terça-feira, 14 de outubro de 2008

A quimera da liberdade econômica absoluta e a crise atual

Sidney Silveira

Diante da crise financeira mundial e do socorro de bilhões de dólares (e de euros) que vários países estão dando com o intuito de evitar uma quebradeira generalizada dos bancos, torna-se necessário discutir algumas premissas implicadas nas teses dos defensores de um mercado absolutamente “livre”, sem amarras de nenhum tipo.

A questão, no momento, não é saber se o Federal Reserve agiu mal ou bem ao reduzir, em 2001, as taxas de juros nos EUA, a fim de baratear empréstimos e financiamentos — o que aqueceu, entre outros, o mercado imobiliário e acabou levando inúmeras pessoas a especular*, ou seja: a pegar empréstimos bancários dando em troca as suas próprias casas como garantia hipotecária, para comprar imóveis a preços baixos (dado o aumento da demanda), vendê-los por um preço maior e lucrar com a diferença. A história, depois, já é conhecida: grandes hipotecárias começaram a emprestar dinheiro a maus pagadores, cobrando um juro elevado (dado o maior risco desse mercado, chamado subprime), o que elevou a inadimplência a níveis estratosféricos — depois, é claro, de venderem em pacote essas carteiras a bancos de investimento (a um juro ainda maior!), os quais ficaram com “papel podre” na mão** assim que o Federal Reserve se viu na contingência de aumentar os juros***, desaquecendo o mercado imobiliário (então artificiosamente aquecido pela ação desses especuladores). Algumas instituições bancárias ficaram insolventes, pondo em risco o dinheiro dos correntistas.

Os teóricos ultraliberais criticam o atual governo republicano (liberal) por baixar os juros e dar algumas garantias para quem fizesse empréstimos, dizendo que, com isto, interveio indevidamente e atuou mal (pois não deveria mexer nos juros, que devem ser, em teoria, “naturais” [hã?!]) —, quando na prática foram alguns agentes econômicos que, atuando livremente no mercado, especularam e levaram à situação dramática que hoje atinge a economia mundial. O problema não foi, portanto, um suposto intervencionismo estatal, mas a especulação desenfreada de alguns desses agentes, que, sem uma regulamentação de fato séria que pusesse um mínimo freio ao seu jogo ganancioso e daninho, atuaram livre ou liberalmente. E nem pode residir o problema no remédio que agora é proposto: a ajuda financeira aos bancos, que, aos olhos desses teóricos radicais, é uma “traição” do governo do liberal George Bush.

Que dizem muitos desses economistas? Simplesmente o seguinte: que quebrem os bancos e as empresas hipotecárias que entraram no jogo! O mercado se auto-ajusta. Ora, será que os propugnadores de tal quimera dimensionam o que aconteceria às pessoas (incluindo eu e você, que me lê) e às empresas em todo o mundo, se o sistema financeiro internacional viesse à bancarrota? Estarão eles certos e os governos dos principais países europeus totalmente equivocados em sua tentativa de salvar as suas respectivas economias da catástrofe?**** O fato é que, para resguardar a sua teoria, os ultraliberais não se preocupam com que o mundo inteiro desabe. Pelo menos são coerentes com alguns de seus “princípios”: se não existe o bem comum, por que deveríamos defendê-lo?

A lógica do mercado livre (na óptica míope dos liberais econômicos) é a lógica que rege o mundo, é o fundamento da "moral" e das relações entre as pessoas. Mas vejamos uma aplicação prática, específica, dessa “liberdade”. Meia dúzia de especuladores consegue elevar o valor nominal de ações que não têm o menor lastro, por meio de estratégias de divulgação de números irreais ou superdimensionando investimentos futuros. Com isso, logram que vários agentes econômicos — entre os quais grandes bancos e bancos de investimento — comprem essas ações. Em algum momento, os compradores vêem que se meteram numa canoa furada: ficaram com uma fortuna em “papel podre”, pois esses títulos não têm por trás empresas sólidas a lhes dar lastro. Como se disse, alguns dos compradores são bancos e precisam arcar com os compromissos que têm com os seus correntistas, tanto pessoas físicas como jurídicas. Se quebrarem, quebrarão com eles pessoas e empresas (dos setores do comércio, indústria, serviços, etc.). E, quebrando estas, quebram os seus credores, no país e no exterior. Eis, então, configurada uma recessão internacional de proporções incalculáveis. Dirá o liberal: “Tudo bem, faz parte do jogo do livre mercado; uns ganham, outros perdem”. Ocorre que, quem perde, neste caso, é o conjunto da população.

