Espaço destinado a combater a insidiosa e multiforme cultura liberal, que tem entre as suas raízes mais daninhas: uma falaciosa noção de liberdade humana; a idolatria — implícita ou explícita — da consciência individual; a separação entre natureza e moral; a contraposição entre Estado e indivíduo; a dissolução da Religião em categorias morais sem fundamento metafísico; a perda da noção de bem comum político.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Nova edição da "Ave Maria Expositio", de Santo Tomás
O Papa na Roma bombardeada
Sidney Silveira
Em 19 de julho de 1943, a cidade de Roma começou a ser criminosamente bombardeada pelos aliados norte-americanos (causando mais de duas mil mortes, ao final de todos os ataques), malgrado os apelos do Santo Padre para que as forças em litígio poupassem as populações civis e os lugares sagrados. Em vão. Na imagem acima, uma foto do Papa Pio XII (que salvou muito mais judeus do que Oskar Schindler, e não apenas não recebeu crédito nenhum por isto, como passou ignominiosa e injustamente para a história como uma espécie de covarde político) no bairro San Giovanni, na Cidade Eterna — um mês após o bombardeio, clamando aos céus por paz. Colhi-a no site do amigo Allan Lopes.
Neste link, indico um texto interessante do Memorial dos Quatro Santos Coroados sobre Pio XII, e neste outro, um vídeo com imagens do bombardeio — tanto em tomadas aéreas, como de suas conseqüências em terra. Nesse vídeo de ótima qualidade aparece o Papa no momento em que a foto acima foi tirada. Para dimensionar o estrago, vale ainda ver este outro vídeo, desta vez da cidade de Terni — na Úmbria — devastada pelas bombas aliadas em 11 de agosto do mesmo ano.
E para quem acha que no amor e na guerra vale tudo, não custa remeter-nos a um texto do Contra Impugnantes em que se mostrava o pensamento do Aquinate sobre a guerra, em linhas gerais...
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
A tentação filosófica: “ancilla malorum"
Sidney Silveira
O fim da tentação diabólica, de acordo com Santo Tomás, pode ser vislumbrado numa dupla perspectiva: o fim último, que é simplesmente induzir os homens ao pecado e afastá-los de Deus; e o fim próximo instrumental, que é saber a que vício está mais inclinado um homem, para poder arrastá-lo ao pecado pela sedução (In. II. Sent. d.21.). Numa série de questões do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, o Aquinate demonstra que, na tentação proveniente do demônio ou do mundo, não há absolutamente nenhum pecado da parte de quem é tentado, mas a tentação da carne sempre traz consigo algum pecado — venial —, pois “não é só a carne que deseja, mas o conjunto [psicofísico humano], razão pela qual a tentação da carne [já] é pecado no que é tentado” (non enim sola caro concupiscit, sed conjunctum: et ideo talis tentatio est peccatum in eo qui tentatur). Tal doutrina do Aquinate certamente parecerá dura para a susceptibilidade do catolicismo contemporâneo*.
Não tenhamos porém excesso de escrúpulos, pois o próprio Doutor Comum nos lembra, na mesma questão, que nesta vida o homem não pode livrar-se das tentações da carne ao ponto de não ter nenhuma (homo non possit vitare tentationem carnis ita quod nullam habeat), até porque a tentação da carne implica a apreensão do bem deleitável pelos sentidos externos ou internos, e às vezes deparar com bens desta ordem é inevitável — sobretudo no mundo atual, orbitante em torno de fetiches e taras mil, às escâncaras, o que induz a imaginação a devanear. Convém, pois, neste ponto salientar que uma coisa é a tentação da carne, em sentido próprio (simpliciter), outra muito distinta são os deleites involuntários que ocorrem quando certos bens sensuais** aparecem aos olhos do cristão sem que ele os procure. Neste último caso não há sequer pecado venial, desde que logo ele desvie o olhar para fugir à tentação e não se meter em ocasião de pecado.
Assim, embora a tentação da carne (não confundida com o deleite involuntário) já traga consigo um pecado venial interior, pois implica voluntariedade em algum grau — o que aumenta a desordem da potência sensitiva interna da imaginação e predispõe ao ato exterior pecaminoso —, as tentações que visam às potências superiores da alma são muitíssimo mais deletérias e perigosas, pois se peca muito mais gravemente por soberba do que por paixão, e as tentações a que nos referiremos agora colocam-nos sob o risco de pecar por soberba — aparentando-nos, assim, ao inimigo da nossa salvação. Ora, o pecado de soberba é mais incompatível com a ação da graça do que o pecado da carne, dada a sua imensa gravidade, razão pela qual o soberbo tende a pecar habitualmente contra o Espírito Santo, e, neste caso, a remissibilidade dos seus atos é um verdadeiro milagre, de acordo com alguns dos maiores teólogos que a Igreja já produziu.
Uma dessas tentações mais sérias se dá propriamente com relação ao conhecimento, e, por conseguinte, à potência intelectiva. Chamemo-la de tentação filosófica, à qual tantos estudiosos sucumbiram. Se verificarmos bem a história da filosofia dos últimos 450 anos (mirando algumas teses dos mais famosos pensadores), observaremos até com certa facilidade como inúmeros homens doutos caíram em tentação filosófica, perpetrando verdadeiros absurdos contra a verdade e o senso comum, em geral para ser vistos como ‘originais’ aos olhos do mundo — como fica patente ao frisarem que as suas doutrinas eram novíssimas e punham abaixo o que fora feito até então: Descartes, Locke, Berkeley, Hume, Kant, Hegel, Schopenhauer, Bergson, Nieztsche, Husserl, Heidegger, Sartre, o ex-sacerdote Xavier Zubiri, etc. Algumas teses destes famosos perscrutadores das coisas filosóficas são tão abstrusas, mas tão claramente abstrusas, que não se pode chegar a elas sem algum grau de malícia ou ignorância culpável.
O Monsenhor Octavio Derisi, importante tomista argentino, demoliu muitas dessas teses em dois livros — Filosofía moderna y filosofía tomista e Tratado de existencialismo y tomismo —, mas não é o nosso propósito enumerar as suas refutações aqui, pois já o fizemos em outros textos do Contra Impugnantes. Por ora, importa-nos apenas fazer referência à tentação filosófica na mais grave das matérias em que se pode dar: nas coisas teológicas. Ora, se a matéria em que se dá o pecado é um dos fatores que especificam a sua gravidade, será tão mais grave cair em tentação filosófica quanto mais essa tentação aproxime o homem da possibilidade de dizer mentiras ou erros a respeito das coisas de Deus. É possível, neste caso, chegar até a mentira que Santo Agostinho classificara, no livro De Mendacio, como a mais nefanda de todas: a mentira religiosa — a que gera, ao fim e ao cabo, os heresiarcas inventores de falsas religiões, os cismáticos e os heréticos.
Infelizmente, com o fim do Index e com a revolução proveniente do Vaticano II, a Igreja deixou de se manter vigilante com relação a erros filosóficos — tanto assim que hoje os anátemas praticamente inexistem nesta matéria (e em qualquer outra, aliás). Quando muito, vemos uma recomendação discreta contra alguma leitura daquelas mais claramente loucas, mas a regra é ensinar nos seminários doutrinas gravemente atentatórias à fé, como se a sua assimilação acrítica já não constituísse, em si, um terrível dano para a inteligência dos futuros padres.
Não à-toa muitos sacerdotes hoje se tornam kantianos, hegelianos, bergsonianos, gadamerianos, espinosistas e até mesmo heideggerianos, tentando sintetizar em suas teses acadêmicas doutrinas contraditórias entre si, para tentar salvar algo da fé; mas os que levam as suas idéias às últimas conseqüências acabam abandonando a batina e/ou os votos de suas respectivas ordens. Ou, então, simplesmente passam a querer moldar a fé ao seu modo de vida. Ademais, como escritores ou filósofos são eles realmente incríveis: outro dia reli o texto de um ex-padre sobre Emmanuel Lévinas, e realmente ali não se dizia lé com cré. Ora, que ex-sacerdotes metidos em estudos filosóficos se tornem formalmente heréticos não é novidade, mas algo conseqüente com a sua apostasia***.
