Sidney Silveira
O fato de existir filosofia — ou seja: de que usemos as nossas potências intelectivas para alcançar certas verdades — já deveria ser-nos a evidência absoluta de que, ao contrário do que pensava Husserl, não temos a intuição direta das essências. Primeiro: se a tivéssemos, jamais haveria dissensões acerca da verdade, porque todos conheceriam as essências diretamente e, portanto, ninguém se enganaria acerca de nada. Tão logo contemplássemos um ente e... plaft!, nesse ato prosaico o compreenderíamos imediatamente. Mas a realidade é bem outra: há coisas sobre as quais homens de gabarito divergem há milênios, e, se o próprio Husserl não estivesse empenhado em construir uma filosofia “essencialmente nova” (são palavras dele, na apresentação do livro Idéias para uma fenomenologia pura e uma ciência fenomenológica), talvez deixasse de lado esse afã de novidade e partisse da seguinte premissa, na realidade bastante óbvia: se temos a intuição direta das essências, não precisamos de nenhum método para provar que temos a intuição direta das essências.
Assim, ter criado um método já é, ipso facto, a contraprova do erro implicado na chamada redução eidética husserliana, pois não é necessário provar, pela longa exposição de uma doutrina (compondo e dividindo, como diz Santo Tomás), o que já se sabe por intuição direta, pois o que se mostra não se demonstra. Assim, se a essência de um ente já se mostra pré-intelectivamente à nossa inteligência (tese a que também voltaremos, noutro texto), não precisamos demonstrá-la, pois tal procedimento seria, no mínimo, antieconômico. A propósito, ao final da vida o próprio Husserl confessou ao seu grande amigo e discípulo Eugene Fink que havia um erro capital na base de toda a sua teoria, mas era tarde demais para consertá-lo. Esse erro, logo nos primeiros capítulos do Idéias, é patente: uma sofisticadíssima confusão entre abstração e intuição.
A atitude de Husserl é bastante encontradiça em toda a filosofia moderna, pós-cartesiana: reinventar a roda e desqualificar o que foi feito pelos grandes do passado. Descartes, por exemplo, nos diz que a filosofia precisa partir de idéias claras e distintas (dando por pressuposto que, até ele, não havia idéias claras e distintas). Do seu famoso Cogito trataremos noutro post. Já David Hume pontifica que a sua filosofia representa algo semelhante ao que Newton fez para a física; Kant, que acordou do “sonho dogmático” lendo Hume, afirma estar fazendo uma revolução semelhante à de Copérnico; Nietzsche demole tudo para trás, e se diz portador solitário de uma verdade que os homens do seu tempo não estão aptos a enxergar; e Heidegger “descobre” que, desde os pré-socráticos até ele próprio, a metafísica tratou do ente e se esqueceu do ser. Quanta modéstia!
A propósito, há muitos outros exemplos dessa “humildade” espalhados pela história da filosofia, nos últimos 400 anos. Comparemos tal atitude com o respeito aos pensadores do passado e a santa paciência de Tomás de Aquino. Entre outras coisas por ser cheia de alusões a homens de outras épocas, só a Suma Teológica tem 512 questões, subdivididas em 2.669 artigos, sendo estes também repartidos em objeções e respostas incontáveis — no prolífico método dialético da disputatio. E assim é também em obras como De Malo, De Veritate, De Potentia Dei e outras questões disputadas. Nelas, não se pulam etapas, pois cada prova metafísica é encadeada à seguinte. E, no que concerne propriamente à consciência — da qual já mostramos que não é a sede da liberdade; não é uma superestrutura da alma; não é autônoma; não é potência, mas ato; etc. —, repito, no que concerne à consciência, no monumental De Veritate Santo Tomás resolve várias questões correlatas, sem as quais o problema de definir a essência disto a que chamamos “consciência” fica por resolver, como por exemplo a questão sobre a razão inferior e a superior (q. 15).
Voltaremos ao assunto, com o intuito de aduzir outros dados que mostrarão a impossibilidade de a consciência individual ser autônoma, como querem alguns liberais.
