sábado, 31 de janeiro de 2009

O homem “transformado” em anjo (I)

Sidney Silveira
Como ensina Santo Tomás, a essência das coisas materiais abstraída de suas notas individuantes (quidditas rei materialis abstracta a notis individuantibus) é o objeto formal próprio da inteligência humana, ou seja, aquilo a que esta primeiramente se dirige. E essa abstração é o nosso modo específico de conhecer, que, como o demonstra eloqüentemente a experiência, não é por intuição direta das essências das coisas, como supusera Edmund Husserl — num erro gnosiológico fundamental que traria dramáticas conseqüências para a filosofia do século XX, a começar por Heidegger e, depois, por Sartre*.

Se, de fato, a nossa inteligência chega à verdade por uma espécie de atalho intuitivo, isto significa que não precisamos disciplinar-nos, estudar com afinco, para a obtenção do conhecimento; não precisamos combater paixões que obliterem os atos próprios da inteligência; não precisamos dos signos sensíveis da religião (Magistério, sacramentos e Escritura), já que o nosso relacionamento com Deus será intuitivo e, portanto, direto, sem intermediários de qualquer ordem; não precisamos de mestres que nos encaminhem às verdades mais altas; etc. Ou, melhor dizendo, não precisaríamos de tudo isso se, de fato, conhecêssemos as coisas por intuição direta de suas essências. E este é o caso não dos homens, e sim dos anjos — de acordo com a teologia católica tradicional.

Vejamos:

1- Justamente por terem o conhecimento por intuição direta, os anjos não precisam de um mestre para chegar às verdades que estão aptos a conhecer, as quais são captadas por eles no ato, ao contemplar qualquer ente (daí Tomás de Aquino dizer que o anjo vive entendendo). Aqui, no entanto, é preciso fazer uma ressalva: para o Angélico Doutor, um anjo pode ensinar a outro de espécie inferior, iluminando-lhe** a inteligência com a manifestação de uma verdade mais universal a que tem acesso naturalmente, dada a sua superioridade (observe-se que estamos ainda no plano da natura, ou seja: não nos referimos ao conhecimento de algo sobrenatural, mas ao conhecimento de uma verdade sob um conceito mais universal de um anjo em relação ao outro que lhe seja inferior quando à espécie. Uma verdade acerca de algo que está, portanto, além das possibilidades do anjo inferior. Isto é muito diferente do caso do homem, que precisa do mestre até mesmo para conhecer as coisas a que está naturalmente capacitado).
2- Os anjos não precisam ordenar paixões que impeçam o conhecimento pelo simples fato de que não as têm — porque lhes falta o apetite sensitivo, raiz de todas as paixões***.
3- Os anjos não precisam de disciplina nem de nenhum tipo de ascese para conhecer, pois as formas inteligíveis lhes são absolutamente conaturais e, por isso, sequer pode haver erro ou falsidade em seu conhecimento natural (obviamente, isto não se aplica ao conhecimento que os anjos têm das coisas sobrenaturais, para as quais precisam do auxílio divino).
4- Os anjos não precisam da Escritura, porque Deus lhes faz revelações diretas (cf. Suma Teológica, I, q. 58, a.1, resp.), nem de sacramentos (que são signos sensíveis da Graça, e o anjo, não possuindo sensibilidade, não precisa de sinais sensíveis para ter acesso à realidade), nem do Magistério eclesiástico, em sentido próprio, o que decorre de tudo o que foi dito acima.

Voltemos agora a nós, míseros humanos. Quais teriam sido as principais conseqüências do intuicionismo husserliano e de seu método fenomenológico, que ainda hoje deixam ressonâncias para várias correntes filosóficas? É o que veremos no próximo texto sobre o tema.

* A Sartre e a Heidegger nos referiremos noutra ocasião.
** Explica o Aquinate o sentido de "iluminação", no caso específico de que nos ocupamos (ou seja: que não diz respeito à teoria agostiniana da iluminação): “A luz, no que se refere ao entendimento, não é outra coisa senão a manifestação da verdade. (...) Iluminar, pois, não é mais do que dar a outro a manifestação de uma verdade conhecida”. (Suma Teológica, I, q. 106, a.1, resp).
*** A paixão, ensina-nos Santo Tomás seguindo a São João Damasceno, é o movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal. A paixão é, portanto, sempre psicofísica, abrange corpo e alma.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A estrutura da ação humana em sua completude (XII)

Sidney Silveira
Em vários textos anteriores, vimos a complexidade da ação humana em toda a sua dimensão: uma extraordinária interação entre potências que comportam uma hierarquia quanto aos graus de ser e quanto às operações. Em suma, observamos que, para ocorrer o ato propriamente humano, uma riquíssima relação entre potências distintas — entre as quais há ordem funcional — precisa ser posta em marcha. E tão intrincadas são essas relações intrapsíquicas que, muitas vezes, o ato propriamente humano pode ser impedido, ou grandemente dificultado, por disfunções específicas, pois ele é a coroação de uma série de causas essencialmente ordenadas*.

Qualquer praxeologia da ação humana que desconsidere essas precondições descambará num reducionismo inconcebível (e vejam que me refiro apenas às precondições psicológicas, deixando de lado, por ora, as axiológicas, as metafísicas, as ontológicas, etc.). Um reducionismo tosco, de cunho materialista. É o que faz o liberal Von Mises, e com mil contradições, a começar pela seguinte: embora diga expressamente que a ciência de que se ocupa — a praxeologia — trata tão-somente da ação humana, e não dos eventos psicológicos que resultam nessa ação, no mesmo capítulo do livro Human Action em que faz essa asserção ele escreve que a precondição da ação humana se divide em três pontos:

a) O desconforto com uma dada situação;
b) A imagem de uma possível situação melhor;
c) A expectativa de aliviar o desconforto e chegar a uma situação mais confortável.

Ora, pelotas! Estas são três precondições psicológicas!!!!!! Ou seja: são precondições que se dão ad intra na psique humana. Mas o nosso notável economista acabara de pontificar que a sua praxeologia não consideraria os eventos psicológicos que resultassem numa ação, mas apenas a ação! Vejam bem, com doses suplementares de boa vontade nós até poderíamos pôr isto na conta de uma simples — e enorme — distração, mas, como já apontamos aqui noutro artigo, as confusões são inúmeras:

“A propósito, o argumento do economista [...] é o de que a praxeologia busca afirmações que não derivam da experiência, pois ela não se refere ao aspecto material dos atos, mas apenas formal, não obstante diga Mises no mesmo parágrafo que a praxeologia demarca um limite “semelhante ao da experimentação”, no caso das ciências que interpretam eventos físicos e químicos. E, no parágrafo seguinte — depois de haver anteriormente nos informado de que “o erro dos filósofos” (sic) se deve à sua total ignorância em economia (sic), e a um candente desconhecimento em história (no post anterior, lembremos que, para Mises, a inteligência humana é um dado histórico [as palavras são dele!], pois viemos de... uma ameba!!! [também palavras dele!) —, o economista nos remete novamente ao evolucionismo que ele dá por certeza “científica”, ao dizer que o homem é “descendente de ancestrais não-humanos que não tinham tal capacidade (racional)”. É verdade que Mises nos diz que o homem não é só um animal sujeito a estímulos, mas um ser agente, e a categoria da ação é antecedente aos atos concretos (??)”.

Poderíamos enumerar muitas outras incongruências básicas, além das que já citamos na teoria da ação humana de Von Mises, como a incrível confusão entre hedonismo e eudaimonismo, mas preferimos um conselho: se você não estudou o que Aristóteles e Santo Tomás (para ficar apenas com estes dois) disseram sobre a ação humana, NÃO LEIA os prolixos capítulos iniciais da Human Action de Von Mises, pois há erros tremendos e imprecisões que vão confundir a sua cabeça — talvez definitivamente. Não é ali que você vai aprender o que é uma ação propriamente humana — e há incontáveis maneiras de mostrar, sem grande esforço, o quão errada é a tese. Um exemplo? Pois bem, se a ação humana tem mesmo como precondição fundamental a fuga do desconforto, a minha leitura de Von Mises não teria sido uma ação humana, pois ela foi feita malgrado o meu insuperável desconforto com a visão de tantos equívocos. Ou seja: na prática, eu deveria fugir, no ato, a tal desconforto — e de forma facílima: bastaria interromper a leitura desse calhamaço! Como explicaria o nosso valente economista a minha (desconfortável) ação de lê-lo, a qual mostra que a suposta “precondição fundamental” por ele elencada é pura e simples bullshit, uma bobagem? Seria essa uma ação “des-humana”?

Encerraremos a série “A ação humana em sua completude” no próximo texto sobre o tema, com a menção aos âmbitos metafísico e ontológico da supramencionada ação. E, depois, noutra série, daremos outros passos e veremos se — já que a teoria da ação humana de Von Mises não sobrevive às objeções mais simples — o seu pensamento sobre a sociedade humana pode servir-nos para alguma coisa. Deixemos, no entanto, à guisa de tira-gosto, algumas considerações preliminares de Von Mises sobre este assunto, ainda em Human Action: de acordo com o seu parecer, o fato “fundamental” da sociedade, o fato fundador da civilização humana, é que o trabalho efetuado pela divisão de tarefas é mais produtivo que o trabalho solitário. Vejam bem: ele está dizendo que isto é o fato civilizacional fundamental! O pilar, a base, o princípio sine qua non.

Como eu disse no começo, tenham paciência que o caminho é longo.

* Nas causas essencialmente ordenadas, para que o efeito comum ocorra, é necessário que todas as causas da série exerçam plenamente o seu influxo causal. Caso uma delas falhe, das duas uma: ou efeito não ocorrerá, ou ocorrerá mal, com defeito. Das causas acidentalmente ordenadas, falaremos amiúde noutra ocasião.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Vídeo com Pio XII

Sidney Silveira
Um amigo querido manda-me um interessante link com um vídeo sobre os últimos anos de Pio XII, Papa sobre cuja memória ainda há tantas incompreensões. Vale a pena assistir.

Gratíssima correção

Carlos Nougué
Recebi três importantíssimos e-mails com respeito a um dado incorreto em meu último artigo, “O fim de um injusto opróbrio”. Transcrevo-os sem dar nomes identificadores de seus autores, por não saber se desejariam que o fizesse.

I) “Prezado Carlos Nougué,

[...]