Outra coisa: este afastar-se da fé induzido por estudos equivocados ou feitos sem ordem não acontece apenas com futuros padres, mas também com os simples fiéis que estudam filosofia. Muitas vezes eles se alimentam de idéias que mais confundem a mente do que infundem nela algo de bom, e não admira mesmo tornarem-se uma espécie de sincretismo teológico ambulante — fazendo verdadeiros volteios e malabarismos lógicos para dar razões ao non sense.
Aos católicos que estudam filosofia, acima de tudo, o conselho prudencial é de que se enfronhem na obra de Santo Tomás antes de se ‘especializar’ neste ou naquele autor. Isto será um grande antídoto contra teorias engambelantes. Outra norma: se filósofos não-católicos se metem a escrever ou falar sobre as coisas da Igreja, o primeiro movimento com relação a eles deve ser de total desconfiança, é claro. A regra nestes casos é moldarem as coisas santas a seu ecletismo filosófico, e depois de certo ponto o dano será de ordem tal, que consertá-lo será quase um milagre. A filosofia de homens assim jamais poderá ser ancilla theologiae, até porque estão fora da fé — quando muito são "católicos de batismo" —, mas sim ancilla malorum, como se diz no título deste breve texto. Sobre algumas teses por eles perpetradas falaremos noutra oportunidade.
Que Deus nos livre de cair em tal tipo de tentação, cujas conseqüências são dramáticas para a alma.
Amém!
* Cito aqui Santo Tomás ipsis verbis, para não parecer que tirei tal idéia da minha cabeça. De toda forma, vale frisar que concordo inteiramente com ele neste ponto.
** A licitude ou ilicitude do gozo de um bem sensível depende, para Santo Tomás, de três coisas: da regra da reta razão, da lei natural e da lei eterna. Se o deleite proveniente da sensualitas agredir a uma destas três coisas, o gozo será ilícito.
*** O citado Xavier Zubiri, por exemplo, nos deixou textos sofiscadíssismos sobre a Eucaristia. A sua tese é a da “transubstantivação”, que segundo ele ocorre em lugar da transubstanciação definida solenemente pelo Concílio de Trento como Dogma. A propósito, num conhecido texto, lembra-nos Zubiri que São Boaventura e Santo Tomás divergiram neste ponto, e afirma que, para São Boaventura, não há presença de Cristo senão enquanto o pão é ‘alimento’, e não simplesmente no pão real — ou seja, na coisa em sua nua e crua realidade. Então discorre o pensador basco: “São Boaventura acreditava que, se um rato comesse o pão consagrado, não estaria comendo o Corpo de Cristo, pois aquele pão não teria para o roedor a ratio alimenti. Santo Tomás, por sua vez, pensou [pensou?] que a presença de Cristo é uma presença no pão enquanto realidade em e por si mesma. Modestamente, acho que São Boaventura tinha razão”. Ora, pelo amor de Deus, Zubiri!!! Santo Tomás não pensou serem as coisas assim, a menos que pensemos nós que os Dogmas são invencionices dos filósofos e podem mudar com o tempo; o fato é que a posterior definição dogmática do Concílio de Trento não deixa margem a quaisquer dúvidas, em seu Cânon 2:
“Se alguém disser que no sacrossanto sacramento da Eucaristia fica a substância do pão e do vinho juntamente com o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou negar aquela admirável e singular conversão de toda a substância de pão no corpo, e de toda a substância do vinho no sangue, ficando apenas as espécies de pão e de vinho, que a Igreja com suma propriedade (aptissime) chama de 'transubstanciação' — seja excomungado”.
Ou seja, dizer que Cristo não está de fato sob as espécies do pão eucarístico real, mas apenas enquanto esse pão possui a ratio alimenti para o espírito, é, para dizer o mínimo, uma heresia formal que excomungaria eo ipso quem a defendesse. Na verdade, o fato é que Zubiri — em razão da influência fenomenologista da qual não conseguiu jamais escapar, ao longo de sua trajetória — rechaça como equívoco o conceito aristotélico de “substância” e acaba metendo os pés pelas mãos. São Boaventura ao menos tinha a favor de sua imprecisão teológica o fato de que, em sua época, o Dogma ainda não estava solenemente definido no tocante ao modus dessa Presença Real de Cristo na Eucaristia, mas esta desculpa não serve para o filósofo basco. No fundo, a tese zubirirana com fumos de originalidade (em matéria grave) parece distantemente inspirada na “consubstanciação” defendida por Scot e também condenada pelo Concílio de Trento. A propósito, para o Doutor Sutil não haveria razões teológicas forçosas para aceitar a transubstanciação ensinada pela Igreja, como nos recorda aqui um scotista. Pelo menos Duns Scot dizia exteriormente ‘amém’ à transubstanciação, pois naquele tempo não se ousava contrariar frontalmente o Magistério.
Em tempo: Aproveito para desejar a todos os leitores deste nosso espaço um Santo Natal, repleto do espírito do Menino Jesus.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Duns Scot: completando a crítica
sábado, 18 de dezembro de 2010
A impenitência final
Sidney Silveira
No majestoso livro L’éternelle vie et la profundeur de l’ame, o Pe. Garrigou-Lagrange faz num dos capítulos um apanhado do que, em boa teologia, se chama impenitência final, ou seja: a total privação da graça eficaz no momento da morte, o que faz com que o pecador se perca definitivamente — e vá para o inferno. Em resumo, a alma neste estado fechou-se à reparação satisfatória que só poderia advir da contrição e dos conseqüentes atos de penitência exigidos pela sabedoria divina para que se salve.
Em sentido geral, a impenitência define-se como ausência de satisfação pelos pecados cometidos. E pode ser ela temporal, nos casos em que, no decurso da vida, o pecador habitualmente age contrariamente à lei divina, e por isso encontra-se numa situação de grave risco; ou eterna, no caso da impenitência de alguém que se mantém fechado à ação da graça no exato momento da morte. Aqui, a pessoa morre em estado de endurecimento do coração. Em todos os casos, a impenitência sempre pressupõe uma vontade aderida ao mal.
No caso da impenitência final (a que por analogia se chama eterna, citada acima), Garrigou nos aponta duas formas:
Ø A impenitência de fato, ou seja, a simples ausência de arrependimento na hora da morte. Acontece muitas vezes com pessoas colhidas pela morte súbita, ou com aquelas que simplesmente não se voltam a Deus, vivem como se Ele não existisse, e por isso não logram um ato de perfeita contrição ao morrer. Destes dizem alguns tomistas que foram surpreendidos pela morte;
Ø A impenitência da vontade, que é a resolução positiva de não se arrepender dos pecados cometidos. Neste último caso, a alma simplesmente escolhe não aceitar a Deus (sendo tal situação bem mais deletéria que a primeira, pois indica uma pena mais terrível a pagar).
Para Santo Tomás, esta última espécie de impenitência final constitui não apenas pecado de malícia, mas um enorme pecado contra o Espírito Santo. E há mais a dizer: a impenitência final voluntária comporta graus de endurecimento do coração, que são na verdade precondições psicológicas conducentes à morte em pecado. Seriam eles:
Ø O grau dos endurecidos pela ignorância culposa, que os faz preferir os bens temporais aos eternos. Se se esforçassem um pouco para saber o que deveriam (lei natural) e o que poderiam (lei eterna), não permaneceriam impenitentes. Aqui, não é ocioso lembrar que a lei natural, sendo a participação da criatura racional na lei eterna, pode não ser reconhecida pelo homem em estado de cegueira mental, por causa do pecado, não obstante a sindérese jamais se apague;
Ø O grau dos endurecidos pela covardia, que, embora mais esclarecidos (e, portanto, mais culpáveis) que os anteriores, não encontram forças para quebrar os laços da luxúria, da avareza, da ambição, etc. — e não pedem em oração a força que lhes falta;
Ø O grau dos endurecidos pela malícia, que jamais rezam e não raro se revoltam contra a Providência, após qualquer infelicidade. Muitas vezes se tornam escarnecedores dos homens, de Deus e da verdadeira religião, revoltados, blasfemadores e descontentes tanto com o bem como com o mal. Vivem, na prática, uma espécie de antecipação do agônico estado espiritual que os espera, no inferno, após a morte.
