segunda-feira, 30 de junho de 2008

Os fins da arte (III)

Carlos Nougué
Comecemos, agora, as precisões e desdobramentos requeridos pela hierarquização da boa arte apresentada ao
final do artigo anterior.

a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia
Bach. A única coisa que se requer deste tipo de arte é que, além de contribuir para a formação ética e pois política do indivíduo, não contrarie ou negue em nada o fim último do homem* e da própria arte, o qual é Deus mesmo.

Este tipo de arte abrange uma gama imensa de subtipos. Tomemos a música como exemplo, e veremos que aqui se incluem, de maneira também ascendente:

• A boa música folclórica ou popular, ou seja, aquela que atende aos requisitos dados acima. Má seria a música folclórica ou popular de caráter sensual ou indutor da concupiscência, ou de quaisquer outros vícios ou pecados. (Uma “harmônica” estátua de nu sensual é má arte** porque contraria o fim último do homem, induzindo à apetência de um bem criado em detrimento do Sumo Bem e da lei natural, e porque, afinal, o autêntico belo não é senão a outra face do bem. Voltaremos ao tema ao tratar da bondade ou da maldade intrínsecas da arte.) Por outro lado, não deixa de ser boa, em sua escala, uma música que vise ao mero descanso da mente e do corpo, ou a que vise a fazer dormir um bebê, como qualquer canção de ninar.

• Superior ao subtipo anterior, temos, por exemplo, a música profana dos clássicos Haydn e Mozart, e até o melhor de certos românticos, como o são certas peças de Schubert e os Noturnos de Chopin (embora estes padeçam, por vezes, de certa melancolia exacerbada — a melancolia é, dentro de certa e pequena medida, algo inerente à arte, pelas razões que veremos ao tratar a arte do ângulo de suas características intrínsecas; mas, repito, dentro de certa e pequena medida). Por outro lado, é má, por exemplo, grande parte da obra de um Beethoven, de um Schumann, de um Liszt, e quase toda a de Wagner, pois, sendo produto de homens gnósticos e/ou liberais e revolucionários, já não visa à formação ética (e portanto política) do homem, mas sim, por um lado, à expressão dos dilaceramentos e paixões dos próprios compositores e, por outro, induz os ouvintes a esses mesmos dilaceramentos e paixões. Aliás, a audição continuada desta espécie de música levará o ouvinte a ter a sensibilidade esgarçada, tensionada, tendente à explosão, à violência (exagero? para provar que não, basta a Quinta Sinfonia de Beethoven, tão adequadamente utilizada no terrível e perverso filme Laranja Mecânica) ou à tristeza: o que, indubitavelmente, é porta para vícios da mais variada índole.

• Vem depois a música profana barroca. (Não a confundir com a música renascentista, cujos madrigais são geralmente de uma sensualidade enfermiça, tão enfermiça como a de grande parte da pintura de Leonardo da Vinci e Botticelli. Alguns compositores, como Monteverdi, são já barrocos, mas ainda compõem peças ao estilo renascentista, enquanto, por outro lado, há alguns que se podem dizer pré-barrocos, e bons, como Byrd, Gibbons, Frescobaldi, etc.) O barroco é, de certa maneira, fruto do Concílio de Trento e da atividade dos jesuítas (conquanto se tenha arraigado também firmemente na parte protestante da Europa); veja-se que na pintura e na escultura o barroco é em parte uma questão de panejamentos para cobrir o nu renascentista, como é o caso do belíssimo quadro de Caravaggio A Inspiração de São Mateus. Na música, começa com uma volta à homofonia, mas termina por retomar, em grande estilo, a polifonia. É grande a lista dos bons compositores barrocos, quer católicos, quer protestantes: Corelli, Couperin, Vivaldi, Rameau, Haendel, Telleman, etc., etc. Mas atenção: quase todos esses grandes compositores barrocos também fizeram música não tão boa, sobretudo óperas “em que já não há a presença da graça” (di-lo o Padre Calmel, em seu magnífico Théologie de l’histoire, com respeito a muitas peças de Racine e Cornaille).

