Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
b.3) A memória
Após abordarmos no texto anterior o sentido interno da imaginação, chegamos agora ao da memória. E a primeira coisa a observar é a seguinte: o que diferencia as potências sensitivas da imaginação e da memória é que a primeira capta apenas as imagens, e a segunda, as intenções. Vale frisar que ambas se referem à mesma imagem ou “fantasma”, mas de modo distinto. A primeira considera-a em si mesma, quase abstratamente, numa referência à coisa que representa, enquanto a segunda se dirige à imagem reconhecendo-a como algo semelhante ao anteriormente percebido (cf. Santo Tomás, De senso et sensato, Tratactus II, De memoria et reminiscentia, I, III).
Graças à memória percebemos a nossa própria duração no tempo, e reconhecemos as coisas antes percebidas. Mas o Aquinate diz que a memória não apenas situa um fato no tempo, porque, além de recordar a relação temporal entre determinados acontecimentos, recorda também outras coisas, como as características de um lugar, os traços de uma pessoa, etc. Por isto se diz que é possível sentir e recordar a partir de distintas intenções — como de uma semelhança, uma contrariedade, um tipo de proximidade, etc. E o que especifica todas essas recordações é que o recordado se reconhece como antes conhecido. Anotem isto, pois mais à frente, quando em outra série de textos tratarmos da psicologia do pecado, veremos como é possível a psique ser ferida pela recordação de atos maus, ainda quando estes tragam a sua cota de deleite, razão pela qual Aristóteles assinala, em um trecho da Ética a Nicômaco, que o homem, depois que se deprava, não tem mais jeito — ou, noutras palavras: ele será refém das imagens dos atos depravados de que participou ou mesmo que apenas presenciou, imagens essas que retornarão intermitentemente àquilo que alguns psicólogos contemporâneos chamam de estrutura psíquica. [Adendo que vejo agora fazer-se absolutamente necessário: sendo a nossa natureza psíquica ferida por imagens de atos maus e/ou depravados que retornam recorrentemente pela via da imaginação, só mesmo uma causa sobrenatural poderia pôr um freio a este processo — e, como já vimos, cada ente natural individual e também todo o conjunto de entes naturais do universo estão ordenados a algo que está além de todas as naturezas: este a quem, geralmente, chamamos Deus. E, se se é católico, por fé cremos que é pelos Sacramentos, sinais sensíveis da Graça desse Deus — e também causa dela! — que podemos pôr um freio a essas feridas na imaginação, tão mais periogosas quanto mais tragam consigo alguma espécie de deleite]
Mas a memória não só atua quando a coisa recordada está ausente, segundo Santo Tomás, mas também pode funcionar (e a experiência o mostra de forma inequívoca!) mesmo estando a coisa recordada presente, na medida em que a memória também recorda o que está sentindo agora como algo já sentido anteriormente.
b.3.1) A reminiscência (operação particular da memória)
É importante observar que a memória humana não é apenas espontânea, como a dos animais irracionais, a qual “desperta” ante um objeto significativo reconhecido como conveniente ou inconveniente. A memória humana é capaz de uma operação que a memória do animal irracional não possui, em razão da refluência do intelecto sobre a parte sensitiva. Como observa Martín Echavarría, isto é o que Aristóteles chama de anámnesis. Em suma: o homem não possui apenas memória, mas também reminiscência.
Para Santo Tomás, a reminiscência é uma recordação voluntária. E mais: a reminiscência é um movimento (motus) em direção a um ato da memória. Mas não escapa ao nosso grande filósofo que, às vezes, acontecem certas rememorações involuntárias, porque os sentidos internos — apesar de estar ordenados à operação do intelecto — têm certo grau de autonomia, pois acontece às vezes certas coisas estarem conectadas pela memória, e, sem que um homem queira, elas passem de uma à outra. Tal recorrência involuntária pode dar-se com maior freqüência em determinados temperamentos. Santo Tomás atribui os temperamentos em parte à compleição física, e nunca é demais lembrar que é no corpo que radicam certas paixões. Vejamos o que diz:
“Um sinal de que a reminiscência é certa paixão corporal (...) é que, quando alguns homens querem recordar algo e não conseguem, lhes vêm a ansiedade, pela qual dirigem a mente mais fortemente a recordar. (...) Isto acontece com os melancólicos, que são muito agitados por sua imaginação”. [Santo Tomás, De memoria et reminiscentia – Comentarium)
No próximo post desta série, falaremos da potência cogitativa, último dos chamados sentidos internos e grande auxiliar do intelecto. O caminho, como eu já dissera no começo da série, é longo. Mas prometo que, ao final, ficará evidente toda a complexidade da ação humana, cujos atos formais próprios têm importantíssima conexão com as potências até agora assinaladas.
E veremos o quão superficial é a noção de Ludwig von Mises de “ação humana”. E mais ainda — mas somente quando chegar o momento.