Grandes Doutores da Igreja sempre frisaram que, seja qual for o grau de obstinação no pecado, sempre há chance de salvação até o último instante de vida, pois “Deus não quer a morte do ímpio, mas que se desvie do seu caminho e viva” (Ezeq. XXIII, 14-16). Porém, no caso dos endurecidos pela malícia, a remissibilidade dos seus pecados é, como apontara o tomista Santiago Ramírez em alguns textos, um grande milagre, pois pecam eles gravemente contra o Espírito Santo.
Em síntese, a impenitência temporal voluntária predispõe grandemente à impenitência final, malgrado a salvação in extremis que Deus concede a muitos pecadores endurecidos. É famoso o caso do Santo Cura D’Ars, que, certa vez, disse à mulher de um suicida: “Senhora, o seu marido salvou-se. Acabara ele de se jogar de uma ponte quando, segundos antes da morte, a Virgem lhe obteve a graça da conversão. Lembrais que um mês antes, em seu jardim, ele colhera uma rosa e vos disse: ‘Leva-a ao altar da Virgem?' Pois bem, Ela não o esqueceu”.
Depois de citar este e outros casos, como o Santa Catarina de Sena, que convertera in extremis dois grandes criminosos, o Pe. Garrigou afirma neste capítulo do seu belo livro que bom mesmo é não adiar a conversão; e ótimo é pedir com fervor, por meio de uma Ave-Maria diária, a graça de uma boa morte.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
O filósofo com os inimigos da verdade a seus pés
Do ponto de vista espiritual, pisar, esmagar, pôr sob o escabelo dos pés, é uma imagem que em geral representa a vitória do bem sobre o mal, da verdade sobre o erro. Assim, diz-se que Maria esmagou a cabeça da serpente, por exemplo. Levando isto em conta, as iconografias acima mostram Santo Tomás literalmente pisando em Averróis, que, deitado, segura numa delas a inscrição sapientiam autem non vincit malitia (Sab. VII, 30). Nessa imagem, ao lado do Aquinate estão as quatro virtudes cardeais, chamadas pelo Angélico de principalíssimas: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança — sendo a Prudência uma virtude supracapital, na medida em que as demais não podem existir sem ela. Entre os vários significados implicados na pintura está o de que a sabedoria, se não estiver acompanhada das virtudes cardeais, não pode vencer a malícia nem os erros, razão pela qual, como se demonstrou dialeticamente noutro texto, não é lícito ao filósofo ser um boca-suja de linguagem torpe, quando se trata de refutar teses errôneas de qualquer espécie, em qualquer ocasião, fazendo uso de qualquer veículo de comunicação, em qualquer lugar — seja num programa de auditório entre rufiões ou na defesa magistral de uma tese, ao lado de grandes catedráticos. Isto porque a filosofia é uma qualidade adquirida pela alma, e não um ofício acadêmico a ser exercido em situações excepcionais...
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Efemérides vaticanas...
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
“A Síntese Tomista”; agradecimento
Sidney Silveira
Agradeço às pessoas que enviaram emails elogiando o conteúdo dos dois primeiros DVDs da coleção “A Síntese Tomista”. Não há como responder a todos, por absoluta falta de tempo. Faço-o aqui pelo Contra Impugnantes e reitero que o propósito maior deste trabalho é resgatar um tomismo hoje relegado a bolorentos manuais considerados ultrapassados pelos próceres daquilo que o Pe. Garrigou-Lagrange ironicamente chamava de Nouvelle Théologie — que devastou a doutrina católica de forma insidiosa.
No próximo ano esperamos conseguir não apenas tocar este projeto, mas também continuar as edições da Sétimo Selo, cuja linha é absolutamente a mesma. Prometo algumas novidades a partir de janeiro com relação a livros que, infelizmente, embora prontos, não conseguimos lançar neste segundo semestre de 2010.
Por isso, com relação aos DVDs, continua valendo o que se afirmou aqui.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
A necessidade da oração
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
O demônio no corpo e na alma: reflexos do inferno na cultura atual
Sidney Silveira
O demônio luta para apartar de Deus o maior número possível de almas. Com as suas tentações, obsessões ou possessões, o Maligno age em todos os âmbitos da vida humana com o sistemático propósito de deformar as almas conformando-as a si — e, por conseguinte, apartando-as da religião fundada por Cristo em pessoa, hoje tão combalida pelo modernismo que corrompe a sua doutrina em nível até então inimaginável. Esta é, a propósito, a grande luta que serve como sombrio pano de fundo de absolutamente toda a história humana, desde o paraíso edênico até o Juízo Final. Sendo assim, por trás de todas as filosofias errôneas, por trás de toda deformação do bem comum político, por trás de todo esfriamento da fé que as almas tíbias experimentam, por trás de todas as distrações pecaminosas que o mundo oferece, por trás de toda maldade, direta ou indiretamente, está o inimigo da nossa salvação.
Como não poderia deixar de ser, a deformidade de uma alma que se deixa seduzir pelo mal sempre acarreta reflexos para o corpo: seja o indolente abatido pela acídia; seja o descontrolado que não teve a fortaleza para reprimir os impulsos da ira má; seja o lúbrico cuja luxúria se deixa entrever no olhar e, também, na tensão de certos movimentos corporais; seja o murmurador que destila a sua inveja contra aqueles cuja excelência, espititual ou material, odeia; seja o comilão que chafurda porcinamente na gula; seja o ganancioso deprimido pela própria avareza, que o torna tão infeliz; seja o pretensioso que por sua vaidade faz malabarismos para colocar-se acima das demais pessoas; em suma, em todos esses casos, o corpo (ao qual a alma está indissociavelmente ligada como princípio superior) dá sempre algum sinal das patologias anímicas.
Mas diga-se que deformar o espírito é o propósito maior do demônio, sendo as deformidades corporais um acidente, em sentido metafísico. A sua meta é tornar o espírito humano canhestro, mesquinho, desmedidamente autoconfiante, soberbo, ganancioso, invejoso, distraído dos valores espirituais, avaro, vanglorioso, fantasmagoricamente sensual, refém de uma eriçada escrupulosidade, pusilânime no cumprimento dos deveres morais mais elementares, etc. Por essas e outras, ensina Santo Tomás na Suma Teológica que não pode haver amizade entre homens e demônios, pelo seguinte: em sentido próprio, a amizade é a comunicação objetiva de bens espirituais, e uma criatura cuja inteligência seja obcecada pela soberba e a vontade esteja obstinada no mal não pode comunicar esse tipo de bens de ordem superior.
Ora, toda vez que comunicamos a alguém um conteúdo inteligível qualquer, antes desconhecido por aquela pessoa — uma notitia veritatis —, diz-se por analogia que a estamos ‘iluminando’. Iluminar, pois, é manifestar a verdade e, manifestando-a, mostrar a fundamental relação dela com o fundamento de todas as verdades: Deus. Mas não podem os demônios fazer isto justamente por causa de sua perversidade supina, que adere ao mal sem paixões e com plena ciência, razão pela qual o Doutor Angélico afirma que o objetivo do demônio é diametralmente oposto a essa iluminação que culmina em Deus: é subtrair as pessoas da ordem divina, manipulando o pior tipo de mentiras — aquelas que usam de verdades isoladas para levar os homens ao erro com relação aos bens espirituais. Daí ser ele propriamente o ‘pai da mentira’, o pater mendacii.
