Carlos Nougué
“Um contemporâneo de Beethoven dizia que após tê-lo escutado [tocar] ao piano [a Appassionata] tinha sido incapaz de encontrar seu chapéu na rouparia!”, conta ainda o Padre Labouche (idem).
Terminada assim a análise da Appassionata, e antes de chegarmos às conclusões últimas sobre o "assunto" Beethoven, vejamos o que contava Berlioz do “entusiasmo frenético” causado entre os parisienses pelas três primeiras execuções da Quinta Sinfonia de Beethoven: “O auditório, num momento de vertigem, cobriu a orquestra com seus gritos; eram exclamações furiosas, mescladas de lágrimas e de explosões de riso... um espasmo nervoso agitava a sala toda” (apud Padre Labouche, ibid.). Pergunta-se o Padre Labouche se “essa reação não é aparentada à de uma multidão num concerto de rock”. E responde:
“— Enquanto música revolucionária, cujas audácias e violência rítmicas [...] e agudos contrastes harmônicos destruíam as regras musicais da época: sim. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos.
— Enquanto obra de um músico que dominava perfeitamente um material musical melódico e harmônico original e muito rico, mesmo num contexto agitado e passional: não” (idem).
Interrompo aqui o texto do Padre para dizer que tomo essa distinção para resolver a questão central que me moveu a escrever esta pequena série de posts: Beethoven era inegavelmente um gênio da música; mas boa parte de sua obra, tal como a sonata Appassionata, não só estava a serviço de algo mau, mas era má em si. Vejamo-lo mais de perto em conclusões últimas.
a) Essa parte da obra de Beethoven rompe inegavelmente*(não se trata de desenvolvimento) com a tradição musical que, começando com o canto gregoriano e passando pela polifonia clássica, termina na arte contrapontística de Bach. (E não importa que Beethoven admirasse tanto Bach e até se tenha inspirado nele certo número de vezes, a saber, quando suas peças eram mais aparentadas ao classicismo de um Haydn ou de um Mozart, cuja música, porém, se era caudatária de Bach, e o era, já representava, como já vimos, uma queda do ponto de vista espiritual, ou seja, com respeito ao fim.)
b) Beethoven não tinha por fim, em sua música, “louvar a Deus” nem, em boa parte dela, “recrear a alma dentro de justos limites”, que, como já vimos, são dois dos três verdadeiros e justos fins da música (e da arte em geral), abaixo apenas do fim diretamente litúrgico, que compete sobretudo ao canto gregoriano e à polifonia clássica; esses fins sempre supõem que a música expresse alguma harmonia: a da alma humana, a social, a cósmica, a celeste, a divina (como já disse, para Bach a forma musical chamada fuga era uma expressão das processões divinas). Boa parte da obra de Beethoven tinha outros objetivos, quais sejam: 1) expressar as paixões em que se debatia ou dilacerava a sua própria alma, ou seja, a sua desarmonia; e/ou 2) expressar a desarmonia social da revolução, louvando-a; e/ou 3) expressar o brilho-sombra que domina boa parte da arte romântica, como é também o caso da sonata Appassionata, e que, ao fim e ao cabo, é ainda uma desarmonia da alma; e/ou 4) expressar uma tristeza e melancolia profundas, talvez por um amor impossível, como na sua “Sonata ao Luar”, bela, mas ainda mais melancólica do que, por exemplo, os Noturnos de Chopin (como já disse e como veremos na última série de artigos meus sobre a arte, a melancolia é parte integrante de toda a arte, mas até certo ponto, ponto que é demasiadamente ultrapassado pelos românticos); e/ou 5) louvar não a Deus, mas o homem, como na sua Nona Sinfonia, cujo último movimento, cantado, tinha por texto a “An die Freude” (Ode à Alegria) de Friedrich Schiller, inspirada precisamente no ideário liberal do Iluminismo — e esta é certamente uma das maiores e mais tristes desarmonias: a substituição do Criador pela criatura. (Aliás, o coral beethoveniano com a “Ode” de Schiller é, desde 1985, o hino oficial da União Européia, como escrevi no Prefácio à Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Martínez Barrera.)
c) Como a maneira artística de expressar é, mutatis mutandis, a da onomatopéia (ou seja, aquilo que expressa ou representa tem características intrínsecas análogas ao que é expresso ou representado), a arte que expressa alguma harmonia (humana, social, cósmica, celeste, divina) tem de ser intrinsecamente harmônica; ao passo que a que quer expressar qualquer classe de desarmonia há de ser, por seu lado, intrinsecamente desarmônica, como vimos ser o caso da sonata Appassionata de Beethoven, e como é o caso, digo, de boa parte de sua obra.
d) Por fim, por tudo quanto vimos aqui, a sonata Appassionata, bem como, digo, boa parte da obra de seu autor, tem efeitos daninhos sobre o ouvinte.