Tenho uma dúvida a respeito do decreto do último dia 21 de janeiro, que levantou a excomunhão dos quatros bispos ordenados por mons. Lefebvre.

No último artigo, você disse que o decreto não levantou a excomunhão que atinge a este e a D. Antônio de Castro Mayer. No entanto, relendo atentamente o decreto de 21/1/09, está dito claramente, ao final, que fica ‘privado de efeitos jurídicos, a partir da data de hoje, o Decreto emanado naquele tempo [de 1° de julho de 1988]’. Ora, que diz o decreto ‘daquele tempo’ (1° de julho de 1988)?

DECRETO DE EXCOMUNHÃO DE Mgr. MARCEL LEFEBVRE, DE DOM ANTÔNIO DE CASTRO MAYER E DOS QUATRO BISPOS POR ELES SAGRADOS

Sagrada Congregação para os Bispos

Monsenhor Marcel Lefebvre, Arcebispo-Bispo emérito de Tulle, tendo — apesar da advertência canônica formal de 17 de junho último e das repetidas interpelações pedindo-lhe que renunciasse ao seu propósito — realizado um ato de natureza cismática ao proceder à consagração episcopal de quatro bispos sem mandato pontifício, e contra a vontade do Sumo Pontífice, incorreu na pena prevista pelo cânone 1364, par. 1, e pelo cânone 1382 do Código de Direito Canônico.

Declaro que OS EFEITOS JURÍDICOS SÃO OS SEGUINTES: o sobredito Monsenhor Marcel Lefebvre, Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta incorreram ipso facto na excomunhão latae sententiae reservada à Sé Apostólica.
Declaro ainda que Mons. Antônio de Castro Mayer, Bispo emérito de Campos, tendo participado diretamente na celebração litúrgica como co-consagrante e tendo publicamente aderido ao ato cismático, incorreu na excomunhão latae sentenciae, prevista pelo cânone 1364, par. 1. Exortamos os padres e os fiéis a não aderirem ao cisma de Monsenhor Lefebvre, pois incorreriam ipso facto na mesma pena de excomunhão.
Da Congregação para os Bispos
Dia 1 de julho do ano de 1988.
Bernadin Cardeal Gantin, Congregação para os Bispos
Prefeito

Portanto, como os ‘efeitos jurídicos’ do Decreto de 1º de julho de 1988 foram a excomunhão, ‘latae sententiae’, de Mons. Marcel Lefebvre, Mons. Antônio de Castro Mayer, Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta, e o decreto de 21 de janeiro de 2009 declarou-o ‘privado de efeitos jurídicos’, claro está que foi levantada a excomunhão dos seis sacerdotes, não apenas dos quatro bispos consagrados.

Gostaria de saber se raciocino bem ou mal, já que não entendo de direito canônico, e deduzi apenas das palavras dos dois decretos.

[...]

Muito obrigado e fique em paz,
R.”

II) “Interessante a observação de [R.], dizendo que o decreto atinge mons. Lefebvre e d. Castro Mayer.

Lembro-me de que uma vez em Roma perguntei a um grande canonista, mons. Daniele Galea, antigo professor da Lateranense e amigo da tradição, sobre a excomunhão de mons. Lefebvre. Ele me disse que a excomunhão cessa com a morte. É uma pena medicinal para os vivos. Os mortos estão sob o juízo de Deus.

[...]Um abraço.
Pe. J.”

III) “Olá Carlos,

parece que ontem depois da missa vocês estavam discutindo algo a respeito do não levantamento da excomunhão de Dom Lefebvre e Dom Antônio.

Tivemos a sorte de falar com o Ir. E. ontem mesmo e ele nos disse, a esse respeito, que a Igreja não legisla sobre os mortos (não excomunga, não suspende, etc.) Por este motivo nada foi dito a respeito de Dom Lefebvre e Dom Antônio. Mas, se a excomunhão foi devida às sagrações feitas por Dom Lefebvre e agora os quatro bispos sagrados não são mais tidos como excomungados, Dom Lefebvre também não está excomungado, implicitamente, pois foi quem realizou o fato.

[...]

Um abraço
L.”

Corrija-se, pois, gratissimamente, o equívoco de meu texto: em verdade, também sobre D. Lefebvre e D. Antônio de Castro Meyer já não pesa tal injusto opróbrio. E diga-se:

Deo gratias!

P.S.: Quanto ao mais, mantenha-se integralmente o que ali se disse.

domingo, 25 de janeiro de 2009

O fim de um injusto opróbrio

Carlos Nougué
Não é do desconhecimento de nenhum católico (que tenha olhos de ver) a crise em que está mergulhada a Igreja desde o Concílio Vaticano II. Note-se bem: não dizemos que nunca tivesse havido crise na Igreja antes desse Concílio, nem que imediatamente antes dele a Santa Madre vivesse um momento de esplendor. Não o dizemos, até porque dizê-lo seria ir contra a verdade.

Com efeito, muitas foram as crises desde que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou sua Igreja sobre a rocha que é Pedro. Houve uma pouco depois da ascensão de Nosso Senhor: a da tendência à judaização, resolvida com a admoestação de São Paulo ao Papa São Pedro, cujo comportamento no caso implicava risco para a fé (cf. Gálatas, II, 11-14). A respeito desse episódio, diz Santo Tomás na Suma Teológica: “Aos prelados [foi dado exemplo] de humildade, para que não se recusem a aceitar repreensões da parte de seus inferiores e súditos; e aos súditos [foi dado] exemplo de zelo e liberdade, para que não receiem corrigir seus prelados, sobretudo quando o crime for público e redundar em perigo para muitos [...]. A repreensão foi justa e útil, e o seu motivo não foi leve [...]. O modo como se deu a repreensão foi conveniente, pois foi público e manifesto. Por isso escreve São Paulo: ‘Falei a Cefas’, isto é, a Pedro, ‘diante de todos’, porque a simulação praticada por São Pedro acarretava perigo para todos”. E muitas crises se seguiram a essa, e nelas, porque os Papas “não andavam retamente, conforme a verdade do Evangelho”, nunca deixou de haver quem “lhes resistisse cara a cara” (cf. Gálatas, ibid.): Santo Atanásio (iniquamente excomungado por isso) e Santo Hilário resistiram ao Papa Libério; São Columbano, ao Papa Bonifácio IV; São Sofrônio, ao Papa Honório I; São Bruno, ao Papa Pascoal II; a Universidade de Paris, ao Papa João XXII; Santa Catarina de Sena, a Gregório XI e Urbano VI...

Por outro lado, já desde o ocaso da Idade Média (e especialmente desde Felipe, o Belo), o humanismo, e depois o Renascimento, e depois o luteranismo, e depois o liberalismo e a revolução francesa, e depois o comunismo e o “é proibido proibir” vieram cercando e combatendo a Igreja, a Cristandade, a doutrina cristã. Era a revolta da carne e do amor-próprio contra a ordenação de toda a vida humana, incluindo as cidades e seus regimes políticos, ao Fim Último do homem, ao Bem Comum de todo o universo, ao reinado social de Cristo. Era a revolta contra o Reino de Deus. Era o retorno em escala ampliada do “non serviam” edênico. E, em face desse sítio cada vez mais maciço e agressivo, a própria Cristandade (e por vezes os próprios homens da Hierarquia, como, por exemplo, os Papas humanistas) veio fraquejando cada vez mais, quer cedendo ao subjetivismo crescente do pensamento moderno, quer cedendo à velha reivindicação de Dante (expressa em seu Sobre a Monarquia): a independência do poder temporal com relação ao poder espiritual.

Ora (e não aprofundamos esse tema aqui precisamente porque o faremos na série “Sedevacantismo, uma conclusão à procura de premissas”), a situação da Igreja imediatamente antes do Concílio Vaticano II era a de uma cidade gravemente sitiada e exausta, que tivera dificuldades até para cumprir efetivamente o programa antimodernista ordenado por São Pio X. Mas as resoluções daquele Concílio, que tenderam, todas, a negar o caráter magisterial e infalível do Papado e a transferi-lo, liberalmente, para o “povo de Deus”, lançaram a Igreja numa crise sem precedentes, justamente porque derivada tanto de uma rendição ao mundo quanto da renúncia da própria Hierarquia a exercer sua autoridade suprema (e divinamente delegada). (E que não se argua a impossibilidade material de exercer essa autoridade por causa da negativa do mundo em aceitá-la: o fato de um governante ser deposto iniquamente lhe retira a autoridade de jure?) Poder-se-ia citar aqui, em apoio a essa conclusão, uma série de cifras, como as da queda súbita, acelerada e muito volumosa do número de vocações, do fim quase total das missões, da perda crescente de fiéis para as seitas protestantes, para o islã, etc., etc., etc. Mas basta citarmos ninguém menos que dois Papas conciliares: Paulo VI, que falou de uma infiltração da “fumaça de Satanás” na Igreja e de uma “autodemolição” dela; e João Paulo II, segundo o qual o catolicismo na Europa estava em situação de “apostasia silenciosa”.

Pois bem, sobretudo dois bispos, Monsenhor Lefebvre e D. Antônio de Castro Meyer, resistiram “cara a cara” a essa fumaça, a essa autodemolição, a essa apostasia silenciosa (não raro gritada). E, como Santo Atanásio, foram por isso excomungados, junto com os quatro bispos da Fraternidade São Pio X consagrados por M. Lefebvre precisamente para “manter íntegros os sacramentos e o sacerdócio”. Mas o Papa atual, Bento XVI, atendeu à Fraternidade São Pio X liberando primeiramente a tradicional Missa Tridentina, com o que dava fim a uma “ab-rogação” que em verdade não o foi: a Missa Tridentina não podia nem pode de modo algum ser ab-rogada (o que se explicará também na série “Sedevacantismo...”); e suspendendo agora, num “ato unilateral, bondoso e corajoso” segundo D. Bernard Fellay, superior da Fraternidade (cf.
www.dici.org e www.statveritas.com.ar), a excomunhão que atingia os quatro bispos consagrados por D. Lefebvre (conquanto não, ou ainda não, a que atinge este e D. Antônio de Castro Meyer).

Agradeçamos ao Papa, e agradeçamos especialmente a Nossa Senhora (por cuja intercessão em favor deste ato de Bento XVI se rezaram um milhão e setecentos mil rosários), este fim (parcial, mas efetivo) de tão escura sombra na história da Igreja. Como diz ainda D. Fellay, graças a este gesto do Santo Padre dá-se “o fim do opróbrio que pesava, nas pessoas dos bispos da Fraternidade, sobre todos aqueles que estão unidos de perto ou de longe à Tradição”, os quais “já não serão injustamente estigmatizados e condenados por terem mantido a Fé de seus pais”.