Pois bem: começou-se dizendo que o mal da alma afeta o corpo. Ora, num mundo em que a Igreja depõe, a olhos vistos, o Magistério que custodia as verdades ensinadas por Cristo, nada mais conseqüente e lógico do que a multiplicação das deformidades espirituais e, também, das corporais. Hoje assistimos a uma satanização em massa, algo sem precedentes na história humana — por intermédio daquilo a que os idiotas chamam ‘cultura’ —, sob a omissão sumamente culpável das autoridades eclesiásticas, que, não raro a pretexto de defender a ‘liberdade’ de expressão, deixam de condenar publicamente os erros e as barbaridades mais gritantes que afastam o homem de Deus. Assim, vemos grandes hordas de pessoas moral e fisicamente deformadas caminhar loucamente para o Inferno, muitas vezes sem o saber, amputando em si não apenas a semelhança divina, mas também deformando o corpo de forma impressionante.
Na música, no cinema, no teatro, na literatura, na política, e, enfim, na filosofia, vemos claros sinais de práticas e idéias que literalmente fecham o homem ao influxo da graça. Ora, em qual época poderíamos conceber a existência de uma Church of Satan, como a que foi fundada nos EUA? Nem mesmo entre os pagãos! Em qual época poderíamos conceber ‘artistas’ que são claramente adoradores do Maligno, como por exemplo o roqueiro Marilyn Manson, que rasga bíblias em seus shows e pede aos centenas de milhares de jovens que o assistem que renunciem publicamente a Cristo e aceitem a Lúcifer como seu ‘mestre’ (cfme. foto acima)? Em qual época poderíamos conceber uma Igreja da Modificação do Corpo (Church of Body Modification), na qual os adeptos materializam no próprio corpo — consciente ou inconscientemente — os sinais mais gritantes de ódio a Deus?
Por isso digo, amigos: nunca a omissão da Igreja foi tão culpável, pois hoje, com a Internet, com um sistema de informações quase instantâneo em nível global, seria muito fácil não apenas evangelizar ex cathedra, como condenar solenemente essa cultura dos infernos. Ao escrever isto acabo de me lembrar de um padre neoconservador aqui do Rio de Janeiro — um desses afogados no superficialismo formalista — que me disse, para assombro meu, que a Igreja não pode anatematizar nada no plano da cultura, para não fazer publicidade das coisas más... Ao que respondi dizendo que a causa final do anátema não é haver ou não publicidade no mundo de determinada obra ou mentira, mas trabalhar para salvar as almas da perdição por meio de uma clara e magisterial defesa da verdade cristã e conseqüente condenação dos erros. A continuar nesse compasso, periga acabar bispo esse padre!
O fato é que a Igreja prefere hoje dizer que não canoniza nenhuma filosofia em detrimento das demais (como na mencionada Fides et ratio); prefere pregar o ecumenismo, em detrimento do discurso apostólico de conversão a Cristo e ataque aos falsos cultos e às falsas religiões. Alguém porventura imagina São Paulo, o Apóstolo dos Gentios, dizendo aos romanos que gostaria de manter com eles um frutuoso diálogo inter-religioso e crescer em comunhão na verdade e no aprendizado com os seus deuses pagãos? Porventura Cristo pode aprender algo com Nicodemos ou, o que é pior, com os mitólogos gregos ou romanos? Ora, pensemos nos mártires que cristianizaram o mundo dando o seu sangue, e teremos noção do tamanho da absurdidade do ecumenismo, em qualquer das suas sofísticas formulações...
Encerro este breve texto observando que, de todas as maldades coordenadas pelo Maligno e por seus malditos servidores humanos, as mais sutis são as que se infiltram na filosofia e, também, na teologia, pois impedem a formação de uma elite espiritual sem a qual nenhuma sociedade pode tonar-se sã. Invertem a ordem das verdades e inoculam entre elas um conjunto de erros tão metodicamente perpetrados, que a sua ação impressiona a quem se colocou em situação capaz de testemunhá-la. Noutro texto, falaremos de algumas dessas idéias difundidas no mercado ínfero-brasileiro das pseudofilosofias liberais.
* Onde estava escrito o nome de outro satanista, Charles Manson, leia-se Marilyn Manson. Na hora de escrever troquei os nomes, por distração... De toda forma, seja um ou outro, o que importa é que são odiosas tais criaturas, assim como todas as que lhes prestam um diabólico culto idolátrico — e ter contato voluntário com elas, procurando saber amiúde ou com riqueza de detalhes o que fazem e como fazem, implica por si só um enormíssimo pecado que clama aos céus. Basta saber que são publicamente contra Cristo e a favor do demônio para que as odiemos com todas as nossas forças e nos apartemos delas.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
A “Fides et Ratio”, de JP II, segundo o Pe. Calderón
Sidney Silveira
Alguns estudiosos contemporâneos da obra de Santo Tomás insistem em dizer que a Carta Encíclica Fides et Ratio, do Papa João Paulo II, é ‘tomista’. Ou, como já li e ouvi de alguns, é a prova da 'formação tomista' do Papa JP II. Abstenho-me de comentar os porquês de tais assertivas — que vão do simples dolo contra a verdade a uma espécie de ignorância culpável —, mas, em prol da verdade, deve-se dizer que o conteúdo doutrinário da referida Encíclica absolutamente nada tem de ‘tomista’ — nem que, para aplicar tal designativo, usássemos de uma forçosa analogia de atribuição.
A prova cabal, apodítica, do que afirmo está em um dos apêndices do livro “A Candeia Debaixo do Alqueire”, do Pe. Álvaro Calderón, no qual todas as principais proposições da referida Encíclica são colocadas sob uma lupa dialética que põe a nu toda a visão modernista que tal documento ecleciástico embute, desde o começo do texto até as palavras finais.
Diz o Papa JP II no início de sua famosa Encíclica:
“A Fé e a razão (Fides et ratio) são como as duas asas com que o espírito humano se eleva à contemplação da verdade”.
Comentando o proêmio papal, diz o Pe. Calderón que tal figura metafórica das asas expressa muito bem como se entendem as relações entre a Fé e a razão:
“A Fé aparece [ali] cooperando com a razão numa função paralela e de certo modo exterior, como a de uma asa com respeito à outra, diferentemente da imagem tradicional de uma fé que ilumina a razão, que atua por meio dela penetrando sua ação de modo interior, como a luz ao cristal”.
Depois desta arguta observação acerca da visão que a metáfora inicial da Encíclica embute, Calderón vai apontando em cada capítulo da Fides et ratio, para assombro dos leitores, a forma do pensamento moderno que subjaz ao texto e que inverte até mesmo as relações entre teologia e filosofia — deformando, por conseguinte, o tomismo. Diz Calderón, ao final desse apêndice: “O tomismo deve ser [na visão liberal] necessariamente novo, neotomismo, renovando-se a começar de suas raízes segundo as exigências e contribuições das recentes filosofias modernas. É ridículo pretender ser hoje tomista pura e simplesmente [simpliciter]! O problema do ser, ‘sem sombra de dúvida’, deve ser ressuscitado à luz dos neotons do cartaz modernista...
P.S. Aos interessados, o livro do Pe. Calderón pode ser encomendado pelo email rosangela@edsetimoselo.com.br.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Breve interstício lúdico
Sidney Silveira
Há quem, ao nos conhecer, se surpreenda por encontrar pessoas bem-humoradas, malgrado o teor da luta em que estamos e a situação dramática que a suscita. Ocorre que jamais nos esquecemos do seguinte: somos felizes porque lutamos pela Igreja e por sempre nos lembrarmos de que em Deus vivemos e somos. Ademais, sem o aspecto lúdico a vida perde muito do seu sabor cotidiano, e o próprio Santo Tomás dizia que o fastidium, ou seja, o tédio, é um impedimento formal para a aquisição do conhecimento. Daí que uma cota mínima de alegria despojada deva fazer parte de nossa vida, para o espírito não se tornar tenso ao extremo.