* Disse-se acima que certa “parte da obra de Beethoven rompe inegavelmente (não se trata de desenvolvimento) com a tradição musical que, começando com o canto gregoriano e passando pela polifonia clássica, termina na arte contrapontística de Bach”, e isso é certamente mau. Bem sei que vivemos num mundo que se acostumou a considerar boas as rupturas na arte: quanto mais revolucionário, quanto mais profundo for o rompimento de um artista com a tradição, mais genial ele será. Ora, isso já é parte do espírito revolucionário que, a começar no bojo da própria Idade Média final, acabou por desviar os povos do seu fim último: primeiro, a ruptura de Duns Scott com Santo Tomás, à qual se seguirão, mais adiante, as de Guilherme de Ockham, Descartes, Kant, etc., etc., etc.; depois, a da Renascença antropocêntrica com o Medievo teocêntrico; depois, a da revolução industrial e da revolução francesa com a economia corporativa antiga para transformar os trabalhadores em massa assalariada, e com os regimes antigos para transformar os homens em massa eleitoral dos partidos políticos, e com a Igreja para transformar a religião, quando muito, em assunto de foro íntimo; depois, a do comunismo com o que restava de civilização cristã; e, por fim, a do Maio de 68 com o que restava de natural no homem. E tudo isso é inegavelmente mau, ou não?
Em tempo 1: No campo da música, aquela revolução começada por Beethoven vai dar na música “erudita” moderna, atonal, dodecafônica, ou melhor, cacofônica, irritante, exasperante. Melhor ainda: é o começo de uma revolução permanente, cujo ápice será, talvez, a peça “4’33’ (ou “4 minutos e 33 segundos”, isto é, 273 segundos, número que corresponde ao zero absoluto na escala Celsius), de John Cage: nem um som musical, nem uma nota, nada; silêncio total. Sim, porque toda e qualquer revolução é entrópica: tende à revolução permanente e, propriamente, à aniquilação final. Exagero? Não, de jeito algum: John Cage foi influenciado pelo zen-budismo, que, como todo o budismo, e como dizia Chesterton, “busca o nirvana, que é outro nome do nada”.
Em tempo 2: Tudo quanto se diz aqui pressupõe a análise do belo, a qual está presente na tantas vezes referida entrevista que dei em Anápolis ao Prof. Cotrim e estará presente, muito mais desenvolvidamente, num futuro escrito, de fôlego e alcance bem mais amplos.
(Continua no próximo e último post.)
“Um contemporâneo de Beethoven dizia que após tê-lo escutado [tocar] ao piano [a Appassionata] tinha sido incapaz de encontrar seu chapéu na rouparia!”, conta ainda o Padre Labouche (idem).
Terminada assim a análise da Appassionata, e antes de chegarmos às conclusões últimas sobre o "assunto" Beethoven, vejamos o que contava Berlioz do “entusiasmo frenético” causado entre os parisienses pelas três primeiras execuções da Quinta Sinfonia de Beethoven: “O auditório, num momento de vertigem, cobriu a orquestra com seus gritos; eram exclamações furiosas, mescladas de lágrimas e de explosões de riso... um espasmo nervoso agitava a sala toda” (apud Padre Labouche, ibid.). Pergunta-se o Padre Labouche se “essa reação não é aparentada à de uma multidão num concerto de rock”. E responde:
“— Enquanto música revolucionária, cujas audácias e violência rítmicas [...] e agudos contrastes harmônicos destruíam as regras musicais da época: sim. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos.
— Enquanto obra de um músico que dominava perfeitamente um material musical melódico e harmônico original e muito rico, mesmo num contexto agitado e passional: não” (idem).
Interrompo aqui o texto do Padre para dizer que tomo essa distinção para resolver a questão central que me moveu a escrever esta pequena série de posts: Beethoven era inegavelmente um gênio da música; mas boa parte de sua obra, tal como a sonata Appassionata, não só estava a serviço de algo mau, mas era má em si. Vejamo-lo mais de perto em conclusões últimas.
a) Essa parte da obra de Beethoven rompe inegavelmente*(não se trata de desenvolvimento) com a tradição musical que, começando com o canto gregoriano e passando pela polifonia clássica, termina na arte contrapontística de Bach. (E não importa que Beethoven admirasse tanto Bach e até se tenha inspirado nele certo número de vezes, a saber, quando suas peças eram mais aparentadas ao classicismo de um Haydn ou de um Mozart, cuja música, porém, se era caudatária de Bach, e o era, já representava, como já vimos, uma queda do ponto de vista espiritual, ou seja, com respeito ao fim.)