De nossa parte, por nos incluirmos entre os que estão unidos à Tradição da Igreja, não podemos senão rejubilar-nos com D. Fellay e a Fraternidade. Mais que isso, porém: com eles reafirmamos

● nossas fervorosas orações pelo Papa;

● nosso apego à Igreja de N. S. Jesus Cristo, nossa aceitação de seu ensinamento e nossa Fé na primazia de Pedro;

● nossa adesão ao Credo, ao juramento antimodernista de São Pio X e à profissão de Fé de Pio IV;

● nossa esperança na efetiva e mais que devida reabilitação de D. Lefebvre e D. Antônio de Castro Meyer;

● a necessidade de superar doutrinas opostas ao magistério infalível, para que se superem as causas profundas da atual situação da Igreja e se alcance, assim, uma sólida restauração dela – contra o mundo, contra a carne e contra o demônio.
Adendo do Sidney: Não é demais lembrar, frisar, destacar, que, embora desde ontem oficialmente em "unidade visível" com a Santa Sé, a Fraternidade São Pio X não arredou pé das questões doutrinais que são a razão de ser de sua firme posição desde o Concílio, conforme deixou claro ontem (24/01) o seu superior, D. Bernard Fellay, em um comunicado da Fraternidade e também em uma carta aos fiéis. E, aos amantes da Tradição insatisfeitos com a decisão de ontem — pelo fato de o documento não citar nominalmente a D. Marcel Lefebvre —, vale dizer: cuidado, caros amigos, para não cair nalguma espécie de sedevacantismo. Confiem: a confiança, dizia Santo Tomás, é uma esperança fortalecida por inabalável convicção. Ademais, são inescrutáveis os desígnios da Providência e só nos cabe o abandono total, na certeza de que os males, quaisquer que sejam, são por Deus ordenados a bens infinitamente maiores para as almas que O amam. E, por fim, essa coisa de querer tudo o mais perfeitamente possível cheira a milenarismo, pois tem um quê da ânsia (nada católica) de buscar a felicidade plena neste mundo. Não nos esqueçamos de que a nossa luta tem em vista uma vitória cujo ingrediente é a derrota para o mundo, como mostram os Santos mártires de todos os tempos — alguns dos quais perseguidos ou condenados iniquamente com o beneplácito e, não raro, a ação efetiva de membros da própria Igreja. Em suma, a paciência é o aprendizado próprio do sofrimento; se não aprendemos a sofrer nela, é porque o caminho a percorrer ainda é longo e nem sequer estamos preparados para o combate, não obstante as boas intenções e a clara visão do cenário da batalha.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Um serviço

Sidney Silveira
Um amigo enviou-me o endereço eletrônico de um sacerdote (Padre Elílio, incardinado na Arquidiocese de Juiz de Fora, Vigário Paroquial da Paróquia Bom Pastor, professor dos cursos de Filosofia e Teologia do CES/JF – ITASA), no qual há um excelente serviço prestado a todos: uma tradução, de sua lavra, do opúsculo de Santo Tomás De rationibus Fidei, dividido em dez capítulos, dos quais já foram traduzidos seis.

Pinço, aqui, um trecho desse escrito, no qual ensina-nos o grande Santo e Doutor como se deve disputar com os infiéis (qualiter sit disputandum contra infideles):

“(...) A isto, portanto, deve tender a intenção do disputador cristão: não prove ele a fé, mas defenda-a”.

Esta é justamente uma das divisas do Contra Impugnantes: não provar a fé por meio de razões necessárias, porque a fé é para ser crida por nós como revelada por Deus, conforme afirma Santo Tomás nesse mesmo notável parágrafo, do qual extraímos o trecho acima. Mas é também para ser defendida dos erros que a ela se contraponham, sejam metafísicos, gnosiológicos, antropológicos, políticos, teológicos, etc. A propósito, acrescenta o Angélico no mesmo parágrafo: “(...) Assim como a nossa fé não pode ser provada por razões necessárias, já que excede a mente humana, de igual modo, por causa da sua verdade, não pode ser refutada por razão necessária”.

Parabéns pela iniciativa, Padre Elílio!

Em tempo: A fé é certamente para ser crida por todos os fiéis, do grande teólogo, do Santo Doutor, ao mais intelectualmente incapaz e simplório. Mas a sua defesa não é para todos, e por um simples motivo: ela requer não apenas o conhecimento da doutrina, nas principais formulações em que o Magistério (com a sua suprema autoridade, participada pelo próprio Cristo) a moldou através dos séculos — contra heresias que atingiam alguns de seus elementos essenciais; requer também preparo metafísico e teológico, adquirido em anos e anos de estudo, acompanhado de uma profunda vida interior necessariamente alimentada pelos sacramentos. Sem isto, o ardor da defesa da fé transforma-se numa espécie de conversa entre rufiões num bar, torna-se vulgar, acanalha-se, tende a toda a sorte de sectarismos (aos quais sempre falta o conhecimento de algo essencial da doutrina).

Na verdade, os excelsos mistérios não devem ser discutidos (mesmo contra hereges públicos) em linguagem torpe, nem sem sólidos argumentos teológicos. E muito menos com ofensas e murmurações que, em geral, só fazem as pessoas cristalizar os erros em que estão — porque se vêem compelidas a reagir na mesma moeda. Santo Tomás, o maior controversista de todos os tempos, deu-nos um exemplo: pelo método da disputatio acolhia ele os argumentos dos adversários e os punha como objeções que, depois, eram refutadas racionalmente. Esse equilíbrio extraordinário na defesa da fé, diga-se, não se pode dar sem graças proporcionadas a essa tão digna tarefa. E, em suma, vida interior sem estudo teológico não basta para que esta obra específica de defesa da fé dê frutos. E a inversa é também verdadeira: não basta o estudo teológico e filosófico, se não houver vida habitual na Graça.

É igualmente necessário o pleno conhecimento dos graus de autoridade do Corpo Místico que é a Igreja e, também, dos limites de atuação dos fiéis, mesmo nos maiores momentos de crises doutrinais e/ou pastorais. Sim, mesmo em situações excepcionais de necessidade — nas quais a obediência à autoridade superior (Cristo) deve prevalecer em relação à autoridade instrumental intermediária — há limites e modos bem-definidos para a atuação dos fiéis. Voltaremos ao tema, noutra oportunidade, depois de terminar a série sobre a predestinação, iniciada a pedido de uma amiga distante.

A linguagem dura, clara e inflamada da apologética não deve — de maneira alguma — transformar-se em desrespeito, falta de caridade, maledicência. Em suma: não se deve defender a fé pecando, venial ou mortalmente. Para fazer isto, é muito melhor o silêncio. É difícil o equilíbrio nesta defesa? Sim! Mas deve ser a meta, com o auxílio necessário da Graça e as precondições acima citadas.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (VI)

Carlos Nougué
Pergunta prévia aos sedevacantistas
Como já dissemos diversas vezes, o desenvolvimento do tema que nos ocupa nesta série é lento, longo, e requer paciência do autor e do leitor. Negamo-nos peremptoriamente a responder “na mesma moeda” aos artigos dos sedevacantistas que vêm pululando na Internet contra a tese aqui esgrimida. Por quê? Pelo simples fato de que em tais artigos eles não esgrimem propriamente uma tese, mas rótulos, palavras de ordem, ofensas até, no melhor estilo da política maquiavélica moderna, em que a propaganda é a alma do negócio. Se o fizéssemos, estaríamos prestando um desserviço à verdade, e neste caso faz parte da verdade o fato de que, como toda e qualquer forma de pensamento mágico no sentido em que usamos aqui esta expressão, o sedevacantismo não suporta a complexidade do real, particularmente a crise vivida atualmente pela Igreja, e reduz tudo – complexidade do real e crise da Igreja – a um elemento simples, capaz de reconfortar o coração aflito de seus seguidores: “os papas conciliares, por heréticos, não são Papas”. Quem o decretou? Ora, eles mesmos, os sedevacantistas, por motivos variados, mas mais comumente invocando a Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.

Pois bem, o real caráter do sedevacantismo e a falácia de sua “conclusão” serão devidamente mostrados, mas, repita-se, no ritmo que requer a exposição da verdade. No entanto, e quem sabe até para que os próprios sedevacantistas reflitam um pouco em quão precipitada é sua “conclusão”, relembramos a eles algo que se disse no primeiro artigo desta série:

● Em 6 de abril de 1560 (ou seja, pouco mais de um ano depois da referida Bula), Pio IV, sucessor imediato de Paulo IV, emitiu uma documento que modificava algumas medidas disciplinares daquela. Com efeito, lê-se na História dos Papas de Ludovico Pastor: “Em clara referência a Paulo IV, [o Papa Pio IV] publicou uma declaração segundo a qual todos os que haviam incorrido em alguma censura, em excomunhão ou outra condenação por causa de heresia podiam submeter outra vez sua causa a uma nova averiguação judicial, não obstante todas as sentenças de seus predecessores”.

● Lê-se ainda na História dos Papas de Ludovico Pastor que o mesmo Pio IV publicou, em 9 de outubro de 1562, uma Bula destinada a legislar sobre o Conclave para a eleição pontifícia, a qual também alterava disposições disciplinares da Bula de Paulo IV. Dizia o documento de Pio IV: “Ninguém pode ser excluído da eleição sob pretexto de que está excomungado ou incorreu em alguma censura”, ou seja: “não obstante as sentenças de Paulo IV, os condenados (por exemplo, depostos) e os excomungados ou censurados (incluindo Cardeais depostos) podiam ser eleitos no Conclave”.

Pois bem, perguntamos então aos sedevacantistas que invocam para centro de seus argumentos a mencionada Bula de Paulo IV: por ir contra disposições essenciais do documento de seu antecessor, teria sido herético também Pio IV e ipso facto teria estado vacante a Sede também durante seu pontificado?