Assim, imbuído de uma alegria lúdica que me remete a uma paixão de infância, quando eu saía do estádio do Maracanã nos ombros do meu pai após cada vitória futebolística, deixo o registro de que o meu clube de coração, o Fluminense, o pó-de-arroz, tradicional tricolor das Laranjeiras (bairro da zona sul carioca), conquistou ontem, após 26 anos de espera, o título de campeão brasileiro de futebol.
Aqui, pois, remeto-nos ao hino mais bonito de todos os clubes brasileiros, tendo como pano de fundo um lindo sobrevôo sobre o Cristo Redentor, na minha cidade natal de São Sebastião do Rio de Janeiro; e, neste outro link, uma versão — dissonante, mas também bela — do mesmo hino tocado por um dos grandes pianistas brasileiros, igualmente torcedor do Flu. Hino que diz num trecho:
“Vence o Fluminense/com o verde da esperança/pois quem espera sempre alcança”.
P.S. E, ao meu amigo Angueth, torcedor do Cruzeiro de Belo Horizonte, segundo colocado deste ano, deixo o meu abraço de campeão!
P.S. 2. Vou "dedurar" o meu companheiro de blog e amigo Nougué: embora bem mais timidamente do que eu, é ele também um torcedor do Fluminense...
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
"TV" Contra Impugnantes: hábitos virtuosos e felicidade
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
O liberalismo que se travestiu de 'católico': Nougué em grande forma!
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Princípio da ação de duplo efeito – ainda a danada da camisinha
Sidney Silveira
Ao ler o texto do Contra Impugnantes sobre o arrazoado de um teólogo do Opus Dei que tentava justificar, do ponto de vista moral, o uso da camisinha em alguns casos, um amigo mandou-me uma objeção por email que culminava na seguinte e pertinente pergunta: não se aplicaria na hipótese mencionada pelo referido teólogo opusdéico (o Sr. Martin Rhonheimer), o chamado princípio da ação de duplo efeito? A resposta é “não”, mas merece algumas explicações para as coisas não jazerem nas brumas da obscuridade.
O mencionado princípio propugna o seguinte: muitas vezes, nas ações humanas, uma só causa acarreta dois efeitos: um bom, outro mau. Por exemplo: um sujeito, agindo em legítima defesa, acaba por matar o seu agressor. Na prática, ele não teve a intenção de assassiná-lo, mas no calor da luta não houve como evitar que tal sucedesse. Assim, à ação de legítima defesa seguiram-se a conservação da vida (efeito bom) e a morte do contendor (efeito mau não intencionado). Diz a respeito disto o Aquinate (os itálicos e negritos são meus):
“Nada impede que um só ato acarrete dois efeitos, dos quais apenas um é intencional, e o outro não. Mas os atos morais recebem a sua espécie do que está na intenção do agente, e não, pelo contrário, do que é alheio a ela, já que isto é acidental. (...) Pois bem, do ato de uma pessoa que se defende podem seguir-se dois efeitos: um, a conservação da própria vida; e outro, a morte do agressor. Tal ato, no que se refere à conservação da vida, nada tem de ilícito, dado que é natural a todo ser (esse) o conservar a sua vida tanto quanto possa. Com efeito, um ato que provém de boa intenção pode converter-se em ilícito se não é proporcionado ao fim. Por conseguinte, se alguém, para defender a própria vida, usa de maior violência do que precisa, este ato será ilícito. Mas se rechaça a agressão moderadamente, será lícita a defesa, pois, por direito, é lícito repelir a força com força, moderando porém a defesa de acordo com as necessidades da segurança ameaçada. Não é, pois, necessário à salvação que um homem renuncie ao ato de moderada defesa para evitar ser assassinado, dado que o homem está mais [naturalmente] obrigado a manter a sua própria vida do que a alheia”. (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 64, art. 7, resp).
Antes de prosseguir, lembro de ter ressaltado, no artigo anterior, que a licitude moral do ato de um hipotético homem casado soropositivo que usasse a camisinha com intenção de não infectar a esposa com o vírus HIV, mas não com a intenção de evitar a concepção (como supunha a hipótese do teólogo citado), só ocorreria se o homem ignorasse totalmente que o uso da camisinha evita a concepção. Antes de ir adiante, comece-se por observar que se trata de dois casos cuja diferença específica já se delineia a partir do seguinte dado: na hipótese do homem que, para defender-se, matou ao outro sem querer, o efeito mau era incerto e acidental, ao passo que na hipótese citada do sujeito que usa camisinha o efeito mau é totalmente certo e necessário, razão pela qual se frisou que ele só seria desculpável se ignorasse em absoluto o efeito mau; se o previsse com certeza, não apenas haveria mal moral, mas este seria proporcional ao efeito decorrente da ação. Em resumo, se alguém, ao agir, já conhece de antemão o efeito mau que se seguirá com relação ao que é mais importante no contexto da ação, do ponto de vista moral o princípio do duplo efeito não se aplica. Na prática o que acontece na hipótese do nosso teólogo, como também se salientou anteriormente, é o seguinte: o agente excluiu culpavelmente do seu horizonte o fim último da ação, para subordiná-lo ao fim intermediário.
Ora, de acordo não apenas com Santo Tomás, mas com uma série Santos e de Doutores da Igreja, é justamente nisto em que consiste o pecado: por razões que não cabe abordar neste breve texto, o homem escolhe um bem inferior em detrimento do superior ao qual está próxima ou distantemente ordenado. Desde o pecado de Lúcifer, que, amando a própria excelência (bem secundário em relação ao fim último a ser buscado), com um agônico non serviam se insubordinou a Deus (bem principal supremo), passando pelo pecado de Adão, que apeteceu o fruto da ciência do bem e do mal seduzido pela satânica idéia de que “seria como Deus”, até o pecado do homem caído, que já nasce com uma ferida na natureza e tantas vezes não consegue hierarquizar os bens que a vontade apetece, todo pecado implica essa desordem na escolha, ou seja, uma absoluta falta de subordinação entre os bens escolhidos pela vontade. Assim, se pegarmos o argumento do teólogo do Opus Dei e o revirarmos de todos os lados, o que restará não é outra coisa senão uma espécie de justificação teológica do pecado, em razão da má-aplicação de alguns princípios que na verdade não escapariam a um estudante do período escolástico...
Dada a forma como se dão os atos propriamente humanos, as coisas não poderiam ser diferentes. No caso da “intenção”, justamente pelo fato de a vontade não ser um apetite cego, mas agir orientada pela ratio boni subministrada pela inteligência, o ato interior de escolha já compõe um cenário que abarca tanto os fins como os meios da ação. Não há, portanto, como um dentista durante uma consulta ter a intenção de pôr fim à cárie do seu paciente se, neste mesmo ato, também não tem a intenção de dispor dos materiais adequados para curar o dente de acordo com a sua idéia inicial. Ora, numa quase miraculosa questão da Suma em que aborda a moralidade do ato interior humano, Santo Tomás demonstra, entre outras coisas, que: a) a vontade quando age em conformidade com a razão errônea é má; b) a bondade da vontade com relação aos meios depende da sua bondade em relação aos fins (ou seja: se o fim bom principal da ação é intencionalmente excluído, como no caso do nosso casado com HIV, os meios não podem ser bons); c) o grau de bondade ou malícia na vontade depende da bondade ou malícia da intenção com relação ao fim.
