido por medos e paixões, etc. Acompanha, pois, a humildade uma perene e salutar autocrítica por meio qual se alcança a maturidade — visto que, como dizia Adler, o homem só é maduro quando abandona o egocentrismo. Na prática, a pessoa humilde vai progressivamente construindo a sua identidade sem anseios egolátricos ou quimeras a respeito de si mesma e do mundo. Portanto, sem neuroses.
Pode-se dizer que a humildade implica a mais segura trajetória de iluminação da inteligência, cujo primeiro passo é o reconhecimento da própria miséria. Ou seja, a alma humilde olha para si e para a realidade exterior e consegue aquilatar melhor as coisas, enxergando algo parecido com o que diz Vieira num de seus Sermões: a vida humana é o caminho de pó a pó; do pó que foi ao pó que há de ser. Ora, como indica o orador sacro neste notável escrito, em cada etapa do seu percurso existencial o homem é pó,[1] pois tudo o que tem pode desfazer-se, esfumar-se de uma hora para outra — riquezas, honrarias, prazeres, dinheiro, vantagens políticas e a vida mesma. A humildade é, pois, o primeiro degrau da sabedoria justamente porque abre os olhos do espírito.
Em contrapartida, o soberbo vive numa espécie de infelicidade onírica, pois, dada a sua falta de vida interior — refletida numa dolorosa incapacidade de ensimesmar-se, de enxergar em seu íntimo os bens espirituais que lhe conformam a alma —, ele acaba por criar um sistema compensatório de imagens e fetiches pelos quais obtém gozos dos mais diferentes tipos, porém mesclados a uma heideggeriana angústia ontológica da qual não consegue livrar-se; para tanto, precisaria enxergar a mentira existencial que elegeu como parâmetro de suas ações. Mas isto é quase impossível, pois os vícios mentais vão fechando o homem à contemplação de sua própria condição, dado que este caminho de descida espiritual pressupõe certa disposição psicológica habitual contrária à verdade, fruto de uma desordem dos afetos.
A principal característica da cegueira em que caminha o soberbo é o voraz anseio de ser ou parecer melhor que as demais pessoas. Pois bem, uma das conseqüências quase imediatas de tal postura é o histrionismo — proveniente do desejo de singularizar-se, tornar-se “único” custe o que custar. Estamos diante daquilo que São Bernardo chamava de singularitas: privata affectare cum gloria,[2] cujo conceito pode modernamente traduzir-se como “bizarro exibicionismo”. Nestes casos, o sujeito chega a descortinar de maneira teatral a própria vida privada perante o mundo, e ai daqueles que se mostrem contrários ao peculiar strip-tease de sua alma! Serão declarados inimigos mortais.
As paradas do orgulho gay nos dão um fiel retrato do histrionismo acima referido. Nelas, preferências sexuais são expostas numa carnavalesca vitrine como performática volúpia hasteada sob uma bandeira “social”, com o aplauso oportunista de políticos que contribuem subministrando recursos para estes eventos, seja usando os cofres públicos à revelia da opinião dos contribuintes, seja por intermédio de estatais como Petrobras, Furnas, etc. Nestas ocasiões, temos uma bela amostra da generosidade financeira e fiscal do Estado brasileiro quando se trata de trabalhar pela implantação de condutas inseridas na agenda globalista.
Seja como for, o fato é que, nessas paradas, diante do frenético espocar de flashes midiáticos, se estimula a curiosidade a respeito das práticas sexuais alheias, ao mesmo tempo em que os desfilantes se ufanam de suas potencialidades eróticas como se fossem troféus olímpicos. Observe-se que, em nossa época pós-cristã — e pós-moral, em clave nietzschiana —, não temos o direito de corar feito donzelas vitorianas diante de qualquer coisa. Mas isto não quer dizer que devamos simplesmente jogar fora o senso do ridículo; ele é um profilático escudo contra o tsunami de baboseira e insanidade que parece ter vindo para não deixar nada de pé.
Ao observar estas alegres festividades incentivadas pelo poder público, vemos o quanto estava certo Aristóteles ao destacar a função pedagógica do pudor na formação do caráter. Em resumo, o pudor natural (aidos) é o mecanismo de vigilância e autocensura sem o qual se torna impossível alcançar a virtude do autocontrole (encrateia), nota distintiva do homem bem formado. Neste contexto, o pudor serve como salutar freio psicológico, bússola interna que leva uma pessoa a evitar a desonra, a indiscrição, a imodéstia, a imprudência. O pudor em si não é virtude, mas uma das precondições da virtude, por ser o sentimento pelo qual habitualmente o homem foge às vilezas de todos os tipos.
Quando não passa pelo filtro do pudor natural em sua formação, o caráter se deteriora, pois o pudor funciona como instinto protetor que torna o homem precavido contra a exposição indevida de sua intimidade — seja a intimidade sexual, como no caso das paradas gays, seja a intimidade espiritual.[3] Em síntese, o pudor está para o caráter assim como a placenta está para o embrião, e, desde que seja equilibrado e não se transforme em timidez, a sua função na estrutura psíquica é importantíssima. Ora, numa época em que as engenharias sociais transformaram o mundo em algo semelhante ao descrito por Huxley e Orwell, o pudor natural é excelente medicina preventiva para não dizermos “amém” a situações tendentes a levar a alma a verdadeiros buracos. Ele é providencial contra vários tipos de manipulação.