* * *

Mostrou-se no artigo anterior a falsidade central da tese sedevacantista que primeiramente nos ocupa: a da infalibilidade do sensus fidei de que seria dotado cada fiel, à qual corresponderia uma pregação da hierarquia eclesiástica com mero caráter de persuasão. Na verdade, como mostrado, tal noção é uma perversão da verdadeira doutrina sobre o sensus fidei. Resta-nos mostrar, porém, ainda que brevemente, que esta forma de sedevacantismo de certo modo partilha tal perversão com o protestantismo, por um lado, e com o modernismo, por outro. Feito isso, passaremos no próximo artigo a refutar a segunda falsidade da tese adversária: a reconstrução ideal da história que ela opera.

Pois bem, o principal traço da heresia protestante é o atribuir a cada crente (protestante, claro) um sensus fidei infalível, tal como, mutatis mutandis, o faz o nosso sedevacantista de primeiro tipo. Mas como se livra o protestantismo do intolerável papel de magister atribuído ao Magistério da Igreja? Por dois princípios, quais sejam: a) o da “sola scriptura”, com o qual se “congela o Traditum revelado nas Sagradas Escrituras” (P. Calderón, ibid.) e se transforma Cristo num Deus de papel; b) o do “livre exame”, pelo qual se atribui o carisma da infalível verdade à fé individual. E é este, em verdade, o principal desses dois princípios, porque é graças a ele que cada fiel individual saberia o que é de fato revelado e o que não o é, o que decorre e o que não decorre do revelado, etc. Naturalmente, este princípio, essencialmente liberal, entra necessariamente em contradição com o imobilismo do primeiro, e está na origem do caráter entrópico do protestantismo, ou seja, de seu fracionamento ao infinito em seitas que vão do luteranismo “ortodoxo” até a Igreja do Cuspe de Cristo... E como não seria assim se, como diz o Padre Calderón (ibid.), “a doutrina que possa seguir-se [da meditação pessoal] das Escrituras, conquanto seja certamente infalível pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente, não tem por que ser imposta ao vizinho: toda teologia é pessoal e para proveito próprio, [e] que ninguém pretenda então constituir-se mestre dos demais”...?

Naturalmente, não estamos dizendo que a forma de sedevacantismo que nos ocupa em primeiro lugar sustente o princípio protestante do livre exame. O que, sim, dizemos é que: a) sustenta um dos pressupostos desse princípio, qual seja, a infalibilidade de um “instinto da fé” ou sensus fidei individual “pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente” (crente “autêntico”, adjetiva o nosso sedevacantista); b) pressupõe que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos crentes autênticos a mesma coisa, razão por que em face do sensus fidei de cada fiel autêntico ou da unidade do sensus fidei do conjunto dos crentes autênticos o Magistério da Igreja não tem senão caráter de persuasão, com o que, tal qual o protestantismo, conquanto mutatis mutantis, este tipo de sedevacantismo acaba também por resvalar pela ladeira do liberalismo e sua ojeriza ao caráter magisterial da autoridade; c) tal como o protestantismo, tem o sedevacantismo caráter entrópico: que o digam os cerca de 15 “papas” atuais que saíram de suas oficinas... (Não se entenda mal: bem sabemos que algumas correntes de sedevacantismo mitigado não julgam legítimo eleger um papa sem a devida jurisdição para tal. Mas isso não contradiz o caráter essencialmente entrópico do sedevacantismo como um todo, do qual também são resultado essas mesmas correntes mitigadas.)

Por outro lado, todavia, esta forma de sedevacantismo partilha, sempre mutatis mutandis, a perversão da noção de sensus fidei própria do modernismo. Com efeito, como o protestante, o modernista (que é um católico liberal de certo tipo) abomina o caráter magisterial da autoridade, mas tampouco quer enveredar pelo caminho do fracionamento protestante. Assim, se, “ao comer do fruto oferecido pela serpente kantiana” (P. Calderón, ibid.), ele “descobriu” que as fórmulas conceptuais escolásticas herdadas do passado não serviam para expressar o mistério divino e concluiu por isso que devia aderir ao livre exame, concluiu também, todavia, que para evitar um fracionamento ao modo protestante o livre exame não devia ser individual ou individualista, mas comunitário.

Em função desse redirecionamento do princípio protestante, passou-se a crer que a revelação, expressa especialmente, sim, pelas Sagradas Escrituras, foi porém dada por Deus imediatamente não a cada fiel, mas tampouco exclusivamente à Hierarquia eclesiástica, e sim ao conjunto da Igreja, sem distinção entre fiéis e clérigos, mas tampouco sem hierarquização entre eles.

Por isso a verdadeira autoridade em matéria de fé, a sua regra próxima, seria na verdade o resultado do diálogo comunitário de todo o povo de Deus em seu livre exame coletivo das Sagradas Escrituras, donde a fatuidade ou mutabilidade das formulações não só escolásticas, mas também dogmáticas: a Hierarquia eclesiástica, incluído naturalmente o Papa, não deveria exercer senão o papel de mediador desse diálogo. Sucede porém que, como, apesar de “assistido infalivelmente pelo Espírito Santo”, o livre e dialogado exame comunitário do modernismo não pode terminar nunca, por tropeçar nas insuperáveis e volúveis contradições entre os multitudinários participantes de tal concílio permanente, aos dogmas outrora decretados ex cathedra pelos Sumos Pontífices nada os vem substituir, nenhuma decisão, nenhuma orientação além da linha geral de seguir dialogando per omnia saecula saeculorum.

Pois bem, não dizemos que o nosso sedevacantista de primeiro tipo defenda a correção modernista do sensus fidei protestante. Mas dizemos, sim, que: a) partilha com ela, mutatis mutandis, a suposição da assistência garantida do Espírito Santo ao conjunto dos féis (fiéis “autênticos”, adjetiva ele), sem marcada hierarquização entre crentes e hierarquia eclesiástica; b) por pressupor que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos fiéis autênticos a mesma coisa, considera que o Magistério da Igreja tem, no máximo, caráter de persuasão, razão por que não lhe seria inconveniente o papel de mediador – não, é claro, de um diálogo com as características do diálogo modernista, mas sim, digamos, de possíveis arestas ou mal-entendidos entre os diversos “assistidos infalivelmente pelo Espírito Santo”; c) ainda mutatis mutandis, partilha com o modernismo, como com o protestantismo, a ojeriza ao caráter magisterial da autoridade.

(Continua.)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Estilhaços do Belo

Sidney Silveira
Na dimensão estética do homo liberalis, há uma fratura entre ser e conhecer, entre a inteligibilidade dos entes e a inteligência humana, entre o Belo ontológico e o Belo gnosiológico — pois, ao encerrar-se na pseudo-autonomia da sua consciência individual, a pretexto de ser “livre”, o liberal escravizou-se no reino da sensibilidade, onde a beleza não consegue ultrapassar, na medida e no nível em que humanamente poderia e deveria, a região dos sentidos: tanto dos sentidos externos, que captam a materialidade das coisas; como do sentido interno da imaginação, cuja capacidade de associar e dissociar imagens (e orientá-las à vis cogitativa da alma) sofreu um déficit fundamental, dado o patológico anseio de “autonomia”, de liberdade absoluta, em que o liberal está tristemente arrojado. Em suma, tal anseio exacerbado é causa próxima da imensa dificuldade que o liberal tem de hierarquizar ações e sensações e ordená-las a fins necessários extra mentis, dificuldade de vislumbrar nas coisas uma beleza além da de suas formas externas. Analogamente, é como um jogador de xadrez que, ao ver um tabuleiro com as peças em determinada posição, só enxergasse a beleza da disposição material delas, mas fosse cego à contemplação de sua beleza inteligível, ou seja: a da variante do jogo, com todas as implicações e possibilidades da posição.

Na prática, dado o seu radical despojamento do que é mais importante (na captação e conseqüente valoração dos entes, pelo homem), o liberalismo, no decorrer dos últimos duzentos anos, produziu, teorizou e disseminou pelo mundo:

Uma beleza sem dimensão teleológica.
Uma beleza sem verdade. Sem o horizonte orientador do verum.
Uma beleza sentida e/ou percebida, que não alcança plenamente a região do inteligível.
Uma beleza sem bem e, portanto, sem moral.
Uma beleza da mera justaposição dos materiais usados.
Uma beleza sem ética — sem dever-ser. Indutora da revolução dos costumes, de uma permanente e nunca assaz satisfeita quebra de códigos.
Uma beleza do simples artesanato.
Uma beleza sem sublime.
Uma beleza sem ‘noesis’ e, portanto, sem ordem, em sentido próprio.
Uma beleza da imanência e, portanto, incapaz de proporcionar verdadeiro êxtase.
Uma beleza da “autonomia” do Belo em relação às dimensões transcendentais do Ser.
Uma beleza sem a presença do sagrado, ou seja: sem a sombra de Deus.
Uma beleza sem os arquétipos da condição humana.
Uma beleza do devir em detrimento do ser.
Uma beleza do tipo l’art pour l’art.
Uma beleza da inversão dos meios e dos fins.

Emancipada do seu alcance metafísico, teológico, gnosiológico e ético, como acontece no liberalismo, a arte (e toda a presumível beleza que seja capaz de produzir) se esvai em jogos formais vazios. Não lhe restará senão ser mistificadora, totêmica, fantasiosa, espectral, formalista, voluntarista, imoralista, “conceitual”, etc. Em síntese, restam tão-somente estilhaços do Belo — cuja fragmentação teórica e prática é proporcional à fragmentação do homem que a teoria liberal, artificiosamente, criou: um ente cindido por potências entre as quais não existe uma hierarquia relativa aos bens que cada uma é capaz de atualizar, mas apenas a liberdade “absoluta” da vontade.

Nesta configuração, a arte se transforma em um tipo de ação humana totalmente desprovido e/ou alheio ao reino do supra-sensível. E, ainda que, em tal perspectiva, se consigam identificar certos aspectos isolados do Belo — como proporção e harmonia — jamais será uma beleza elevada, jamais edificante, jamais extasiante, jamais íntegra. Será, isto sim, uma beleza avessa à excelência espiritual a que o homem (dadas as suas potências distintivas) é vocacionado, individual e socialmente. E ai de quem apontar limites gnosiológicos ou morais para tal tipo de beleza...

