Carlos Nougué
Por dois ângulos principais se pode demonstrar a imprescindibilidade da história, ou seja, do seu estudo e ensino, para os homens.
Primeiramente, do ângulo pessoal, é (como já se disse) no colo da mãe que começa para cada um de nós o ensino da história: uma narração impressionante, ou tocante, de um episódio qualquer da história pátria ou mesmo familiar nos insere, já em tenra idade e ao modo de elo, na grande e complexa cadeia da humanidade. Cada um de nós logo se descobre parte de um todo, de um fio temporal que se vem estendendo, sem solução de continuidade, desde a origem do homem. E o robustecimento dessa mesma descoberta, por sua vez, também não sofre interrupção; muito pelo contrário, ganha alicerces cada vez mais firmes ao longo dos sucessivos anos e graus de instrução. Por certo, em maior ou menor medida, cada um de nós terá a sua chave de abóbada deste edifício; alguns se aprofundarão efetivamente no estudo da história, mas todos, inexoravelmente, terão a imaginação tingida de certo colorido histórico, e terão preenchida a memória de fatos mais ou menos marcantes da história de seu povo, de sua nação, do mundo inteiro, enfim. Tudo isso, por conseguinte, propiciará uma base às suas convicções e à sua vida moral inteira. Cícero, o filósofo romano, com toda a justeza chamou a história de “mestra da vida”.
Em segundo lugar, do ponto de vista social, o gênero humano, assim como o indivíduo humano, não pode de modo algum prescindir da memória, e memória de si mesmo. É uma exigência, uma necessidade, uma imperiosidade moral, e sem ela a humanidade se veria reduzida a perpétuo estado de ressurgimento, não renascendo incessantemente senão para tornar a cair no nada. Como poderia haver a filosofia, as artes, as ciências, as tábuas das leis, as instituições políticas, a própria religião, ou seja, toda a trama do tecido social, sem tal memória? Sábia, sumamente sábia é a Providência, que faz sucederem-se no tempo as eras e as idades, impedindo assim a ruptura da continuidade do homem. A história, ou seja, o seu estudo e ensino, é, ainda segundo Cícero, a testemunha dos tempos: a partir do efêmero presente, ela estende uma ponte entre o passado e o futuro, e garante assim a permanência da civilização.
Neste sentido, a história é tradição — é a embarcação segura em que a humanidade navega no tempo, singrando-lhe as ondas freqüentemente revoltas e as correntes sempre muito fortes e contrapostas. E como não atestar, facilmente, que uma grande ignorância ou esquecimento da história provoca inevitavelmente num espírito a turvação e em toda uma sociedade o caos? Não se afirma com isso que é necessário a todo e qualquer indivíduo um estudo muito aprofundado da história, ou à sociedade um grande número de historiadores altamente capazes; o que se afirma é que sem certa quantidade de alimento para a memória, isto é, sem um mínimo de conhecimento da própria humanidade — que, como já vimos, ou é histórica, ou não seria nada —, qualquer indivíduo e qualquer povo tende a afogar-se no pântano de seu próprio esquecimento.
Ouçamos ainda a Cícero: “A história é a luz dos tempos, a contemporânea de todo o gênero humano, a depositária dos acontecimentos, a testemunha da verdade, a alma das lembranças, a grande conselheira e oráculo da vida humana, a mensageira e intérprete dos séculos passados. É meditando-a que se alcança a fonte dos sábios desígnios e da prudência, e que se descobre a regra da boa conduta e dos costumes. Sem ela permanecemos circunscritos aos limites estreitos do tempo e do lugar em que estamos, e vivemos numa vergonhosa ignorância de tudo o que nos precedeu e de tudo o que nos rodeia. E isso não é senão uma puerilidade eterna, que faz de nós crianças e estranhos a todo o restante do universo” (De Oratore, liv. XVIII ).
E a Bossuet, quando tentava fazer entender ao Delfim “quão vergonhoso seria, não somente a um príncipe, mas, em geral, a qualquer homem honesto, ignorar o gênero humano. [...] A Religião e o governo político são os dois pontos sobre os quais rolam as coisas humanas: descobrir-lhes toda a ordem e toda a seqüência é compreender [...] tudo o que há de grande entre os homens, e possuir, por assim dizer, o fio de todos os assuntos do universo. Ora, aí reside o grande ensinamento da história: por ele, tudo se vos tornará proveitoso. Não se passará nenhum fato de cujas conseqüências não vos apercebereis. Admirareis em seguida os conselhos de Deus nos assuntos da religião: vereis assim o encadeamento das coisas humanas, e por isso conhecereis com quanta reflexão e previsão elas devem ser governadas” (em Discurso sobre a história Universal).*
* Não se deduza desta citação que sejamos admiradores sem reservas de Bossuet. Por grande que seja, e de fato o é, pesa contra ele, sobretudo, o fato de ter sido galicano, ou seja, um defensor da independência administrativa da Igreja nacional com relação ao Papado. Nunca é demais lembrar que o rei francês Francisco I quase tomara o mesmo caminho do inglês Henrique VIII, e que o galicanismo não era de todo estranho a esse clima.