Aqui é importantíssimo fazer algumas considerações finais, pois a objeção propõe que o hipotético casado soropositivo tinha apenas a intenção de não contaminar a esposa, mas não a de evitar a concepção. Em primeiro lugar, como ficou claro, a intenção do fim já inclui a intenção dos meios (justamente porque a vontade é apetite intelectivo, e não uma potência cega da alma). Por esta razão é errôneo aplicar o princípio da ação de duplo efeito neste caso, porque, como vimos acima com Santo Tomás, este princípio só se aplica — com relação ao ato moral, que é o de que tratamos — se realmente o fim mau não é previsível com certeza. A propósito, este é o problema: falamos não do ato involuntário, mas do ato moral que pressupõe a intenção dos fins e dos meios, e, por conseguinte, um conhecimento mínimo deles, por parte do agente. Mas só mesmo um completo lunático acometido de ignorantia invencibilis, ao pôr uma camisinha, não saberia que ela impede a concepção, e, neste caso (excepcionalíssimo, diga-se), o ato não poderia moralmente ser qualificado como "ação contraceptiva voluntária". Mas não tomemos os loucos e tapados pelos sãos...
Ademais, ainda na Suma (I-II, q. 19), Santo Tomás demonstra cabalmente que a licitude do ato humano depende de que a intenção do fim (intentio finis) seja totalmente proporcional à intenção dos meios, quer dizer: que o ato interior da vontade faça instrumentalmente uso de atos exteriores que não se contraponham ao fim principal da ação (e nem à lei eterna, obviamente). Assim, se a intenção do fim na hipótese aventada fosse realmente evitar o contágio da esposa, o único ato proporcionado a ela, para que a intenção do marido fosse lograda com absoluta certeza, seria a abstinência sexual, até porque sabemos que acidentalmente o preservativo pode arrebentar... O problema é que isto é um enorme escândalo para o nosso mundo lúbrico: o sujeito ficar sem fazer sexo, seja por quanto tempo for.
Eu poderia estender-me e esmiuçar o problema de outros ângulos, mas as razões apresentadas parecem-me suficientes para pôr fim à questão. Encerro porém com um resuminho esquemático: na hipótese aventada pelo nosso teólogo as coisas não se passam como ele supõe, mas da seguinte forma, como é evidente: 1- o marido católico soropositivo conhece a lei eterna (e, portanto, sabe que o onanismo — seja natural ou artificial — é pecado que clama aos Ceus, e para comprová-lo basta ver o que fez Deus a Onã, conforme Gen. XXXVIII, 8-10); 2- o marido também conhece o fim natural do ato conjugal, pois tem plena ciência de que esse fim é a concepção, e que esta não pode ser impedida voluntariamente sem que se incorra no ato em pecado; 3- usando do pretexto de não contagiar a esposa, ele usa a camisinha e contraria a lei eterna e a lei natural num só ato. Aqui, não contagiar a esposa (fim natural intermediário acidental) se transforma no bem escolhido em detrimento do cumprimento da lei eterna (fim último sobrenatural necessário). Ocorre que no mundo tão mundano do catolicismo atual, falar de Deus, fim natural, fim sobrenatural, abstinência, pecado, etc., parece não apenas coisa vetusta, mas de doido varrido. Justificar o uso da camisinha em alguns casos, portanto, não me parece senão a conseqüência lógica de uma contínua perversão da doutrina, ao longo de mais de cinco décadas. O que virá nos próximos anos é algo que me assusta pensar. Mas diga-se ainda o seguinte: quanto à outra premissa do nosso teólogo (a de que a proibição do uso de preservativos não se refere propriamente às pessoas promíscuas, sejam prostitutas ou não, mas apenas às casadas que conhecem o ensinamento da Igreja), registre-se que se o uso da camisinha tem como finalidade evitar o contágio, do ponto de vista meramente humano isto pode ser um mal menor, mas não do ponto de vista da fé, que ensina divinamente que devemos nos afastar do pecado para salvar-nos, em Cristo. E é extamente isto o que acima de tudo se criticou desde o começo: o discurso de uma moral naturalista, sem a Cruz, totalmente contrária à fé — dentro da Igreja.
A coleção de DVDs “A Síntese Tomista”: importância do apoio
Sidney Silveira
Para lograrmos o objetivo inicial de lançar a cada mês dois DVDs da coleção A Síntese Tomista, precisamos vender um número mínimo de unidades mensalmente — número que ainda não alcançamos, pelo menos nestes primeiros 30 dias. Baixamos o quanto pudemos o valor dos DVDs (chegando a R$ 39,00 por unidade, para venda direta pelo blog). Como este serviço — é assim que o vejo —, para materializar-se, passa por várias etapas, há um custo de produção... Portanto, ele precisa pelo menos ser auto-sustentável economicamente.
Conto, pois, com o apoio dos católicos que entendem ser um projeto com este perfil algo que precisa ser urgentemente levado adiante, na medida em que o conteúdo filosófico e teológico produzido hoje por acadêmicos comprometidos com o status quo da Igreja pós-conciliar é, para dizer o mínimo, de um bom-mocismo irresponsável em alguns casos, estando a vaca no brejo e os intelectuais modernistas fazendo de tudo para defender o indefensável — ou então omitindo-se culpavelmente.
Não estamos “correndo a sacolina” ou coisa que o valha — pois prefiro fazer as coisas por minha própria conta e risco e oferecer um material já pronto —, mas será muito triste reduzir o ritmo da produção dos DVDs porque católicos que nos apóiam moralmente não dispõem de R$ 39,00 (ou R$ 78,00, no caso de aquisição de dois DVDs), mais o acréscimo do frete por SEDEX, para investir num projeto como este, embora muitas vezes gastem um valor muito maior com produtos ‘culturais’ de última, ou até mesmo em um simples almoço.
Tome-se este breve “pito” como um chamado à reflexão, apenas, pois não interromperei o projeto de forma alguma, mesmo que ele passe a caminhar com a velocidade contemplativa das vacas sagradas da Índia... Mas que é um grande desestímulo, é! Digo isso porque sei perfeitamente quantos leitores diários temos no blog, sei perfeitamente quantos emails recebo e a quantos consigo responder, às vezes com grande esforço.
Para ter-se uma idéia, foram comprados 30 DVDs em novembro, e precisamos que este número chegue a 80 por mês... Quantidade, a propósito, muitíssimo inferior ao nosso número diário de leitores e, dentre estes, das pessoas que mandam mensagens hipotecando apoio a este trabalho. "Enfin, c'est la vie".
Com relação à editora, no próximo ano espero poder anunciar grandes novidades.
domingo, 28 de novembro de 2010
Argumentos em favor do uso do preservativo — por um teólogo do Opus Dei
Sidney Silveira
Na acepção filosófica do termo, “argumento” não é um amontoado de idéias desconexas entre si, fruto de impressões fugidias, mas o procedimento (de caráter dialético) de estabelecer premissas claras a partir das quais se buscam extrair os corolários necessários. Não se trata, pois, de impressões esparsas nascidas de paixões, e muito menos de slogans publicitários.
Pois bem, de tudo o que li e ouvi até hoje em favor da fala do Papa Bento XVI sobre o uso da camisinha por prostitutos(as), quase nada se aproveitava, pois em geral não eram propriamente “argumentos”, e sim tentativas de defender a qualquer custo uma posição heterodoxa. Posição que, ademais, representa na prática uma moral humanista, naturalista e, ao fim e ao cabo, aporética, como o são todas as morais que excluem Deus do seu horizonte formal — as quais acabam por descambar ora no pragmatismo, ora no formalismo, ora no idealismo, ora no apriorismo moral categórico de cunho kantiano, quando não em puro e simples imoralismo.
Depois de Santo Tomás, nenhum teólogo digno deste nome ousaria, sob o risco de passar por ridículo, contrariar a seguinte tese: a norma suprema da moralidade é Deus, fonte de onde provêm todos os bens e todas as verdades. Em razão do público que nos lê, em geral composto de católicos, dou por pressuposta a tese, para não perder o fio da meada. Então, duas observações podem servir-nos de preâmbulo:
a) a norma formal suprema da moralidade é a lei eterna, sobre a qual já se falou em vários textos;
b) a norma formal próxima da moralidade é a reta razão humana, ou seja, a razão quando harmoniza-se com a lei eterna e, com isso, atualiza em si a lei natural — que está para a lei eterna como o efeito está para sua causa formal. Santo Tomás mesmo definira a lei natural como “participação da criatura racional na lei eterna”.