O fato de existir filosofia — ou seja: de que usemos as nossas potências intelectivas para alcançar certas verdades — já deveria ser-nos a evidência absoluta de que, ao contrário do que pensava Husserl, não temos a intuição direta das essências. Primeiro: se a tivéssemos, jamais haveria dissensões acerca da verdade, porque todos conheceriam as essências diretamente e, portanto, ninguém se enganaria acerca de nada. Tão logo contemplássemos um ente e... plaft!, nesse ato prosaico o compreenderíamos imediatamente. Mas a realidade é bem outra: há coisas sobre as quais homens de gabarito divergem há milênios, e, se o próprio Husserl não estivesse empenhado em construir uma filosofia “essencialmente nova” (são palavras dele, na apresentação do livro Idéias para uma fenomenologia pura e uma ciência fenomenológica), talvez deixasse de lado esse afã de novidade e partisse da seguinte premissa, na realidade bastante óbvia: se temos a intuição direta das essências, não precisamos de nenhum método para provar que temos a intuição direta das essências.
Assim, ter criado um método já é, ipso facto, a contraprova do erro implicado na chamada redução eidética husserliana, pois não é necessário provar, pela longa exposição de uma doutrina (compondo e dividindo, como diz Santo Tomás), o que já se sabe por intuição direta, pois o que se mostra não se demonstra. Assim, se a essência de um ente já se mostra pré-intelectivamente à nossa inteligência (tese a que também voltaremos, noutro texto), não precisamos demonstrá-la, pois tal procedimento seria, no mínimo, antieconômico. A propósito, ao final da vida o próprio Husserl confessou ao seu grande amigo e discípulo Eugene Fink que havia um erro capital na base de toda a sua teoria, mas era tarde demais para consertá-lo. Esse erro, logo nos primeiros capítulos do Idéias, é patente: uma sofisticadíssima confusão entre abstração e intuição.
A atitude de Husserl é bastante encontradiça em toda a filosofia moderna, pós-cartesiana: reinventar a roda e desqualificar o que foi feito pelos grandes do passado. Descartes, por exemplo, nos diz que a filosofia precisa partir de idéias claras e distintas (dando por pressuposto que, até ele, não havia idéias claras e distintas). Do seu famoso Cogito trataremos noutro post. Já David Hume pontifica que a sua filosofia representa algo semelhante ao que Newton fez para a física; Kant, que acordou do “sonho dogmático” lendo Hume, afirma estar fazendo uma revolução semelhante à de Copérnico; Nietzsche demole tudo para trás, e se diz portador solitário de uma verdade que os homens do seu tempo não estão aptos a enxergar; e Heidegger “descobre” que, desde os pré-socráticos até ele próprio, a metafísica tratou do ente e se esqueceu do ser. Quanta modéstia!
A propósito, há muitos outros exemplos dessa “humildade” espalhados pela história da filosofia, nos últimos 400 anos. Comparemos tal atitude com o respeito aos pensadores do passado e a santa paciência de Tomás de Aquino. Entre outras coisas por ser cheia de alusões a homens de outras épocas, só a Suma Teológica tem 512 questões, subdivididas em 2.669 artigos, sendo estes também repartidos em objeções e respostas incontáveis — no prolífico método dialético da disputatio. E assim é também em obras como De Malo, De Veritate, De Potentia Dei e outras questões disputadas. Nelas, não se pulam etapas, pois cada prova metafísica é encadeada à seguinte. E, no que concerne propriamente à consciência — da qual já mostramos que não é a sede da liberdade; não é uma superestrutura da alma; não é autônoma; não é potência, mas ato; etc. —, repito, no que concerne à consciência, no monumental De Veritate Santo Tomás resolve várias questões correlatas, sem as quais o problema de definir a essência disto a que chamamos “consciência” fica por resolver, como por exemplo a questão sobre a razão inferior e a superior (q. 15).
Voltaremos ao assunto, com o intuito de aduzir outros dados que mostrarão a impossibilidade de a consciência individual ser autônoma, como querem alguns liberais.