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
b.3) A memória
Após abordarmos no texto anterior o sentido interno da imaginação, chegamos agora ao da memória. E a primeira coisa a observar é a seguinte: o que diferencia as potências sensitivas da imaginação e da memória é que a primeira capta apenas as imagens, e a segunda, as intenções. Vale frisar que ambas se referem à mesma imagem ou “fantasma”, mas de modo distinto. A primeira considera-a em si mesma, quase abstratamente, numa referência à coisa que representa, enquanto a segunda se dirige à imagem reconhecendo-a como algo semelhante ao anteriormente percebido (cf. Santo Tomás, De senso et sensato, Tratactus II, De memoria et reminiscentia, I, III).
Graças à memória percebemos a nossa própria duração no tempo, e reconhecemos as coisas antes percebidas. Mas o Aquinate diz que a memória não apenas situa um fato no tempo, porque, além de recordar a relação temporal entre determinados acontecimentos, recorda também outras coisas, como as características de um lugar, os traços de uma pessoa, etc. Por isto se diz que é possível sentir e recordar a partir de distintas intenções — como de uma semelhança, uma contrariedade, um tipo de proximidade, etc. E o que especifica todas essas recordações é que o recordado se reconhece como antes conhecido. Anotem isto, pois mais à frente, quando em outra série de textos tratarmos da psicologia do pecado, veremos como é possível a psique ser ferida pela recordação de atos maus, ainda quando estes tragam a sua cota de deleite, razão pela qual Aristóteles assinala, em um trecho da Ética a Nicômaco, que o homem, depois que se deprava, não tem mais jeito — ou, noutras palavras: ele será refém das imagens dos atos depravados de que participou ou mesmo que apenas presenciou, imagens essas que retornarão intermitentemente àquilo que alguns psicólogos contemporâneos chamam de estrutura psíquica. [Adendo que vejo agora fazer-se absolutamente necessário: sendo a nossa natureza psíquica ferida por imagens de atos maus e/ou depravados que retornam recorrentemente pela via da imaginação, só mesmo uma causa sobrenatural poderia pôr um freio a este processo — e, como já vimos, cada ente natural individual e também todo o conjunto de entes naturais do universo estão ordenados a algo que está além de todas as naturezas: este a quem, geralmente, chamamos Deus. E, se se é católico, por fé cremos que é pelos Sacramentos, sinais sensíveis da Graça desse Deus — e também causa dela! — que podemos pôr um freio a essas feridas na imaginação, tão mais periogosas quanto mais tragam consigo alguma espécie de deleite]
Mas a memória não só atua quando a coisa recordada está ausente, segundo Santo Tomás, mas também pode funcionar (e a experiência o mostra de forma inequívoca!) mesmo estando a coisa recordada presente, na medida em que a memória também recorda o que está sentindo agora como algo já sentido anteriormente.
b.3.1) A reminiscência (operação particular da memória)
É importante observar que a memória humana não é apenas espontânea, como a dos animais irracionais, a qual “desperta” ante um objeto significativo reconhecido como conveniente ou inconveniente. A memória humana é capaz de uma operação que a memória do animal irracional não possui, em razão da refluência do intelecto sobre a parte sensitiva. Como observa Martín Echavarría, isto é o que Aristóteles chama de anámnesis. Em suma: o homem não possui apenas memória, mas também reminiscência.
Para Santo Tomás, a reminiscência é uma recordação voluntária. E mais: a reminiscência é um movimento (motus) em direção a um ato da memória. Mas não escapa ao nosso grande filósofo que, às vezes, acontecem certas rememorações involuntárias, porque os sentidos internos — apesar de estar ordenados à operação do intelecto — têm certo grau de autonomia, pois acontece às vezes certas coisas estarem conectadas pela memória, e, sem que um homem queira, elas passem de uma à outra. Tal recorrência involuntária pode dar-se com maior freqüência em determinados temperamentos. Santo Tomás atribui os temperamentos em parte à compleição física, e nunca é demais lembrar que é no corpo que radicam certas paixões. Vejamos o que diz:
“Um sinal de que a reminiscência é certa paixão corporal (...) é que, quando alguns homens querem recordar algo e não conseguem, lhes vêm a ansiedade, pela qual dirigem a mente mais fortemente a recordar. (...) Isto acontece com os melancólicos, que são muito agitados por sua imaginação”. [Santo Tomás, De memoria et reminiscentia – Comentarium)
No próximo post desta série, falaremos da potência cogitativa, último dos chamados sentidos internos e grande auxiliar do intelecto. O caminho, como eu já dissera no começo da série, é longo. Mas prometo que, ao final, ficará evidente toda a complexidade da ação humana, cujos atos formais próprios têm importantíssima conexão com as potências até agora assinaladas.
E veremos o quão superficial é a noção de Ludwig von Mises de “ação humana”. E mais ainda — mas somente quando chegar o momento.