Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana).
b.2.) A imaginação
Ficou evidente, no texto anterior, que o sentido comum — no plano dos chamados sentidos internos — tem um papel fundamental em nossa estrutura sensitiva, pois unifica os dados apreendidos pelos cinco sentidos externos e é, para estes, como que a fonte comum. Também frisamos que negar o sensus communis deixa-nos em uma espécie de encruzilhada teórica: ou ficamos sem explicar como se dá essa apreensão unificada de dados captados por sentidos cujos objetos formais são tão diferentes, ou então teremos de pôr a percepção sensitiva num mesmo plano dos atos da inteligência, como faz Xavier Zubiri — solução atraente, mas que traz um novo universo de aporias, das quais vamos tratar em outra ocasião.
Analisado o sentido comum, passemos ao outro sentido interno importantíssimo: a imaginação. Diz o já citado Martín Echavarría que a percepção unificada pelo sentido comum é recebida por esta outra potência chamada vis imaginativa, imaginatio ou phantasia, ou seja: a imaginação. A função dessa potência é reter e conservar — e posteriormente “formar” — a imagem do que foi recebido pelos sentidos externos (após queimar meu dedo no fogo, por exemplo, fica-me uma imagem da dor). A imagem retida será o ponto de partida da atividade dos outros sentidos internos, como veremos.
Busquemos um exemplo do que estamos dizendo. Se uma pessoa acende uma das "bocas" do seu fogão, o fogo é percebido por dois de seus sentidos externos (no caso, a visão e o tato). A cor do fogo (percebida pela visão) e o seu calor (pelo tato) são unificados pelo sentido comum — pois são percebidos num só e mesmo ato. Certo? Então, pensemos na hipótese de que essa pessoa, sem querer, se queima no fogo ao retirar uma panela do fogão. Essa dor, percebida pelo tato, deixará uma imagem (que é retida pela vis maginativa). Com este exemplo simples, fizemos um breve itinerário de tudo que se afirmou até aqui sobre o nosso aparato sensitivo, desde a apreensão dos sentidos externos. Mas, quanto à imaginação, ainda há mais.
Essa potência é também capaz de associar ou dissociar imagens, de modo a formar novos objetos jamais percebidos (cf. Suma Teológica, I, 78, a. 4). É importante dizer que essa capacidade associativa e dissociativa pode, em seu aspecto positivo, ajudar de forma “criativa” as potências intelectivas, ou então prejudicá-las destrutivamente — no caso em que essas imagens se dissociem por demais das coisas das quais foram geradas (por exemplo: uma pessoa que, tendo-se queimado cozinhando ao fogão, retém desproporcionalmente essa imagem de dor, a ponto de imaginar que o fogão a queimará por inteiro). Mas aqui entramos no tema das dores psíquicas (aegritudo animalis, na expressão de Santo Tomás), que é uma das especialidades do mesmo Martín Echavarría, autor cuja síntese magistral serve de base para a presente exposição.
Quando — ainda nesta série sobre a psicologia da ação — chegarmos às potências superiores, veremos que a gnosiologia de Santo Tomás nos propõe a teoria da “conversão à imagem” (conversio ad phatasma), que é mais ou menos assim: A imagem retida nesse sentido interno da imaginação, a qual é inteligível em potência, passa a ser inteligida em ato pelo chamado "intelecto agente", que abstrai dessa percepção sensorial a ratio entis. Isto já nos indica que um desgoverno na imaginação pode, sim, prejudicar grandemente a nossa inteligência (sendo assim, cuidado, amigos, com o que imaginam por aí!). Ademais, como já se disse várias vezes no blog, as potências sensitivas estão a serviço das intelectivas, pois estão ordenadas a estas últimas da mesma forma como a potência está ordenada ao ato.
Sugiro a quem vem acompanhando esta série que ou imprima os textos ou os guarde em algum arquivo, na ordem em que estão sendo publicados, pois não nos devemos esquecer o motivo de todos eles: mostrar que, para dizer o que é a ação humana, é necessário considerar tudo o que a implica. E então veremos que a teoria da ação humana do liberal Ludwig von Mises é, para dizer o mínimo, reducionista. É uma espécie de "não-ciência".