Assim, diga-se que qualquer ato contra a lei eterna é, de per si, imoral, além representar também um ato contra naturam intellectus, ou seja: a razão humana desvincula-se de qualquer regra extrínseca de ordem superior e se desnatura, pois o natural da inteligência é adequar-se formalmente aos entes (que são entes, lembremos, por participação no Ser divino), sendo a verdade justamente essa adequatio, que pode conduzir-nos de verdade em verdade até a fonte de todas as verdades: o Próprio Ser. Em resumo, a essência divina — o Ipsum Esse Subsistens — é o fundamento metafísico da essência de todas as demais coisas; por esta razão, qualquer moral que não se refira a Deus como ao seu fim último e ao seu princípio fundamental acaba por envolver-se em contradições insanáveis. A história da filosofia nos dá provas inequívocas disto.
Repita-se, pois, antes de prosseguir: qualquer ato contrário à lei eterna é intrinsecamente imoral, pois é ela a norma suprema da moralidade.
Pois muito bem. Enviaram-me agora o texto de um teólogo do Opus Dei, o padre suíço Martin Rhonheimer — texto esse veiculado pelo Oblatvs —, no qual se defende, com argumentos, o uso do preservativo em casos excepcionais. Estes são de fato argumentos, mas vejamos se se sustentam, e o façamos arrolando algumas premissas em que se apóia o texto do padre, que é professor de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.
Ei-las:
Ø Não existe ensinamento magisterial oficial sobre preservativos, pílulas anovulatórias ou diafragmas.
Ø Preservativos não podem ser intrinsecamente maus, pois somente os atos humanos podem sê-lo.
Ø Se pessoas promíscuas, prostitutas ou homossexuais (todas em grupos de risco de contrair o vírus HIV) ignoram o ensinamento da Igreja, deveriam elas usar preservativos para evitar a infecção? Diz Martin Rhonheimer: a norma moral que condena a ação intrinsecamente má não se aplica a estes casos. E acrescenta: “Não pode a Igreja estabelecer normas morais para comportamentos intrinsecamente imorais”. Faz ainda uma indagação especiosa o nosso teólogo: “Deveria a Igreja ensinar que um estuprador nunca deve usar preservativo, porque, ao fazer isso, além do pecado de violência sexual, ele estaria desrespeitando o Sexto Mandamento”?
Ø Um homem casado soropositivo que usa o preservativo para proteger a esposa da infecção não está agindo a fim de tornar a procriação impossível, mas para prevenir a infecção. Se a concepção é evitada, isto será um efeito colateral não-intencional, e, portanto, não determinará o significado moral da ação como um ‘ato contraceptivo’.
Agora, vejamos as proposições e as comentemos:
Ø Não existe ensinamento magisterial oficial sobre preservativos, pílulas anovulatórias ou diafragmas.
Aqui, como sempre, é de bom alvitre antes de tudo começar pela definição: Magistério é o carisma participado por Cristo à Igreja, nas pessoas do Papa e dos Bispos, para ensinar as verdades da fé — sejam verdades explicitamente reveladas, sejam verdades que, embora não tenham sido reveladas de forma explícita, estão de tal forma vinculadas àquelas que devem também ser ensinadas e defendidas, com exclusão das suas proposições contrárias e/ou contraditórias. O Magistério é, como se dizia antigamente, carisma veritatis certum, na medida em que por seus atos se ensinam e se preservam, com grau de certeza absoluta, as verdades relativas à fé e aos costumes à luz da fé.
Neste contexto, cumpre dizer que o Magistério da Igreja não é uma espécie de compêndio de casuística, ou seja, não á a aplicação ad infinitum de princípios a casos específicos, pois se assim fosse seria um Magistério materialmente interminável e antieconômico, dado que o mal é potencialmente infinito. Assim, 2+2=4; qualquer outra resposta é potencialmente errônea ao infinito.
Postas estas coisas, será mesmo verdadeiro dizer que o Magistério não se pronunciou de nenhuma forma sobre preservativos, pílulas anovulatórias, diafragmas, etc.? Pois bem, concedamos, a título de procedimento dialético, que o Magistério não se tenha referido materialmente a estes instrumentos contraceptivos. Ora, mesmo neste caso, isto não implica absolutamente que as condenações magisteriais de todos os atos contrários ao uso do sexo conforme a lei divina e a regra da reta razão não tenham abarcado, a fortiori, o uso destes instrumentos citados. Assim, se o sexo tem como fim primário a prole, dentro do matrimônio, quaisquer outros de seus usos que contrariem esse fim serão, para a doutrina católica, pecaminosos e imorais. Leia-se o que diz Pio XI em Casti Conubii: “(...) qualquer uso do matrimônio em cujo exercício o ato [conjugal] seja destituído (...) de sua natural virtude procriadora vai contra a lei de Deus e contra a lei natural”. Alguém teria coragem de dizer que esta claríssima proposição magisterial não abarca todo e qualquer meio contraceptivo, seja preservativo, diafragma, pílulas anovulatórias ou o que quer que seja? Não é necessário, pois, citá-los expressamente para que estejam formalmente proibidos ipso facto em razão da norma geral, da mesma forma como é desnecessário ao 5º mandamento (“Não matarás”) especificar se se trata de mortes cometidas a faca, a bala, por envenenamento, etc.
Repitamos: o Magistério não é um compêndio de casuística. E a proposição do nosso teólogo destacada acima parece pecar por excessivo apego à letra, em detrimento do espírito. Porém concedamos que materialmente estas coisas não tenham sido mencionadas pelo Magistério, mas ainda assim estão formalmente proibidas pela norma geral que se orienta pelos fins primários do ato sexual dentro do matrimônio (deixemos para adiante a objeção de que, nos casos de sexo fora do matrimônio, a norma geral não se aplicaria).
Ø Preservativos não podem ser intrinsecamente maus, pois somente os atos humanos podem sê-lo.
O mal é, no plano metafísico, uma privação, razão pela qual afirma Santo Tomás no magnífico De Malo, em resposta a uma objeção — obra que tivemos a honra de editar pela Sétimo Selo, em seu primeiro volume — o seguinte: “As trevas não são o contrário da luz, mas a sua privação” (De Malo, I, art. 1, ad. 5). Portanto, o mal em si não é algo, mas aquilo a que sucede uma coisa má é algo, pois o mal não é senão a privação de bem num ente particular. Em resumo, o mal é sempre um parasita do bem, pois depende ontologicamente do bem para manifestar-se. Assim, um dente cariado pode ser dito mau sem jamais deixar de ser dente, donde se vê com clareza que o mal é a corrupção de um bem particular na substância, mas ele mesmo não possui substância, nem essência, nem natureza, como a propósito mostrou Santo Agostinho no opúsculo De Natura Boni, também editado pela Sétimo Selo.
Pois bem, estabelecido este princípio, diga-se primeiramente o seguinte: no tocante ao mal que é o pecado (a corrupção do ato humano por um defeito na vontade), certas circunstâncias podem não apenas agravar a espécie do pecado, como podem até mudar o seu gênero. Mas o que é uma circunstância? Ouçamos novamente Santo Tomás: “Chama-se circunstância ao que cerca um ato, como se fosse um ato exterior considerado como extrínseco ao ato principal. Isto se dá por parte da causa final, quando consideramos por que se produziu algo; por parte do agente principal, quando consideramos quem o produziu; e por parte do instrumento, quando consideramos com que instrumento ou mediante que meios o ato se produziu” (De Malo, I, art.6, resp.). Neste luminoso artigo, o Aquinate mostra que a circunstância pode, sim, agravar o pecado dentro de uma mesma espécie, e até fazê-lo mudar de gênero.