Este, senhores, é o admirável mundo forjado pela cosmovisão liberal. Um mundo no qual a beleza (podada de suas reais dimensões, reduzida a uma casca superficial) torna-se, cada vez mais, um chamado ao abismo, à queda, ao erro, à mentira, às paixões mais loucas. Um mundo no qual a beleza torna-se um chamado a prazeres tão intensos quanto angustiosos e lancinantes, pois cauterizam em nós o que há de mais elevado: a imagem e a semelhança divinas.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (V)

Carlos Nougué
Assim, ao contrário do que diz o nosso sedevacantista de primeiro tipo (ver o artigo III desta série), não é um suposto “instinto da fé” ou sensus fidei dado por Deus mesmo a cada fiel o que o faz professar de modo infalível as verdades divinas. Como vimos, cada fiel só pode fazer uma profissão de fé externa certa com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.

Mas, então, há de perguntar o nosso sedevacantista, de nada vale ou de nada serve a virtude infusa da fé? É claro que vale: a fé, sobretudo uma fé robusta, acompanhada de certos dons do Espírito Santo (o da sabedoria, o do intelecto e o da ciência), é capaz de compreender clara e firmemente muitas verdades. Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata. Mas o católico, incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé “se o confirmar”, como diz o Padre Calderón (ibid.), “e no grau em que o confirmar o Magistério da Igreja”.

Mas não é verdade de fé que o sensus fidei é infalível? Sim, o é, mas não como entende essa noção o nosso sedevacantista. Antes de tudo, ao contrário do que afirmam tanto os protestantes como os sedevacantistas, o sensus fidei não é um “instinto individual da fé dado por Deus a cada fiel”. “Sensus fidei do povo cristão” é outra maneira de dizer “consensus fidelium in doctrinam fidei”, e refere-se ao fato de que a “universitas fidelium in credendo falli nequit”, ou seja, quando a universalidade ou totalidade “moral” dos fiéis católicos professa uma verdade como sendo de fé, não pode enganar-se. Isto, sim, “é critério infalível da divina Tradição (cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882). Isto é verdade de fé católica” (idem).

Ao contrário do que, como veremos, diz o modernismo, “o sujeito deste ato ('id quod’ agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se obra (‘id quo’ agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não vem exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, e sim do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, e sim o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, e sim o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica” (idem; negrito nosso), desde que, obviamente, como também veremos na hora certa, a Hierarquia não renuncie a esta infalibilidade. Pois bem, como diz ainda o Padre Calderón, embora ainda não se possa dizer que esta tese seja dogma de fé, “ela entretanto é doutrina católica certa”* (idem).

Aprofundemos a questão, para que não reste nenhuma dúvida a seu respeito. De fato, como dizia Santo Tomás (Suma Teológica, IIa-IIae, q. 1, a. 3: “Utrum fidei possit subesse falsum”), a virtude sobrenatural da fé, infundida por Deus mesmo na alma de cada fiel, é infalível em seu ato interno. Sucede porém que este ato não serve como critério infalível da Tradição, porque, nesta vida, ele é essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe. Para o povo fiel saber com toda a certeza em que deve crer, as verdades de fé têm de ser propostas oralmente por um mestre infalível em seu ato externo, ou seja, por esse mestre enquanto instrumento fidelíssimo de Deus. Foram mestres assim “os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Heb., I, 1), o qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico” (idem).

Diz contudo o nosso sedevacantista que “as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus”. Ora, se é verdade que esse “como que” é demasiado ambíguo para permitir afirmar com certeza o que quer dizer seu autor, não se pode porém evitar ver na frase algo que tangencia perigosamente um “angelismo” à Descartes ou à Maritain, ou seja, o atribuir aos homens coisas que não convêm senão aos anjos (cf. neste blog a série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser” e o artigo “Maritainismo resistente”). Naturalmente, de potentia absoluta “Deus poderia ter proposto as verdades de fé [aos homens] por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como se deu de fato com os anjos” (idem). Com efeito, Deus formou no intelecto dos anjos, sobrenaturalmente e ao modo de revelação interior, certas espécies mediante as quais eles pudessem crer em diversas verdades divinas. Atente-se, porém, para duas coisas. Primeira, nem a própria natureza angélica é capaz de “conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus” (idem) procedeu àquela como revelação interior. Segundo, pelo fato de a natureza do homem ser política ou social, e sua inteligência ser discursiva, diacrônica, e não intuitiva, sincrônica, não lhe convinha tal modo de revelação: como dizia Santo Tomás, em virtude de a natureza não ser senão “a razão de certa arte divina, interior às coisas mesmas, pela qual elas próprias se movem para determinado fim”,** ou seja, em virtude de Deus mesmo ter infundido em cada ente, como razão seminal,*** a natureza que lhe é própria, Ele não a violenta.**** Ora, é da natureza própria do homem chegar à verdade mediante “o ensinamento do magistério oral de suas autoridades naturais” (idem), e não é próprio do intelecto humano intuir nenhumas verdades, incluídas, natural e especialmente, as verdades divinas. “Daí que Deus, que tudo faz com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma divina autoridade” (idem).

Por isso, se de fato o fiel é levado a assentir ao Magistério da Igreja pela virtude infusa e interna da fé, a certeza da profissão de fé, porém, “depende formalmente dos critérios externos pelos quais pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel julga entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo do que crê senão na medida em que lho assegure o Magistério” (idem); e, ao contrário do que afirmam os protestantes e do que como que afirma o nosso sedevacantista, o fiel “não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o Magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados” (idem).

Já podemos, pois, começar a concluir esta parte. Para que se dê a infalibilidade do consensus fidelium in doctrinam fidei, ou seja, do sensus fidei, intervêm, por um lado, a virtude infusa da fé e, por outro, a proposição do Magistério, e é em razão desses dois elementos que a universalidade “moral” dos fiéis é dócil às verdades de fé. Mas é o Magistério da Igreja quem propõe as verdades em que se há de crer como de fé, e o faz com o penhor de sua autoridade infalível. Ou seja, o que se disse de cada fiel vale também para a universalidade dos fiéis: ela “não pode crer senão no que o Magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lhe propõe; com esta diferença, porém: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, mas não a da Igreja universal” (idem).

É por esse motivo que a infalibilidade da Igreja in credendo, ou seja, a do conjunto dos fiéis enquanto crentes (sem distinção entre clérigos e leigos), se reduz à infalibilidade da Igreja in docendo, ou seja, à da docência da Hierarquia. (Cf. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6ª, Torino 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. Apud P. Calderón, ibid.) Em outras palavras, a infalibilidade da Igreja in credendo reduz-se à infalibilidade da Igreja in docendo porque esta é a causa daquela: “a proposição do Magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude da fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao Magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: o concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos” (P. Calderón, ibid.).

Prova-se suficientemente com isso a falsidade de afirmar, como o faz o nosso sedevacantista, que a pregação da Hierarquia “não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: ela não tem autoridade com relação aos atos de fé, ainda que confirmada por milagres. O ato de fé primordial (o crer em Deus) é infundido por Deus mesmo na alma de cada fiel, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. (Afora a patente falsidade de afirmar que o “crer em Deus” seja um ato de fé necessariamente infundido por Deus, quando se sabe, racional e dogmaticamente [cf. São Paulo e o Concílio Vaticano I], que a razão natural humana é capaz de conhecer a Deus por indução das coisas criadas por Ele.) Mas, insistiria ainda o autor da tese adversária, por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como algo distinto do Magistério no que tange ao julgamento do pertencente à Tradição? Não bastaria, consoante o que se viu, falar apenas da proposição do Magistério? “Não”, responde ainda o Padre Calderón (ibid.), “porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com respeito a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo Magistério da Igreja, porque [a universalidade dos fiéis] não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus”. Em outras palavras, o Magistério infalível da Igreja é a regra próxima da fé (regula fidei quoad nos proxima), enquanto as Escrituras e a Tradição são a regra remota da fé (regula fidei quoad nos remota), da qual aquela, por sua própria natureza, não pode afastar-se.

(Continua.)

* Um dogma de fé só pode partir do Magistério eclesiástico justamente pelo fato de seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora um Papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai definir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade do magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón, ibid.). E o que se acaba de dizer é verdade de fé e deve pois ser crido docilmente; mas é negado pelos sedevacantistas.

** Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.

*** Cf. Santo Agostinho, De Trinitate, III, 8-9, e De Genesi ad litteram, VI, 10.

**** Os milagres e a ação da graça sobre a alma humana não são uma violência contra a natureza dos entes, porque, como dizia Santo Tomás, em toda e qualquer criatura há uma potência obedencial com relação ao agente primeiro, ou seja, Deus (cf. Suma Teológica, IIIa, q. 11, a. 1, corpus).

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Condenados ao esteticismo

Sidney Silveira
Já se disse noutra oportunidade que o liberal, quando interessado por arte, consegue no máximo ser um esteta. Isto porque o modo fragmentário como considera o indivíduo humano (um ente cindido entre potências dispersas não hierarquizadas entre si) e as sociedades (um amontoado de grupos pluralistas e libertários, onde não existe “bem comum” e a noção de autoridade dilui-se) acaba moldando, também, a forma como concebe o fenômeno estético. Na prática, o modelo de arte e de sociedade, para o liberal, é um antimodelo, ou seja: como não há — na sociedade liberal-democratista — um fim a ser necessariamente buscado, mas apenas a afirmação da intocabilidade das liberdades individuais, naturalmente nenhum modelo poderá ser proposto. Igualmente, não poderá haver nenhuma sensibilidade comum que a configure e caracterize; nenhum símbolo unitário que a represente; nenhum paradigma transcendente ao qual se conforme. Estamos, pois, no reino da multiplicidade. No reino da quantidade e da dispersão. No reino da contínua divisão.

Já mostramos, em inúmeros textos do blog, o quão equívoca é a tese da “consciência individual autônoma”, em termos metafísicos e, também, antropológicos. Trata-se de uma tese que não fica de pé diante de uma verdadeira objeção filosófica (até agora, os nossos adversários liberais não apresentaram nenhuma resposta às muitas aporias expostas no Contra Impugnantes, quanto a este ponto). Pois bem: demonstrada a absoluta insuficiência, a falácia da tese da “consciência individual autônoma”, passaremos a expor as conseqüências, no tocante à arte, desta insana idéia.