b) Beethoven não tinha por fim, em sua música, “louvar a Deus” nem, em boa parte dela, “recrear a alma dentro de justos limites”, que, como já vimos, são dois dos três verdadeiros e justos fins da música (e da arte em geral), abaixo apenas do fim diretamente litúrgico, que compete sobretudo ao canto gregoriano e à polifonia clássica; esses fins sempre supõem que a música expresse alguma harmonia: a da alma humana, a social, a cósmica, a celeste, a divina (como já disse, para Bach a forma musical chamada fuga era uma expressão das processões divinas). Boa parte da obra de Beethoven tinha outros objetivos, quais sejam: 1) expressar as paixões em que se debatia ou dilacerava a sua própria alma, ou seja, a sua desarmonia; e/ou 2) expressar a desarmonia social da revolução, louvando-a; e/ou 3) expressar o brilho-sombra que domina boa parte da arte romântica, como é também o caso da sonata Appassionata, e que, ao fim e ao cabo, é ainda uma desarmonia da alma; e/ou 4) expressar uma tristeza e melancolia profundas, talvez por um amor impossível, como na sua “Sonata ao Luar”, bela, mas ainda mais melancólica do que, por exemplo, os Noturnos de Chopin (como já disse e como veremos na última série de artigos meus sobre a arte, a melancolia é parte integrante de toda a arte, mas até certo ponto, ponto que é demasiadamente ultrapassado pelos românticos); e/ou 5) louvar não a Deus, mas o homem, como na sua Nona Sinfonia, cujo último movimento, cantado, tinha por texto a “An die Freude” (Ode à Alegria) de Friedrich Schiller, inspirada precisamente no ideário liberal do Iluminismo — e esta é certamente uma das maiores e mais tristes desarmonias: a substituição do Criador pela criatura. (Aliás, o coral beethoveniano com a “Ode” de Schiller é, desde 1985, o hino oficial da União Européia, como escrevi no Prefácio à Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Martínez Barrera.)
c) Como a maneira artística de expressar é, mutatis mutandis, a da onomatopéia (ou seja, aquilo que expressa ou representa tem características intrínsecas análogas ao que é expresso ou representado), a arte que expressa alguma harmonia (humana, social, cósmica, celeste, divina) tem de ser intrinsecamente harmônica; ao passo que a que quer expressar qualquer classe de desarmonia há de ser, por seu lado, intrinsecamente desarmônica, como vimos ser o caso da sonata Appassionata de Beethoven, e como é o caso, digo, de boa parte de sua obra.
d) Por fim, por tudo quanto vimos aqui, a sonata Appassionata, bem como, digo, boa parte da obra de seu autor, tem efeitos daninhos sobre o ouvinte.
* Disse-se acima que certa “parte da obra de Beethoven rompe inegavelmente (não se trata de desenvolvimento) com a tradição musical que, começando com o canto gregoriano e passando pela polifonia clássica, termina na arte contrapontística de Bach”, e isso é certamente mau. Bem sei que vivemos num mundo que se acostumou a considerar boas as rupturas na arte: quanto mais revolucionário, quanto mais profundo for o rompimento de um artista com a tradição, mais genial ele será. Ora, isso já é parte do espírito revolucionário que, a começar no bojo da própria Idade Média final, acabou por desviar os povos do seu fim último: primeiro, a ruptura de Duns Scott com Santo Tomás, à qual se seguirão, mais adiante, as de Guilherme de Ockham, Descartes, Kant, etc., etc., etc.; depois, a da Renascença antropocêntrica com o Medievo teocêntrico; depois, a da revolução industrial e da revolução francesa com a economia corporativa antiga para transformar os trabalhadores em massa assalariada, e com os regimes antigos para transformar os homens em massa eleitoral dos partidos políticos, e com a Igreja para transformar a religião, quando muito, em assunto de foro íntimo; depois, a do comunismo com o que restava de civilização cristã; e, por fim, a do Maio de 68 com o que restava de natural no homem. E tudo isso é inegavelmente mau, ou não?
Em tempo 1: No campo da música, aquela revolução começada por Beethoven vai dar na música “erudita” moderna, atonal, dodecafônica, ou melhor, cacofônica, irritante, exasperante. Melhor ainda: é o começo de uma revolução permanente, cujo ápice será, talvez, a peça “4’33’ (ou “4 minutos e 33 segundos”, isto é, 273 segundos, número que corresponde ao zero absoluto na escala Celsius), de John Cage: nem um som musical, nem uma nota, nada; silêncio total. Sim, porque toda e qualquer revolução é entrópica: tende à revolução permanente e, propriamente, à aniquilação final. Exagero? Não, de jeito algum: John Cage foi influenciado pelo zen-budismo, que, como todo o budismo, e como dizia Chesterton, “busca o nirvana, que é outro nome do nada”.
Em tempo 2: Tudo quanto se diz aqui pressupõe a análise do belo, a qual está presente na tantas vezes referida entrevista que dei em Anápolis ao Prof. Cotrim e estará presente, muito mais desenvolvidamente, num futuro escrito, de fôlego e alcance bem mais amplos.
(Continua no próximo e último post.)