Aqui, portanto, nos referimos à camisinha justamente como circunstância instrumental que serve materialmente ao pecado de onanismo. Tanto é assim que o uso do preservativo já foi chamado com muita razão por alguns teólogos do século XX de “onamismo artificial”, enquanto o “onanismo natural” seria o coitus interruptus com vistas a não permitir a ejaculação do sêmen no vaso natural apto a recebê-lo. Ademais, diga-se ainda no caso da camisinha que o fim para o qual ela foi inventada é intrinsecamente mau (impedir a contracepção, tendo como efeito colateral estimular uma vida hedonística em que o sexo vira um fim em si, portanto totalmente contrária aos costumes cristãos). Aqui, trata-se de um instrumento feito para contribuir materialmente com um ato humano contrário à lei eterna e à lei natural, pois perverte não apenas o sexo, no que diz respeito aos seus fins, mas alcança também a parte física, na medida em que o sêmen é impedido de alcançar a função natural para a qual Deus o fez.
Ademais, um instrumento feito para servir à ação má pode ser dito — sim! — mau. Para deixar as coisas ainda mais claras, tomemos como exemplo um produto erótico de um sex shop que, embora possa causar acidentalmente um bem (o gozo físico, o qual não pode ser dito mau em si), o faz de forma desordenada e totalmente contrária à lei divina e à lei natural, captada pela razão humana quando esta não está desvirtuada ou obnubilada por vícios. Ou algum teólogo católico ousaria dizer que um produto de sex shop não pode ser dito intrinsecamente mau do ponto de vista moral? E o mesmo se pode indagar acerca de um símbolo satanista, etc.
Outra coisa: embora o mal que é o pecado só se possa dar nos atos humanos, o mal que é a privação de bem na substância pode dar-se também nas coisas, na medida em que estas se corrompem em seus princípios entitativos. Ao nosso teólogo escapou esta distinção, pois certamente se a manejasse não concluiria que o mal se dá apenas nos atos humanos, porque sob outro prisma pode dar-se também o mal nas coisas. No caso da camisinha, podemos ainda acrescentar que ela, embora não seja o mal em si (que não existe), é má em seus fins. Considerá-la boa com relação aos meios (mesmo acidentalmente, como no caso de servir para evitar um contágio por vírus HIV) é justificar os meios pelos fins... E o problema que suscitou toda essa polêmica mundo afora, lembremos, é que o Papa Bento XVI dissera o seguinte: em alguns casos, o uso do preservativo pode ser considerado o primeiro passo rumo à moralização. Mas perguntemos: no contexto de que moral? Uma moral descatolicizada que não se subordina in primis à lei eterna, ou, quando o faz, é acidentalmente — e uma subordinação acidental é na verdade uma não-subordinação essencial.
Cada vez mais me convenço de que ser católico hoje, dentro da Igreja, requer boa dose de heroísmo, quando não de teimosia...
Ø Se pessoas promíscuas, prostitutas ou homossexuais (portanto, inseridas em grupos de maior risco de contrair o vírus HIV) ignoram o ensinamento da Igreja, deveriam elas usar preservativos para evitar a infecção?
Ao fazer-se esta indagação o nosso teólogo conclui apressadamente que “sim”, pois, em sua opinião, a norma moral que condena a ação intrinsecamente má não se aplica a estes casos. Além do mais, acrescenta o professor suíço uma proposição que, para mim, é um verdadeiro enigma esfíngico: “Não pode a Igreja estabelecer normas morais para comportamentos intrinsecamente imorais”. Deus do céu! Se as normas morais têm, entre outras coisas, justamente o fim de desaconselhar os comportamentos intrinsecamente imorais, como não se podem estabelecer normas morais em relação a eles? Aqui o teólogo do Opus Dei realmente mete os pés pelas mãos, como sói acontecer quando se cai no humanismo naturalista, ao abandonar-se o princípio fundamental acima citado: todo ato contrário à lei divina — que é a norma suprema da moralidade — é de per si ilícito e, portanto, pecaminoso. Veja-se que todo o arrazoado do professor suíço parece ter como fim claro estabelecer uma moral que se baseie em razões meramente humanas (no caso, salvar a vida: fim natural), mas sem vincular tais razões à salvação da alma (fim sobrenatural) e aos meios de que dispõe a Igreja para realizar este fim último querido por Deus para os homens. Aqui, os planos natural e sobrenatural estão separados por uma vala intransponível.
Com relação à pergunta “Deveria a Igreja ensinar que um estuprador nunca deve usar preservativo, porque, ao fazer isso, além do pecado de violência sexual, ele estaria desrespeitando o Sexto Mandamento?”, simplesmente abstenho-me de comentá-la...
Ø Um homem casado soropositivo que usa o preservativo para proteger a esposa da infecção não está agindo a fim de tornar a procriação impossível, mas para prevenir a infecção. Se a concepção é evitada, isto será um efeito colateral não-intencional, e, portanto, não determinará o significado moral da ação como um ‘ato contraceptivo’.
Aqui estamos diante de uma sutil petição de princípios, que é quando se afirma exatamente o que se quer provar. Isto pelo seguinte: para dar-se o que diz o nosso teólogo (alguém usar a camisinha sem intenção de impedir a concepção, mas apenas para proteger a cônjuge do contágio, o que “não determinaria o significado moral da ação como ‘ato contraceptivo’”), seria necessário que a pessoa que o realizasse desconhecesse totalmente que o uso do preservativo impede a concepção. Conhecendo este fim, não é possível que a contracepção seja, como quer o professor suíço, apenas um 'efeito colateral não-intencional'. O que acontece nesta hipótese é que o agente, conhecendo o fim primário o exclui no ato, subordinando-o ao fim secundário culpavelmente. É como uma mulher grávida que, para curar um dor de estômago, tomasse um remédio sabendo que, além de ser um forte analgésico, é um abortivo. Neste caso, também não se pode dizer com propriedade que o abortar foi efeito colateral não-intencional apenas porque a intenção primária foi curar a dor de estômago, a menos que a mulher desconhecesse totalmente que o tal remédio é abortivo. Aqui, o significado moral da ação é igualmente especificado pela exclusão consciente do fim último em favor dos fins intermediários. Ora, o pecado consiste exatamente nisto: numa desordem na ação humana que se desvia do fim último e, em geral, também dos fins intermediários em cada ordem de coisas.
Supor o contrário é, ademais, privar o ato humano da dinâmica das relações que nele se dão entre a inteligência a vontade, que se move sub ratione boni (pois a forma intelectiva do bem é o que a faz apetecer isto ou aquilo, como se explica no primeiro DVD da série A Síntese Tomista). Neste contexto, o pecado acontece justamente quando a vontade, movendo-se por um bem particular, não o subordina ao bem superior de acordo com a ordem da reta razão.
Portanto, para dar-se o que quer o nosso teólogo na hipótese aventada, a vontade precisaria ser absolutamente cega no ato da escolha (electione), o que não é verdadeiro, ou desconhecer que a camisinha impede a gravidez — salvo no caso excepcional em que ela arrebente in actu exercito fornicacionis... Mas, venhamos e convenhamos, nenhum lunático faz uso da camisinha desconhecendo que ela tem o efeito direto de impedir a concepção.
Em tempo: No plano conceitual teológico e filosófico, todos os desvios e adaptações eclesiásticas ao mundo moderno se dão em razão daquilo que o Pe. Calderón chama de giro antropocêntrico da doutrina magisterial. A perda do vínculo entre o natural e o sobrenatural, na doutrina, continua a acarretar verdadeiras tragédias litúrgicas e pastorais, e também teológicas, dado o avanço de uma moral que de católica pode até ter o nome, mas se a esmiuçarmos veremos que se trata de um humanismo, de um naturalismo com roupagem de fé...
P.S. O livro "Sobre o Mal" (De Malo), acima citado, pode ser solicitado à editora pelo email rosangela@edsetimoselo.com.br. Ele não está na loja virtual do site porque estamos resolvendo uns problemas técnicos. Mas está no catálogo.