Em sociedades nas quais tudo deve dobrar-se às “liberdades” individuais, a pretexto de que estas sejam defendidas da “opressão” externa (já que qualquer autoridade exterior à consciência do indivíduo não é, nelas, propriamente legítima, mas apenas tolerada em ocasiões excepcionais ou limítrofes), naturalmente as manifestações humanas tendem a se multiplicar ad infinitum, pois lhes faltam balizas, lhes falta um norte, lhes falta, enfim, um cânon. Isto observamos, grandemente, na expressão das artes contemporâneas. Trata-se de uma evidência insofismável, na medida em que a arte — na “cosmovisão” liberal em que o mundo mergulha — é caracterizada por:

1- Heterogeneidade de propostas estéticas;
2- Experimentalismo constante;
3- Criação permanente de novos “paradigmas”;
4- Constante tentativa de superação de linguagens anteriormente aceitas;
5- Constante necessidade de renovação:
6- Amor ao “novo” e ódio ao antigo;
7- Multiplicidade programática de correntes conflitantes entre si;
8- Busca incessante por novos materiais;
9- Busca incessante por “originalidade”;
10- Busca incessante por manifestações “chocantes”;
11- Perda da noção de arte sacra;
12- Separação entre estético e ético, ente belo e bom;
13- Multiplicidade de interpretações sobre o fenômeno estético;
14- Tendência ao imoralismo;
15- etc.

Essa azáfama de correntes e manifestações artísticas, essa tresloucada busca por novos códigos, essa idolatria a efemérides e banalidades, essa paixão pelo que é ordinário e fugaz, essa ânsia febril por novidades — tudo isso são signos veementes da cultura liberal. Signos da perda do sentido de unidade que, até a difusão do liberalismo pelo mundo, caracterizava cada cultura, cada povo. Signos da perda da identidade, da perda das marcas mais distintivas de uma gente, de uma nação, conseqüência direta do liberalismo, pois não pode identificar-se consigo mesmo nada que se perca em meio à multiplicidade, em meio a indivíduos que são como mônadas impermeáveis, autônomas, isoladas. Não há, portanto, nessa imensa policromia da cultura liberal, uma identidade estética — nem moral —, em sentido próprio. Há, sim, uma babel de manifestações que jamais poderão compor uma fisionomia artística, uma fisionomia dos valores de um povo. Compõem, sim, uma colcha multifacetada de retalhos, de valores entre si colidentes, todos “consagrados” e “legitimados” em nome da liberdade de expressão.

Contraponha-se tal paisagem labiríntica ao que é a arte numa sociedade não liberal, ou seja: não pluralista. Nela há uma sensibilidade comum, que a caracteriza; há um símbolo unitário prevalecente, que a representa; há um paradigma transcendente, ao qual se conforma. E este seu sentido de unidade, longe de representar uma amarra, é a sua pujança maior, a base para que a arte alcance a região dos arquétipos da condição humana, por meio de um profícuo simbolismo. Vejamos, a título de exemplo, a Cristandade em seu ápice medieval, trazendo aos nossos leitores um trecho do estudo de João Acácio Aguiar de Castro, na introdução ao livro O sentido do belo no século XII, que identifica uma matriz estruturante para o labor estético daquele período:

“Destacaríamos quatro [precondições para o tipo de manifestação artística da época]: a existência de uma mathesis universalis, a língua latina; a certeza presente em todos os autores [artistas] da revelação divina da Sagrada Escritura, logo de uma aferição possível de todos os saberes; a consciência de pertença a uma comunidade que, não tendo hiatos na história, representa ela mesma a cultura dentro do espaço e tempo históricos, as patrísticas grega e latina; finalmente, a consciência de que todo o saber culto se configura como uma philosophia perennis ou theologia perennis, onde o tempo aponta inevitavelmente para a eternidade e onde a missão do saber, também do saber estético, não é tanto inovar, mas sobretudo repetir, dando continuidade à tradição. (...) E as noções de simetria, harmonia, proporção (...) só podem ser entendidas como emanação, concretização ou imitação do Belo transcendente”.

Ora, como diz o mesmo João Acácio noutro trecho do seu livro, a harmonia não é senão a redução do múltiplo no uno, do desigual no igual e do diverso no homogêneo. E, numa sociedade não liberal, essa harmonia parte, principalmente, da ordenação de tudo, nas grandes manifestações artísticas, ao transcendente. Enfim, a Deus. É arte que, eminentemente, simboliza as coisas sagradas.

Vale dizer outra coisa: ainda que se encontrem, nas sociedades não liberais do passado, diferentes sintaxes simbólicas, diferentes manifestações artísticas, o fato é que nelas a arte sempre tende à unidade, à perenidade, à ordenação dos meios a fins que lhes sejam adequados e proporcionais, e, por fim, à transcendência. São orientadas, portanto, por um paradigma, por um modelo de excelência que deve ser buscado — e não posto abaixo, revolucionariamente. E esta é a força da sua beleza: a de ser, literalmente, arte canônica, isto é, ter medidas e modelos universais. Ora, isto é facilmente verificável, por exemplo, nas catedrais góticas, que se baseavam em um cânon arquitetônico-simbólico, cânon que exteriormente demarcava o seu maravilhoso estilo, ainda que materializado em diferentes templos com características próprias; assim também no canto gregoriano; no canto polifônico; em certas representações pictóricas; etc.

Com a instauração do liberalismo em escala mundial (a sociedade globalizada, da qual não há mais como escaparmos, ai de nós!), estamos, no caso da arte, condenados ao esteticismo — que é a demolição de todos os cânones em favor de uma arte despojada do seu sentido espiritual profundo, do seu horizonte ético, da sua configuração simbólica que aponta para o mistério do ser e da vida humana. Eu, particularmente, não conheço nenhum liberal que, ao escrever sobre arte, produza algo além de cultura de almanaque (os seus blogs e revistas são exemplos gritantes).

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Preconceitos contra a inteligência, e um antídoto

Sidney Silveira
As principais correntes da filosofia do século XX nasceram da confluência de diferentes intuicionismos — ou seja, de teorias que, de uma forma ou de outra, partiam de uma gnosiologia que começava por alguma espécie de “intuição”, ou da pressuposição de que a inteligência é inapta para alcançar as verdades e os valores fundamentais. Vemos nelas uma radical negação do estatuto ontológico da inteligência, o que fez crescer o subjetivismo de forma assustadora, como se a objetivação da realidade, por parte da inteligência, fosse sempre algo deformante. Por esta razão deveríamos, de acordo com essas filosofias (as quais têm fortíssimas ressonâncias, ainda hoje), deixar as coisas “falar por si”, captar “pré-intelectivamente’ as suas essências. Ou, nas palavras de Husserl, precisamos ir às coisas mesmas vazios de quaisquer conhecimentos ou pressuposições, deixar que elas se manifestem ou se revelem por si. Em suma: devemos, ainda nas palavras de Husserl, “suspender o juízo”, e, com essa suspensão (epoché), encontrar um atalho para chegar à essência, ao eidos, ao quid est das coisas. E o filósofo alemão vai ainda mais longe, ao afirmar que, para filosofar, é preciso colocar tudo entre parênteses, a começar pela existência do mundo. Não consigo conceber uma atitude mais solipsística do que esta.

Esse ataque contra a inteligência, uma verdadeira blitzkrieg, tem várias configurações, no meio das quais vemos o que alguns historiadores chamam de mentalidade, ou seja: a idéia ou as idéias prevalecentes que subjazem às ações e aos valores de uma época. E tal mentalidade, enraizada fortemente no século XIX e com frutos maduros no século XX, é configurada pela total descrença nos dois valores fundamentais, para o homem: o bem e a verdade — captáveis, respectivamente, por nossas duas potências principais, a vontade e a inteligência. Esses dois valores objetivos são os que configuram positivamente a relação do homem com o mundo (o mesmo mundo que Husserl diz ser preciso pôr entre parênteses, para filosofar). Perdidas essas duas colunas, o homem perde com elas a possibilidade de constuir uma civilização, razão pela qual não lhe restará outra coisa senão assistir ao aumento crescente da barbárie, ainda que sob as máscaras mais diversas.

Vejamos as premissas dessas teorias antiintelectualistas, algumas das quais retiradas do instigante livro de Derisi intitulado Tratado de existencialismo y tomismo:

Kant: abriu um abismo insuperável entre a inteligência e as coisas, com a tese da incognoscibilidade da coisa em si. Não lhe restou uma opção senão a de criar um apriorismo transcendental. Uma quimera sofisticada.

Bergson: diz que a relação da inteligência com as coisas se funda em uma intuição supra-racional, já que há, em sua opinião, uma verdadeira irredutibilidade entre a consciência e os nossos atos e/ou fatos vitais.

Nietzsche: em seu parecer, a vida deve desenvolver-se plenamente pela afirmação da vontade. Em suma, a vida não pode e não deve ter amarras gnosiológicas, e nem metafísicas, éticas ou morais. O homem é dotado de um instinto irracional, cuja base (a única válida) é a sua ânsia de domínio sobre os demais. Nietzsche ficou catatônico praticamente em todos os últimos dez anos de sua vida. O momento e o modo como a sua doença começa valem um texto à parte, o qual fica para outra ocasião.

Kierkegaard: A realidade, a verdadeira, não é objetiva, mas subjetiva. E a inteligência não é capaz de alcançar a verdadeira realidade, que é ininteligível para o homem e, em suma, não se ajusta a exigências racionais ou dialéticas. Diga-se que esse preconceito de Kierkegaard contra a inteligência é, diretamente, caudatário de sua visão protestante, segundo a qual o homem, depois do pecado original, corrompeu essencialmente todas as suas potências.

Husserl: O seu método fenomenológico parte da intuição direta das essências, de que já falamos em diferentes textos. Entre outras coisas, a sua filosofia tende a transformar o objeto em algo absolutamente irredutível ao sujeito dotado de inteligência — o que preparará a concepção de filosofias que lhe são diretamente devedoras, segundo as quais entre a realidade e o pensamento há uma espécie de desarticulação fundamental irresolvível.

Max Scheler: Aplicou a fenomenologia husserliana à vida espiritual. Para ele, os valores são essências alógicas, e não essências captáveis por um processo intelectivo. Em suma, as coisas são valiosas não porque a inteligência lhes tenha descortinado o valor real, mas porque as sentimos assim, e ponto final.

Heidegger: É outro para quem o método válido, para a análise do ser, é o fenomenológico. Ou seja: devemos fazer com que o ser se revele por si, descubra-nos ele mesmo a sua íntima estrutura. Trata-se de um método intuitivo pelo qual a existência se revela por si mesma. Malgrado alguns insights de sua obra Ser e Tempo, não se pode dizer que haja uma congruente teoria do conhecimento em Heidegger, pois o conhecimento que o Dasein (o qual, em sua filosofia, não é outro senão o ente humano) tem de si mesmo provém não da intelecção de si e dos demais entes, mas de uma angústia existencial — a angústia, segundo Heidegger, de se ver arrojado ao nada, que é o seu destino. Somos para o nada. Bonito.

