sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Arte — as potências da alma humana — e Deus

Sidney Silveira
Do mesmo modo como entre as cinco potências da alma humana não há somente ordenação orgânica de umas às outras, mas sobretudo hierarquia funcional — estando as potências vegetativas, sensitivas, apetitivas e motrizes a serviço do bem inteligível, que é o fim da alma racional, conforme demonstra Santo Tomás na Quaestio Disputata de Anima —, assim também há, analogamente, como ressaltou o Prof. Nougué em seu último texto, hierarquia quanto ao gênero das artes, na medida em que elas nos aproximam, mais ou menos, do nosso fim último, que é Deus (Por ora, deixaremos de lado o problema, de grande importância teológica, de se Deus é também o fim último daqueles que não crêem n’Ele, os ateus, e daqueles que, crendo, d’Ele se afastam pelo pecado ou por não Lhe prestar o culto devido, o que ficará para outro texto).

Assim, na tradicional visão católica, a felicidade tem alcance litúrgico, quer dizer, de culto, e não somente para os que receberam o sacramento da Ordem, isto é, os padres, mas para todos os fiéis. Pois se Deus é o fim último de todas as criaturas sem nenhuma exceção, e o fim se identifica com o bem, é patente que não poderemos ser felizes autonomamente, ou seja, se os nossos atos formais próprios da inteligência e da vontade — aqui, no caso, referidos às artes — se afastarem desse fim, ou então se buscarem fins intermediários em detrimento do fim último.

Tenhamos, pois, a plena certeza de que os coros angélicos não entoam nenhum funk para dançarinas estroboscópicas exibirem movimentos frenéticos, os quais exacerbam a sensualitas, mas com arte louvam a ordenação universal de todas as criaturas a Deus, na medida em que, sendo dotados de uma elevada inteligência intuitiva, compreendem e se deleitam maximamente nessa compreensão, pois sabem que tal harmonia e tal ordem provêm de uma inteligência ordenante: o próprio Deus, artista soberano, supremo inteligível e sumo amável. Por isso a arte dos anjos é puro louvor. E aqui vale lembrar o seguinte: louvar implica juízo de valor (um ato da potência intelectiva), ao passo que fruir, não — pois, conforme explica Santo Tomás (Suma Teológica, IªIIª, 11, a.2. resp.), desfrutar não é ato da potência que alcança o fim como ordenadora, e sim da potência que alcança o fim como executora, o que é muito diferente. Por isso, a fruição está na potência apetitiva, e não na intelectiva, razão pela qual uma arte que nos leve a fruir sem contemplar é, ontologicamente, inferior àquela que nos leva a contemplar fruindo. E não me venham com essa história de que sentidos e inteligência estão como que num mesmo plano, como insinua o filósofo basco Xavier Zubiri na trilogia de sua famosa Inteligencia Sentiente e no livro Sobre el Sentimiento y la Volición. De tal tese nos ocuparemos noutra hora.


Por conseguinte, entre a ars cujo objeto é Deus e qualquer ars que vise a outro bem há diferença de gênero. A primeira dessas artes maximiza as potências superiores da alma, sem as quais sequer somos capazes de chegar à idéia de Deus — inalcançável pelas nossas potências intermediárias e instrumentais. Quanto mais louvá-Lo! Daí que, por exemplo, as reações psicofísicas suscitadas pela ars de uma Missa de Giovanni Perluigi da Palestrina e pela “ars” de um funk sejam absolutamente distintas. Uma facilita o estado de contemplação, e contemplação elevadíssima por referir-se a Deus — na qual o corpo é instrumento, apenas; a outra abrasa apetências nas quais o corpo, embora seja também instrumento, não conduz ao fim inteligível da alma racional, mas a uma deleitação anímica de muito menor alcance. Ou seja: esta última nos torna menos humanos — é claro que não quanto ao ser, mas quanto ao operar.

Finalizando: é óbvio que quem acredita na falácia da autonomia da consciência individual está impossibilitado para aceitar tal critério objetivo (de cunho espiritual) com relação às artes, e acaba por cair num frágil subjetivismo — ainda que sob máscaras sofisticadas. Os porquês disso veremos em outros textos.