Onde está a culpa dos governos numa ação como essa? (que não é, infelizmente, rara como gostaríamos]?***** Foram porventura eles que aumentaram artificiosamente o valor de ações que não possuíam lastro real? Ora, o mercado estava absolutamente livre, sem intervenções, quando a coisa toda aconteceu. Como, então, colocar a culpa nos governos pela crise? Esta é a tese de muitos ultraliberais: o governo "intervencionista" foi o culpado pelos maus investimentos (nome chique para especulação!) no mercado imobiliário norte-americano. Inacreditável! Os caras fazem a “m”... e a culpa é do governo! Inacreditável mas previsível, pois, assim como os comunistas, os liberais costumam tirar quaisquer responsabilidades de suas costas e jogá-las na dos outros...

Na verdade, tais ideólogos, defensores da economia absolutamente livre, se esquecem da cobiça humana. Têm uma visão sonhadora — tola e irresponsável — do ser humano, e são incapazes de ver que a atual crise é produto, precisamente, do laissez-faire moral e econômico que toma conta do mundo já faz alguns séculos, cujas premissas fundamentais temos denunciado em vários textos do blog. É delas que o liberalismo econômico decorre: falsas idéias de individualidade, de consciência, de liberdade, de “autonomia” da consciência...

* Chamo “especulação” à ação de atuar diretamente sobre a oferta e a procura de bens e serviços de modo a alterá-la — ou melhor: tirá-la artificiosamente do curso em que vinha ou viria. Por exemplo: um cambista que põe na fila trezentos agentes para comprar ingressos de um espetáculo para revendê-los a um preço maior, especula. Ou seja, reduz, com a sua ação, a oferta dos ingressos nos pontos de venda, concentra-a em si e cobra um gordíssimo adicional pela revenda, sabendo que a demanda continuará alta. No caso do mercado imobiliário norte-americano, como o custo do dinheiro lá é baixo, torna-se fácil especular: fazer crescer a demanda do mercado (não apenas deste, mas de qualquer mercado) a partir da injeção de um dinheiro que, por trás, tem a lhe garantir apenas algumas hipotecas ou então dinheiro emprestado por terceiros à guisa de hipoteca. Se por alguma contingência a demanda desse mercado cai, tem-se uma crise generalizada!
** Esse papel podre eram os títulos hipotecários, que perderam valor assim que o mercado imobiliário se desaqueceu.
*** Levando às últimas conseqüências as premissas liberais, cabe perguntar: deveria haver uma autoridade monetária (no caso americano, o Fed)?
**** Os jornais de hoje informam que os Bancos Centrais dos países europeus liberaram mais de 1 trilhão (!!!!) de euros para salvar as suas economias.
***** Há anos, comecei no jornalismo fazendo a cobertura dos movimentos da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, onde vi de perto inúmeros ardis do mercado de ações (muitos dos quais são absolutamente "lícitos" para um liberal de mercado, que trabalha com boatos e informações de coxia). Graças a Deus, logo saí dessa área...
Em tempo: Em reportagem de uma página n'O Globo de hoje (14/10), o Nobel de Economia Paul Krugman lembra que Alan Greespan foi alertado a respeito dos riscos de empréstimos no mercado subprime, mas não fez nada, sob a alegação de que o mercado resolveria isto sozinho... Disseram-lhe, na ocasião, para restringir os empréstimos irresponsáveis (com uma regulamentação específica!), mas o Banco Central não interveio e deixou os agentes atuar livremente, ou melhor: liberalmente. E a culpa agora, segundo os ultraliberais, é do governo "intervencionista". Dá para acreditar?