Carlos Nougué
É preciso dar alguma precisão e desdobramento, neste post, à série de distinções com que terminamos o artigo anterior.
• Ora, foi dito na primeira distinção que, “Se há identidade quanto ao objeto material nos diversos conhecimentos de Deus, não assim quanto ao aspecto formal”, e há nisso uma imprecisão. Porque diz a Constituição Dogmática sobre a Fé Católica do Concílio Vaticano I o seguinte: “O perpétuo sentir da Igreja Católica também sustentou e sustenta que há duas ordens de conhecimento, distintas entre si não só por seu princípio, mas também por seu objeto [grifo nosso]; por seu princípio, primeiramente, porque em uma conhecemos por razão natural, e na outra por fé divina; por seu objeto também, porque, para além daquelas coisas que a razão natural pode alcançar, são-nos propostos para crer mistérios escondidos em Deus, dos quais, se não tivessem sido divinamente revelados, não poderíamos ter notícia” (DS 3015). Ou seja, se por um ângulo geral até se pode dizer que um só é o objeto material dos diversos conhecimentos de Deus (ou seja, a verdade total que é Deus em sua unicidade), pelo ângulo do que efetivamente se conhece d’Ele também há, sim, distinção quanto ao objeto material.
• Por outro lado, este tema, qual seja, as relações entre fé e razão, necessita de um desdobramento obrigatório, para que não nos percamos entre tantos erros contemporâneos também a este respeito. E digamo-lo ao modo sintético que nos permite este espaço: assim como a criança está para o adulto, ou assim como a Lei Mosaica está para a Nova Lei evangélica, assim também a ordem natural do conhecimento de Deus está para a ordem da fé divina – ou seja, como o imperfeito para o perfeito. Veja-se o que diz Santo Tomás da diferença entre a Lei Antiga e a Nova Lei: “Pode-se tomar uma segunda razão [para tal diferença] da perfeição da lei nova, porque nada alcança desde o início a sua perfeição, mas só com certa ordem de sucessão, como sucede com o homem, que nasce criança e só progressivamente se torna adulto” (I-II, q. 106, a. 4, corpus). A Revelação, por seu lado, não só inclui as mais elevadas verdades alcançáveis pela razão natural do homem, mas, sem contradizê-las e, mais precisamente, assimilando-as a si, ultrapassa-as com a sua constelação de mistérios, dando-se assim, também neste caso, a ordem de sucessão do imperfeito para o perfeito.
• Por outro lado, a fé não é dada no vazio, mas é “vertida”, como dizia Marcel de Corte em A Inteligência em Perigo de Morte, “no vaso da razão”. Diz ainda o Concílio Vaticano I: “O assentimento da fé não é de modo algum um movimento cego da alma” (DS 3010), e por esse motivo há um discurso racional que conforma certa inteligência ou ciência da fé. É justamente por isso que diz o Papa Pio XII em Humani Generis: “A razão só poderá exercer tal ofício [ou seja, servir à fé] de modo apto e seguro se tiver sido cultivada convenientemente, isto é, se tiver sido impregnada daquela sã filosofia que já é como que um patrimônio das atuais gerações cristãs e que, conseqüentemente, goza de uma autoridade de ordem superior, porque o próprio Magistério da Igreja utilizou os seus princípios e as suas principais asserções [...] para comprovar a própria Revelação divina” (DS 3892). “A Igreja”, continua o Papa, “exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas filosóficas segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico”, porque “a sua doutrina soa em uníssono com a Revelação divina e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé” (DS 3894). “É altamente deplorável”, portanto, como conclui Pio XII, que alguns, “enquanto desprezam esta filosofia, louvem outras [...], o que nenhum católico pode duvidar que seja de todo falso, principalmente quando se trata dos falsos sistemas chamados imanentismo, idealismo e materialismo, seja histórico ou dialético, ou ainda existencialismo, tanto se defende o ateísmo como se meramente impugna o valor do raciocínio metafísico” (idem). Ah, como tudo isto deve ser difícil de entender para um liberal que se quer católico! Para entendê-lo, precisa ele antes despir-se integralmente dos princípios liberais. Feito isto, porém, verá quão mais racional é erguer-se sobre os alicerces solidíssimos da Revelação e da Doutrina Perene, e deixará de construir sua casa sobre as areias movediças da (ins)ciência individual.