Por dois ângulos principais se pode demonstrar a imprescindibilidade da história, ou seja, do seu estudo e ensino, para os homens.
Primeiramente, do ângulo pessoal, é (como já se disse) no colo da mãe que começa para cada um de nós o ensino da história: uma narração impressionante, ou tocante, de um episódio qualquer da história pátria ou mesmo familiar nos insere, já em tenra idade e ao modo de elo, na grande e complexa cadeia da humanidade. Cada um de nós logo se descobre parte de um todo, de um fio temporal que se vem estendendo, sem solução de continuidade, desde a origem do homem. E o robustecimento dessa mesma descoberta, por sua vez, também não sofre interrupção; muito pelo contrário, ganha alicerces cada vez mais firmes ao longo dos sucessivos anos e graus de instrução. Por certo, em maior ou menor medida, cada um de nós terá a sua chave de abóbada deste edifício; alguns se aprofundarão efetivamente no estudo da história, mas todos, inexoravelmente, terão a imaginação tingida de certo colorido histórico, e terão preenchida a memória de fatos mais ou menos marcantes da história de seu povo, de sua nação, do mundo inteiro, enfim. Tudo isso, por conseguinte, propiciará uma base às suas convicções e à sua vida moral inteira. Cícero, o filósofo romano, com toda a justeza chamou a história de “mestra da vida”.
Em segundo lugar, do ponto de vista social, o gênero humano, assim como o indivíduo humano, não pode de modo algum prescindir da memória, e memória de si mesmo. É uma exigência, uma necessidade, uma imperiosidade moral, e sem ela a humanidade se veria reduzida a perpétuo estado de ressurgimento, não renascendo incessantemente senão para tornar a cair no nada. Como poderia haver a filosofia, as artes, as ciências, as tábuas das leis, as instituições políticas, a própria religião, ou seja, toda a trama do tecido social, sem tal memória? Sábia, sumamente sábia é a Providência, que faz sucederem-se no tempo as eras e as idades, impedindo assim a ruptura da continuidade do homem. A história, ou seja, o seu estudo e ensino, é, ainda segundo Cícero, a testemunha dos tempos: a partir do efêmero presente, ela estende uma ponte entre o passado e o futuro, e garante assim a permanência da civilização.
Neste sentido, a história é tradição — é a embarcação segura em que a humanidade navega no tempo, singrando-lhe as ondas freqüentemente revoltas e as correntes sempre muito fortes e contrapostas. E como não atestar, facilmente, que uma grande ignorância ou esquecimento da história provoca inevitavelmente num espírito a turvação e em toda uma sociedade o caos? Não se afirma com isso que é necessário a todo e qualquer indivíduo um estudo muito aprofundado da história, ou à sociedade um grande número de historiadores altamente capazes; o que se afirma é que sem certa quantidade de alimento para a memória, isto é, sem um mínimo de conhecimento da própria humanidade — que, como já vimos, ou é histórica, ou não seria nada —, qualquer indivíduo e qualquer povo tende a afogar-se no pântano de seu próprio esquecimento.
Ouçamos ainda a Cícero: “A história é a luz dos tempos, a contemporânea de todo o gênero humano, a depositária dos acontecimentos, a testemunha da verdade, a alma das lembranças, a grande conselheira e oráculo da vida humana, a mensageira e intérprete dos séculos passados. É meditando-a que se alcança a fonte dos sábios desígnios e da prudência, e que se descobre a regra da boa conduta e dos costumes. Sem ela permanecemos circunscritos aos limites estreitos do tempo e do lugar em que estamos, e vivemos numa vergonhosa ignorância de tudo o que nos precedeu e de tudo o que nos rodeia. E isso não é senão uma puerilidade eterna, que faz de nós crianças e estranhos a todo o restante do universo” (De Oratore, liv. XVIII ).
E a Bossuet, quando tentava fazer entender ao Delfim “quão vergonhoso seria, não somente a um príncipe, mas, em geral, a qualquer homem honesto, ignorar o gênero humano. [...] A Religião e o governo político são os dois pontos sobre os quais rolam as coisas humanas: descobrir-lhes toda a ordem e toda a seqüência é compreender [...] tudo o que há de grande entre os homens, e possuir, por assim dizer, o fio de todos os assuntos do universo. Ora, aí reside o grande ensinamento da história: por ele, tudo se vos tornará proveitoso. Não se passará nenhum fato de cujas conseqüências não vos apercebereis. Admirareis em seguida os conselhos de Deus nos assuntos da religião: vereis assim o encadeamento das coisas humanas, e por isso conhecereis com quanta reflexão e previsão elas devem ser governadas” (em Discurso sobre a história Universal).*
* Não se deduza desta citação que sejamos admiradores sem reservas de Bossuet. Por grande que seja, e de fato o é, pesa contra ele, sobretudo, o fato de ter sido galicano, ou seja, um defensor da independência administrativa da Igreja nacional com relação ao Papado. Nunca é demais lembrar que o rei francês Francisco I quase tomara o mesmo caminho do inglês Henrique VIII, e que o galicanismo não era de todo estranho a esse clima.