Sartre: O método do qual parte Sartre é, com matizações, o mesmo de Husserl e de Heidegger: devemos ir às coisas mesmas. Vê-las como se manifestam e se revelam, sem maiores interferências da nossa inteligência. Até porque não há, em Sartre, um ser em si captável pela inteligência, mas apenas aparências, as únicas acessíveis ao entendimento humano.

Muitos outros autores intuicionistas ou irracionalistas poderiam ser arrolados ou citados aqui, para mostrarmos o quanto essa mentalidade propagada por filosofias quiméricas ainda é predominante: uma mentalidade para a qual os valores são meras criações arbitrárias do homem (não objetivamente captáveis pela vontade, apetite intelectivo do bem), e as verdades fundamentais, inacessíveis (ou seja, não captáveis pela inteligência). Esta é a mentalidade de hoje, e não lhe resta ser outra coisa senão: imoralista, voluntarista, individualista, sexualista, irracionalista e relativista. Em suma, liberal!

A dissolução das idéias e das coisas, já em marcha acelerada no mundo contemporâneo (talvez em estágio terminal), tem em Santo Tomás um grande antídoto — dado o seu realismo gnosiológico, a sua profunda antropologia filosófica e, principalmente, a sua metafísica do ser, que dá respostas a todos esses grandes preconceitos contra a inteligência.

Estudemos, pois, a obra de Santo Tomás de Aquino. Com método, disciplina e perseverança. E, sobretudo, com amor.

Palavras de um Santo

Carlos Nougué
Enquanto não retomo as séries que comecei (o que farei na sexta-feira próxima, com um novo artigo de “Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas”), posto aqui estas palavras de São Pio X, palavras que dispensam quaisquer comentários:

“Estão, pois, muito equivocados os que acreditam possível e esperam para a Igreja um estado permanente de plena tranqüilidade, de prosperidade universal, e um reconhecimento prático e unânime de seu poder, sem contradição alguma; mas é pior e mais grave o erro daqueles que se iludem pensando que alcançarão essa paz efêmera mediante a dissimulação dos direitos e interesses da Igreja, sacrificando-os aos interesses privados, diminuindo-os injustamente, comprazendo o mundo, ‘no qual domina inteiramente o demônio’ (I Jo., V, 19), com o pretexto de captar a simpatia dos fautores de novidade e atraí-los para a Igreja, como se fora possível a harmonia entre a luz e as trevas, entre Cristo e o demônio. Trata-se de sonhos doentios, de alucinações que sempre ocorreram e ocorrerão enquanto houver soldados covardes que deponham as armas à simples presença do inimigo, ou traidores que pretendam a todo o custo fazer as pazes com os opositores, a saber, com o inimigo irreconciliável de Deus e dos homens” (Encíclica Communium Rerum, de 21 de abril de 1909).

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Obras de São Bernardo

Sidney Silveira
Descobri um site francês com a tradução das obras de São Bernardo: opúsculos, sermões, tratados, cartas, cânticos, etc. Dentre outros textos, indico, por ora, a leitura deste maravilhoso sermão.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Inteligência e ignorância nos atos humanos (e um depoimento pessoal)

Sidney Silveira
Em termos metafísicos, o ato que distingue o homem dos demais entes compostos de matéria e forma provém do influxo de suas duas potências mais elevadas: inteligência e vontade. E, a propósito, o estudo da interpenetração ou mútua colaboração da inteligência e da vontade no ato propriamente humano é um dos grandes temas da obra de Santo Tomás.

Pois muito bem: relendo hoje o belíssimo livro Inteligência e Pecado em S. Tomás de Aquino, do português Celestino Pires, S.J. — obra publicada em 1961 pela Faculdade de Filosofia de Braga (Portugal), mas que continua atualíssima, entre muitas outras coisas, pela superação dos erros de J. Maritain e J. de Blic no tocante ao tema do pecado —, deparei-me com um tópico particular: a ignorância como causa do pecado. Ou, em suma: em que sentido a ignorância pode causar o mal moral na vontade? Eis, em resumo, a resposta de Santo Tomás, sumariada por Celestino Pires: a inteligência age diretamente sobre a vontade, apresentando-lhe o bem sob alguns aspectos. É esta a sua forma positiva, direta e essencial de moção sobre a vontade. Mas há também uma moção negativa, indireta e acidental da inteligência: é a moção proveniente da ignorância de alguns aspectos essenciais do bem querido pela vontade. Em suma, a inteligência move per se a vontade pelo conhecimento, e per accidens pela ignorância. Um exemplo prosaico dado pelo próprio Celestino Pires, no estudo citado, parece-me bastante ilustrativo: “Conheço que determinado objeto é bom; a vontade move-se, quer alcançá-lo porque foi proposto pela inteligência como bom. De outra forma, vejo um líquido colorido bonito e desejo bebê-lo porque julgo que é um determinado licor [por mim conhecido], mas na verdade é um veneno. No primeiro caso é o conhecimento que move a vontade: quero o objeto porque é bom. No segundo, é a ignorância: quero porque não sei que é um veneno [algo mau]. Se o soubesse, não me apeteceria bebê-lo. Como se vê, o nexo causal dos dois porquês é diferente. O primeiro exprime a causalidade própria, per se, da inteligência; o segundo, a causalidade indireta, per accidens”.

A partir deste ponto há vários aprofundamentos e distinções, mas não vou mencioná-los agora porque a citação vem a propósito de algo que preciso dizer, sobre o projeto do Contra Impugnantes e sobre algumas reações que tem suscitado — as quais acabaram por levar-me, nos últimos dias, a tipos e modos de resposta que não fazem bem nem a mim, nem ao projeto em si e nem às pessoas a quem respondi. Ou melhor: a uma pessoa em particular. Pessoa de talentos maiores que os meus, de trajetória mais longa que a minha, na fé (a qual não cabe a mim julgar), e que ainda tem muito a dar de si, com a difusão da obra de Santo Tomás — para a qual está perfeitamente capacitada.

Tenho ainda o ardor, a flama do recém-convertido, flama que não quero jamais perder, pois é um signo sensível de um grande amor. Por ordem cronológica: primeiramente, amor a Santo Tomás — principal causa instrumental da minha tardia conversão, Santo a quem amo com grande força, com gratidão, e a quem todo o esforço da editora Sétimo Selo é dedicado (a propósito, era o mínimo que eu poderia fazer em agradecimento: compartilhar, da melhor forma que pudesse, mesmo com as minhas limitações, esse bem maravilhoso, profundo, que deixou marcas indeléveis em minha alma). Lendo Santo Tomás no silêncio e na solidão durante anos, aprendi muito sobre mim mesmo, sobre o que é humano, sobre a Igreja e sobre as coisas divinas. Um verdadeiro milagre transformador, retificador, purificador, pois, se dependesse apenas da minha história passada e dos meus pecados, eu estaria hoje num buraco escuro. Em segundo lugar à Igreja, cuja doutrina igualmente amo e de cujos sacramentos dependo para não me afastar de Deus. Igreja por cujos ensinamentos recebo a notícia dos bens divinos — bens que me seriam vedados se não tivessem sido revelados por Deus e ensinados pela Igreja desde quando recebeu, do próprio Cristo, esse Magistério (sobrenatural, porque participado pela fonte divina: “Ide e ensinai”, Mt. XXVIII, 19). Depois à Virgem, a quem venero. Agora por ordem “ontológica”: primeiro a Cristo e, por participação, à Igreja da qual ele é o cabeça, depois à Virgem e, por fim, a Santo Tomás, o mais santo dos sábios e o mais sábio dos santos, como se costuma dizer. São amores que se mesclam e que é minha obrigação ordenar a um duplo fim: natural (com a concretização das obras da fé) e sobrenatural (Deus mesmo, a quem tenho o dever de louvar e adorar já nesta vida, e, se for da vontade d’Ele, na vida perfeita que há de vir). Houve, é claro, outras causas instrumentais da minha conversão (coisas, pessoas e situações), mas isto é assunto que não diz respeito a ninguém.

Vi-me compelido a escrever este depoimento porque, embora o Contra Impugnantes seja um espaço de combate — e eu tenha verdadeiro ódio aos inúmeros malefícios da heresia liberal*, em todas as suas configurações, para a fé —, flagrei-me pecando contra a caridade em algumas das respostas desta última semana. Por paixão, pois reagi a algumas provocações. E também por ignorância, num duplo sentido: pelo desconhecimento de algumas coisas implicadas na discussão de que se trata (como as reais motivações do outro), e pela não-consideração do bem de sua alma, pois sei perfeitamente que podemos, de várias maneiras, mesmo sem querer, acabar servindo de instrumento para os pecados do próximo. Daí que o amor ao próximo, até mesmo aos inimigos ou adversários, seja absolutamente necessário, pois também ele está ordenado ao fim último de todos os homens: Deus. Quantos Santos, graças a esse amor sobrenatural, efetuaram conversões espetaculares e apaziguaram ódios que, humanamente, seriam impossíveis de extinguir! São exemplos para todos nós. Ademais, é esta uma pessoa de quem (na única vez em que nos vimos) ouvi o seguinte, enquanto esperava o trem numa estação do Metrô carioca: “Quero e espero que nós sejamos amigos”.

Como é dever nosso não apenas pedir perdão a Deus pelas faltas cometidas, mas também, na medida do possível, dar humana satisfação, ou seja, reparar, aqui vai: perdoe-me, meu amigo (em Cristo), se, com ou sem razões, eu lhe respondi sem observar o dever de amar-lhe. Meu desejo é o de que nos vejamos na eternidade beatífica, e que seja esta a vontade de Deus. Rezo hoje por esta intenção. E espero sinceramente que as divergências — quaisquer que sejam e por maiores que sejam — não se tornem ocasião de pecados graves para nenhum de nós dois.
* Heresia porque, em todos os seus princípios "autonomistas" fundamentais, foi solenemente condenada pelo Magistério da Igreja, como já mostramos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Alan Greespan, um não-liberal?

Sidney Silveira
A “boa nova”, proclamada em alguns púlpitos blogosféricos liberais e libertários, é que Alan Greespan, ex-presidente do Federal Reserve, não é, jamais foi, um liberal.