• Uma resposta a uma objeção: o que se chamou aqui de “teologia natural” em contraposição a “teologia divina” (ou seja, aquela que versa sobre as verdades divinas reveladas) é o mesmo que autores como Régis Jolivet chamam de “teodicéia”, ou seja, aquilo que é coroamento da filosofia ou da metafísica e que versa sobre as verdades divinas passíveis de ser conhecidas naturalmente pelo homem. Por que a preferência pela forma que usamos em detrimento da usada, entre outros, por Jolivet? Porque o termo “teodicéia” (do alemão Theodicee <>theós, “deus”, “divindade”, + grego díke, “justiça”) foi cunhado por Leibniz para nomear a doutrina que busca conciliar a bondade e a onipotência divinas com a existência do mal na Criação. Mas isto nada tem que ver com o que Jolivet busca nomear. Ora, em filosofia como em teologia a precisão terminológica tem importância decisiva (donde ser imprescindível que nos valhamos amiúde de termos gregos e latinos, sem os quais o discurso perde justeza e fica ao sabor da infixidez das línguas atuais [voltaremos ao assunto]). Logo, como parece que não devemos usar o termo “teodicéia”, não há motivo para deixarmos de usar o de “teologia natural”.
Em tempo: Qual será a força, a eficácia e a obrigatoriedade das palavras do Magistério? Responde a isso o Concílio Vaticano I, na Constituição Dogmática Dei Filius, c. 3 (Dz 1792): “Assim, deve crer-se com fé divina e católica em todas as coisas que estão contidas na palavra de Deus escrita ou tradicional e que são propostas pela Igreja, ora por juízo solene, ora por magistério ordinário e universal, para ser cridas como divinamente reveladas”.
É preciso dar alguma precisão e desdobramento, neste post, à série de distinções com que terminamos o artigo anterior.
• Ora, foi dito na primeira distinção que, “Se há identidade quanto ao objeto material nos diversos conhecimentos de Deus, não assim quanto ao aspecto formal”, e há nisso uma imprecisão. Porque diz a Constituição Dogmática sobre a Fé Católica do Concílio Vaticano I o seguinte: “O perpétuo sentir da Igreja Católica também sustentou e sustenta que há duas ordens de conhecimento, distintas entre si não só por seu princípio, mas também por seu objeto [grifo nosso]; por seu princípio, primeiramente, porque em uma conhecemos por razão natural, e na outra por fé divina; por seu objeto também, porque, para além daquelas coisas que a razão natural pode alcançar, são-nos propostos para crer mistérios escondidos em Deus, dos quais, se não tivessem sido divinamente revelados, não poderíamos ter notícia” (DS 3015). Ou seja, se por um ângulo geral até se pode dizer que um só é o objeto material dos diversos conhecimentos de Deus (ou seja, a verdade total que é Deus em sua unicidade), pelo ângulo do que efetivamente se conhece d’Ele também há, sim, distinção quanto ao objeto material.
• Por outro lado, este tema, qual seja, as relações entre fé e razão, necessita de um desdobramento obrigatório, para que não nos percamos entre tantos erros contemporâneos também a este respeito. E digamo-lo ao modo sintético que nos permite este espaço: assim como a criança está para o adulto, ou assim como a Lei Mosaica está para a Nova Lei evangélica, assim também a ordem natural do conhecimento de Deus está para a ordem da fé divina – ou seja, como o imperfeito para o perfeito. Veja-se o que diz Santo Tomás da diferença entre a Lei Antiga e a Nova Lei: “Pode-se tomar uma segunda razão [para tal diferença] da perfeição da lei nova, porque nada alcança desde o início a sua perfeição, mas só com certa ordem de sucessão, como sucede com o homem, que nasce criança e só progressivamente se torna adulto” (I-II, q. 106, a. 4, corpus). A Revelação, por seu lado, não só inclui as mais elevadas verdades alcançáveis pela razão natural do homem, mas, sem contradizê-las e, mais precisamente, assimilando-as a si, ultrapassa-as com a sua constelação de mistérios, dando-se assim, também neste caso, a ordem de sucessão do imperfeito para o perfeito.