Acrescente-se que há algo de macabro em transformar preferências sexuais em bandeira política. E mais: colocar isto na ordem legislativa do dia, criando leis severas para punir quem não comungue da coisa. Isto significa que já estamos vivendo no funesto mundo hegeliano no qual o Estado substitui a moral, ou melhor, em que a moral só tem algum sentido se for estatal. E aqui cabe indagar: haverá saída política para a situação presente? Ao que tudo indica, somente um gigantesco milagre poderia mudar a configuração atual, pelo simples fato de não existirem instituições com autoridade espiritual suficiente para pressionar os poderosos e capitanear as mudanças civilizatórias necessárias. Antes havia a Igreja, mas hoje um dos seus “dogmas” é o da “sã laicidade”, eufemismo teológico usado intra muros para amenizar o fato de que, como Pilatos, a Igreja hoje lava as mãos diante da débâcle política.
Podemos contemplar a curiosidade imatura estimulada pelas paradas gays à luz de uma verdade atemporal, reiterada desde sempre pela psicologia cristã: o curioso que lança os olhos às coisas que não lhe dizem respeito se encontra no primeiro degrau descendente da soberba.[4] Isto porque esse tipo de curiosidade é um claro vestígio de que a alma abandonou a própria interioridade para tornar-se refém de coisas fúteis, e daí a querer sobressair a qualquer preço é um salto não muito grande. Vale frisar que o estímulo a tal comportamento — ao mesmo tempo infantil e daninho — não é apanágio das paradas gays, mas uma das características da sociedade do espetáculo que dá forma ao mundo contemporâneo, no qual esses eventos ocupam lugar de destaque.
Um olhar desapaixonado leva-nos a constatar que, do ponto de vista político, as paradas gays são apenas mais uma pá de cal lançada sobre os vestígios de catolicismo no Ocidente. E não esqueçamos que a presente descristianização das sociedades teve na própria Igreja o ponto arquimédico, pois há quase cinco décadas ela abriu mão da apostolicidade (em prol do ecumenismo), do rigor de seu magistério tradicional (em prol da chamada “liberdade de consciência”, sobre cujo conceito muito já falamos no blog) e de sua multissecular doutrina política (em prol do laicismo). Em suma, hoje a Igreja não apenas não quer influir espiritualmente nas coisas políticas, mas chega a propor o estabelecimentode um poder político mundial...laico![5]. Ao modo de um Dante. Em tal cenário, certamente o católico pode e deve rezar para Deus dispor as coisas de outra forma, mas ciente de que tudo está nos desígnios da Providência, que transforma males em bens infinitamente superiores.
Dizia com acerto Jacob Burckhardt que toda ânsia de autoglorificação instaura relações despóticas e ilegítimas. Que dizer então da ânsia de autoglorificação baseada na preferência sexual das pessoas, seja qual for? Ou melhor: na transformação de certas práticas em algo constitucionalmente intocável, não passível de crítica de nenhuma natureza?
Ao observar a feérica caminhada das sociedades em direção a um hedonismo de cunho totalitário — inédito na história do mundo — vêm à minha mente algumas palavras do historiador alemão Leopold von Ranke, que dizia mais ou menos o seguinte:
Não é a cegueira ou a ignorância o que leva os homens e os Estados à ruína. É a falta de autodomínio o que conduz tudo ao caos, pois em geral os homens vêem a ruína diante dos seus olhos e ainda assim avançam em direção a ela.
EM TEMPO: Tenho recebido várias mensagens de pessoas preocupadas com a minha saúde, pois souberam do meu problema ao ler este texto, que foi o de maior número de visitas de agosto. Informo-lhes que provavelmente passarei por uma cirurgia cardíaca em breve (as chances de isto acontecer são de cerca de 90%). Darei notícias mais à frente. Seja como for, após perder emprego, ficar em situação crítica, etc., tudo está servindo para deixar-me com maior sensação de liberdade e entregar tudo nas mãos do Altíssimo. Neste contexto, reitero o agradecimento às pessoas que caridosamente me ajudaram no mês passado; a elas expresso minha gratidão e dedico minhas orações.
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1- "Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais; ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas; mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outras de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra é futura: mas a futura vêem-na os olhos; a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis est, et in pulverem reverteris: sois pó e em pó vos haveis de converter. Sois pó é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó; do pó que fomos ao pó que havemos de ser; (...) mas ou o caminho seja largo, breve ou brevíssimo, como é o círculo de pó a pó, sempre e em qualquer ponto da vida somos pó (...). Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida”. Pe. Antônio Vieira. Sermão da Quarta-feira de Cinza, pregado na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em Roma, no ano de 1670.
2- São Bernardo. Liber de Gradibus Humilitatis et Superbiae, Incipiunt Capitula: Superbiae Gradus in Descendendo, n. 14.
3- Se levarmos as premissas aristotélicas às últimas conseqüências, podemos ir além do Estagirita e elencar o pudor entre os ingredientes da prudência política, na medida em que o bom governante precisa ter esse faro para evitar situações que — pelo constrangimento criado para uma parcela dos cidadãos —, possam atentar contra o bem comum da Cidade. O despudor do governante, em contrapartida, pode levá-lo a criar situações incontornáveis, para si e para o seu governo.
4- Nas palavras do abade de Claraval, “curiositas cum oculis ceterisque sensibus vagatur in ea quae ad se non attinent”. São Bernardo. Op. cit, n. 14