Pois bem. Uma das marcas do liberalismo é exatamente essa capacidade de travestir os seus argumentos com mil e um disfarces teóricos, ao sabor das “necessidades” momentâneas. Ora, como em seu balaio conceptual há uma gradação incomensurável de ações e teses propostas — gradação que é o lado exotérico da coisa toda, a manifestação exterior de um liberalismo fundamental, que temos exposto aqui —, toda vez que há alguma inconveniência, eles “excluem” da causa, sem dó nem piedade, quem tenha falhado ao defendê-la. É o caso de Greespan, durante décadas o grande defensor da intocabilidade dos mercados, sob o mote da auto-regulação (a propósito, “auto-regulação” é um dos termos do pensamento mágico liberal: tudo se ajeita naturalmente por si — para que autoridade?). Pois é, eis que agora nos descortinam a grande e acachapante novidade: Greenspan nunca foi liberal. Afinal, cometeu excessos no Fed adotando políticas “intervencionistas" em ocasiões específicas. Criticou, no ano passado, o sacrossanto mercado (ai, Jesus!). Criticou a falta de regulação do chamado subprime (isto após ter consentido, durante anos, com a farra desse mercado praticamente paralelo, diga-se!). “Acomodou” a política monetária e foi o grande "culpado" pelo excesso de crédito. E os agentes do mercado, coitadinhos, não têm absolutamente nenhuma responsabilidade. É sempre assim: para o liberal típico, jamais há mea culpa, dada a sua grande elasticidade teórica, mas somente culpa vestra. E se porventura Greespan bateu no peito e reconheceu, publicamente, a sua parcela de culpa para com a permissividade desse verdadeiro mercado paralelo, foi porque recebeu um choque de realidade e se rendeu à evidência do próprio erro, ainda que tardiamente, de modo parcial e confuso. Mas esse tipo de humildade é uma “queda” imperdoável, uma traição à causa.

Sabemos haver liberais dos mais quiméricos em seu otimismo — ou devaneio — libertário, os quais pregam, por exemplo, que os Bancos Centrais (um dos quais presididos por Greespan, durante anos a fio) são desnecessários. Autoridade monetária ou econômica? Ugh... Para estes idólatras da liberdade absoluta dos agentes econômicos, Greespan, simplesmente com ocupar o seu cargo de presidente do Fed (cargo “desnecessário”, incômodo), pode representar uma espécie de encarnação do “antiliberalismo” — ou de um “não-liberalismo”. Para outros, mais generosos, na prática Greespan ocupou um cargo que deve existir, sim, mas exorbitou de suas funções. Ora, assim é muito fácil, meus caros: tomar os ideólogos defensores de medidas extremas como critério de julgamento da imensa vala comum da ideologia (e mais: pondo-os como a norma do liberalismo econômico teórico), para excluir os mais moderados da “tchurma”, repetindo, como numa espécie de mantra — ele não é liberal, ele não é liberal, ele não é liberal. Assim é, de fato, moleza: "simplificar" uma realidade complexa por meio de um truque, uma palavrinha mágica dita num contexto aparetemente lógico.

Noutra oportunidade escreveremos sobre essa matreira tática. Mas, por ora, evoquemos uma imagem, para depois aplicá-la ao caso, analogamente: o mais e o menos verde são, igualmente, verdes. Certo? Sim, são gradações de verde — pois, como sabemos, há realidades que comportam graus, enquanto outras não o comportam. O maximamente verde (escuro) não exclui da espécie o verde-piscina, o verde-claro e outros verdes de matizes menos fortes. Veremos, noutra ocasião, se o liberalismo econômico comporta, ou não, o mais e o menos. E, se comporta, chequemos se Alan Greespan — chamado por vários economistas liberais (agora, que a vaca está no brejo) de Mr. Bubble — está assim, tão obviamente, fora da patota...

E nunca é demais lembrar que não ser teórico de uma causa não implica, necessariamente, não integrá-la na prática.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Pieper, tomismo e Pacheco Salles

Sidney Silveira
É bastante conhecido (até mesmo por principiantes no estudo da obra de Santo Tomás) o texto de Josef Pieper no qual ele diz que, em sentido próprio, não existe realmente um tomismo. É um texto bonito, se for encarado como uma metáfora, uma imagem da riqueza magnífica da obra do Angélico Doutor — ou seja: na medida em que nos aponta que ela não pode ser reduzida a um “ismo” qualquer, tão grandiosa que é. Mas tomá-lo como a literal expressão de uma pétrea verdade (ou seja: a de que o tomismo realmente não existe) é algo que não passa pela cabeça de quem conheça, minimamente, a história dos 700 anos em que incontáveis filósofos e professores dedicaram a sua vida intelectual ao estudo e à difusão da obra do grande mestre medieval — com diferentes e, não raro, conflitantes interpretações.

Pois bem: textos de estudiosos (tomistas!!) como Pieper — homens sérios, equilibrados — merecem ser discutidos, sobretudo porque são indubitavelmente autores importantes. Mas também merecem ser lidos e discutidos textos de homens mais extremados, como é o caso do cultíssimo Pacheco Salles, que acabou descambando para um dos tipos de sedevacantismo abordados pelo Nougué, na série que ainda promete muitos textos. Nós, mais adiante, exporemos aqui alguns desses textos, como exemplo de quão variado é o uso que muitos fazem dos instrumentos filosóficos aprendidos com Santo Tomás. Afinal, personagens como Pacheco Salles também fazem parte da história do tomismo, de alguma forma. E, se chegaram a certa estatura, seus escritos merecem ser analisados por nós, simples amantes de tudo que diga respeito a Santo Tomás.

Aguardem um pouco, amigos, com a mesma paciência com que nós lemos, por aí, as maiores diatribes, apaixonadas diatribes, tolas diatribes, irônicas diatribes... Mas aproxima-se a hora de a onça beber água, pois estão a cutucá-la com a vara curta, muito curta, e não por motivos nobres.

Predestinação à salvação (II)

Sidney Silveira
No primeiro artigo desta série, esqueci-me de enquadrar o tema da predestinação em outro, que lhe é anterior: o da Divina Providência.

Assim, vale dizer que — de acordo com Santo Tomás e com o Magistério da Igreja — a predestinação é um dos modos da Providência. Esta última se ocupa da disposição e ordenação dos meios aos fins que lhes são próprios. Neste contexto, aponta o Angélico que a ordem da criação comporta um duplo fim:

a) natural, ao qual todas as coisas tendem, pelo impulso das potências inscritas em suas próprias naturezas;
b) sobrenatural, no qual as criaturas dotadas de vontade e razão são ordenadas — pela generosidade da vontade divina — à bem-aventurança da visão beatífica, ou — pela justiça divina — à condenação, pela qual os réprobos sofrerão a pena devida por seus pecados, de acordo com a sabedoria e presciência divinas.

A Providência tem algumas outras características, que o Santo Doutor destaca:

1- Ela é universal, por estender-se a todas as coisas;
2- Ela é imediata, pois é concebida desde a eternidade. Ou seja: fora do tempo*, e não mediatamente, no tempo — embora, muitas vezes, seja executada sob a moção de causas segundas, sejam temporais (humanas) ou eviternas (angélicas).
3- Ela salva e conserva a contingência das coisas criadas. Diz Santo Tomás: “Sucede infalível e necessariamente o que a Providência dispõe que suceda de modo infalível e necessário. E sucede contingentemente o que a Providência dispõe que suceda de modo contingente”. (Suma Teológica, I, q. 22, a.4)

Pois bem, esse breve passo para trás era realmente necessário, para que nada de essencial ficasse por dizer, no tocante ao tema de que se trata. Fixemos, pois, muito bem: a predestinação é um dos modos da Providência Divina.

Voltando agora ao tópico da predestinação, o notável ensaísta da referida questão da Suma, na minha antiga edição (decerto um monge, pois sequer assina o nome), compõe um quadro para mostrar que Santo Tomás faz uma subdivisão, em prol da clareza dos seus argumentos teológicos:

1ª: NATUREZA DA PREDESTINAÇÃO

a) Aqui o Doutor Comum trata dos meios sobre os quais versa a predestinação (objeto formal);
b) De seu contrário: a reprovação;
c) Do predestinante (causa eficiente: Deus);
d) Do predestinado (causa material: o homem).

2ª: PROPRIEDADES DA PREDESTINAÇÃO

a) Aqui, da certeza [divina]: 1º. Quanto ao êxito da predestinação; 2º. Quanto ao exato número dos predestinados.
b) E aqui se pergunta se a predestinação pode ou não ser ajudada por nossas boas obras.

Outro ponto a destacar-se é que a predestinação dá eficácia e perseverança à vocação, à justificação e ao bom uso da Graça, de acordo com o abscôndito monge da minha amada Suma. A predestinação faz, também, com que todas as condições da vida natural — boas e más — se convertam para o bem do predestinado. Aqui, aproveito para abrir um breve parêntese e dar um testemunho pessoal, que não julgo inútil. Afinal, a fé implica, necessariamente, o testemunho, ainda que o temperamento ou as condições externas às vezes não o favoreçam. E o implica, justamente, porque ela é um bem que Deus quer que nós difundamos, com palavras e obras.

Hoje, olho em perspectiva todos os acontecimentos da trajetória de minha tardia conversão (com 40 anos) e vejo que, dado o meu absoluto desmerecimento, foi a Providência Divina que fez uso dos instrumentos (meios) certos, para que eu aprumasse o caminho. Só me resta, pois, agradecer continuamente ao Todo Poderoso e implorar o perdão por uma vida de tantos erros passados (inclusive certa má literatura por mim praticada), e de tantos pecados contra mim, contra o próximo e, sobretudo, contra Deus. E rezar para estar entre os predestinados — escolhidos por pura e simples dileção divina, e não por supostos méritos humanos. E, por fim, agradecer orantemente a Santo Tomás, a cuja devoção vamos, eu e o Nougué, fazer em breve um chamado no Contra Impugnantes.

No texto seguinte desta série, prosseguiremos com mais um quadro sinóptico sobre o tema da predestinação, trazendo um vislumbre da maneira extraordinária como Santo Tomás faz o seu approach teológico e desenvolve lindamente a questão.

* Noutra ocasião, se a oportunidade for propícia, falaremos sobre o De instantibus, texto atribuído a Santo Tomás.