• Por outro lado, a fé não é dada no vazio, mas é “vertida”, como dizia Marcel de Corte em A Inteligência em Perigo de Morte, “no vaso da razão”. Diz ainda o Concílio Vaticano I: “O assentimento da fé não é de modo algum um movimento cego da alma” (DS 3010), e por esse motivo há um discurso racional que conforma certa inteligência ou ciência da fé. É justamente por isso que diz o Papa Pio XII em Humani Generis: “A razão só poderá exercer tal ofício [ou seja, servir à fé] de modo apto e seguro se tiver sido cultivada convenientemente, isto é, se tiver sido impregnada daquela sã filosofia que já é como que um patrimônio das atuais gerações cristãs e que, conseqüentemente, goza de uma autoridade de ordem superior, porque o próprio Magistério da Igreja utilizou os seus princípios e as suas principais asserções [...] para comprovar a própria Revelação divina” (DS 3892). “A Igreja”, continua o Papa, “exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas filosóficas segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico”, porque “a sua doutrina soa em uníssono com a Revelação divina e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé” (DS 3894). “É altamente deplorável”, portanto, como conclui Pio XII, que alguns, “enquanto desprezam esta filosofia, louvem outras [...], o que nenhum católico pode duvidar que seja de todo falso, principalmente quando se trata dos falsos sistemas chamados imanentismo, idealismo e materialismo, seja histórico ou dialético, ou ainda existencialismo, tanto se defende o ateísmo como se meramente impugna o valor do raciocínio metafísico” (idem). Ah, como tudo isto deve ser difícil de entender para um liberal que se quer católico! Para entendê-lo, precisa ele antes despir-se integralmente dos princípios liberais. Feito isto, porém, verá quão mais racional é erguer-se sobre os alicerces solidíssimos da Revelação e da Doutrina Perene, e deixará de construir sua casa sobre as areias movediças da (ins)ciência individual.
• Uma resposta a uma objeção: o que se chamou aqui de “teologia natural” em contraposição a “teologia divina” (ou seja, aquela que versa sobre as verdades divinas reveladas) é o mesmo que autores como Régis Jolivet chamam de “teodicéia”, ou seja, aquilo que é coroamento da filosofia ou da metafísica e que versa sobre as verdades divinas passíveis de ser conhecidas naturalmente pelo homem. Por que a preferência pela forma que usamos em detrimento da usada, entre outros, por Jolivet? Porque o termo “teodicéia” (do alemão Theodicee <>theós, “deus”, “divindade”, + grego díke, “justiça”) foi cunhado por Leibniz para nomear a doutrina que busca conciliar a bondade e a onipotência divinas com a existência do mal na Criação. Mas isto nada tem que ver com o que Jolivet busca nomear. Ora, em filosofia como em teologia a precisão terminológica tem importância decisiva (donde ser imprescindível que nos valhamos amiúde de termos gregos e latinos, sem os quais o discurso perde justeza e fica ao sabor da infixidez das línguas atuais [voltaremos ao assunto]). Logo, como parece que não devemos usar o termo “teodicéia”, não há motivo para deixarmos de usar o de “teologia natural”.
Em tempo: Qual será a força, a eficácia e a obrigatoriedade das palavras do Magistério? Responde a isso o Concílio Vaticano I, na Constituição Dogmática Dei Filius, c. 3 (Dz 1792): “Assim, deve crer-se com fé divina e católica em todas as coisas que estão contidas na palavra de Deus escrita ou tradicional e que são propostas pela Igreja, ora por juízo solene, ora por magistério ordinário e universal, para ser cridas como divinamente reveladas”.
Em tempo 2: Falando do pensamento filosófico moderno começado em Descartes, diz Étienne Gilson, com muita propriedade, que se trata antes de um problema de “psicopatologia”. Pois bem, com Jacques Maritain temos, propriamente, um problema de distúrbio intelectual. O mesmo homem que, ao escrever sobre Rousseau, disse: “Cristo não pode ser separado de sua Igreja. O cristianismo não é vivo senão na Igreja, fora dela morre, e, como todo e qualquer cadáver, entra em deliqüescência. Se o mundo não vive do cristianismo vivo na Igreja, morre do cristianismo corrompido fora da Igreja. De maneira alguma pode evitá-lo e desfazer-se dele. Quanto mais a raça humana renega o seu Rei, tanto mais duramente o tem de suportar”, esse mesmo homem dirá algum tempo depois, em Cristianismo e Democracia, sem nem sequer avisar que havia mudado da água para o vinho: “Não é nas alturas da teologia, mas na profundidade da consciência profana e da existência profana que o cristianismo atua assim, assumindo às vezes formas heréticas ou até formas de revoltas em que parece negar-se a si mesmo [...]. Não foi dado aos crentes integralmente fiéis ao dogma católico, mas aos racionalistas, proclamar na França os direitos do homem e do cidadão; aos puritanos na América dar o golpe de misericórdia na escravidão [acho que ele nunca ouviu falar na nossa católica Princesa Isabel...]; aos comunistas ateus abolir na Rússia o absolutismo do proveito privado”.
Ufa, encontramos enfim o "pai" da teologia da libertação!
Ufa, encontramos enfim o "pai" da teologia da libertação!
(Continua.)