Como
diz Sidney Silveira, “louvar implica juízo de valor (um ato da potência intelectiva), ao passo que fruir, não — pois, conforme explica Santo Tomás (Suma Teológica, IªIIª, 11, a.2. resp.), desfrutar não é ato da potência que alcança o fim como ordenadora, e sim da potência que alcança o fim como executora, o que é muito diferente. Por isso, a fruição está na potência apetitiva, e não na intelectiva, razão pela qual uma arte que nos leve a fruir sem contemplar é, ontologicamente, inferior àquela que nos leva a contemplar fruindo”. Precisamente por tudo isso, pois, é que o tipo de arte que tratamos aqui é boa, mas, de maneira geral, inferior à que trataremos no post seguinte.

Faça-se porém a seguinte ressalva: parte da música clássica e da barroca profanas já nos leva, em certa medida variada, a contemplar fruindo a Criação e a harmonia do universo. Por seu lado, a música profana de Bach, com a qual começaremos o próximo artigo, é caso único: é já todo um ato de louvor e de contemplação.

* O homem não escolhe o fim último, de acordo com Santo Tomás, mas apenas os fins próximos (electio finis proximi). Ou seja: não “escolho” a Deus, mas simplesmente eu O aceito ou não. O fim último já se preanuncia na retidão do apetite natural do bem — inerente a todas as criaturas racionais —, o qual não poderia repousar senão num bem perfeito e necessário, e não em algo imperfeito e contingente. É certo que a inclinação natural do homem é para a beatitude ou felicidade, que alguém pode até não saber onde se encontra exatamente e onde se concretiza objetivamente. Mas sempre deseja naturalmente. Na escolha dos indivíduos pelos fins próximos pode estar o afastamento do fim último. De toda forma, como diz Santo Tomás, embora as ações sejam dos indivíduos, o primeiro princípio do obrar é da natureza da espécie — e esta, sendo racional, tende a um único fim, que é a imperecibilidade no bem perfeito.
** Não se espante o leitor de ver um julgamento da arte por critérios teleológico-metafísico-teológicos (hoje mais do que nunca inusuais!). Mas o fato é que na ordem de ser — a qual culmina no Próprio Ser Subsistente, como veremos noutra ocasião —, a arte se enquadra, sim, perfeitamente, na categoria da relação, ou seja: pode ser considerada boa e perfeita quanto aos seus objetivos próximos e à sua forma intrínseca, e má e imperfeita enquanto relacionada ao fim último de todos os entes, ou seja enquanto se torna obstáculo para que o ente racional alcance, por seus atos próprios, o seu fim — ao qual esses mesmos atos deveriam conduzir.

domingo, 29 de junho de 2008

O Latim

Sidney Silveira
Assista abaixo ao terceiro pequeno vídeo que postamos no Contra Impugnantes: esta entrevista concedida por Carlos Nougué em um programa da produtora Multirio, que é veiculado na TV Bandeirantes do Rio, em geral aos domingos pela manhã. O tema desta matéria foi a origem do Latim — idioma acerca do qual se falará em algumas ocasiões neste espaço
.

sábado, 28 de junho de 2008

Tomás Luis de Victoria

Sidney Silveira
Como exemplo dessa arte superior quanto ao gênero, de que já falamos anteriormente, postamos a seguir o trecho de uma composição de Tomás Luis de Victoria, gênio da música polifônica, contemporâneo de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz. Ouçam e se deleitem: é música espiritual das mais elevadas já compostas.

Seja num Officium Defunctorum ou numa Ave Maria, em Victoria há sempre esse movimento ascencional da alma a Deus, contemplativo, piedoso, reverente, de uma lhaneza de que só a fé é capaz. Sugiro que experimentem esse verdadeiro enlevo, e, pouco depois, ouçam algo de Wagner, por exemplo. Observarão, de imediato, as diferentes reações físicas (e psíquicas) que afloram num e noutro caso.

Ocorreu-me agora uma bela frase de Plotino, em uma de suas Enéadas: “A música é persuasão sem conceitos”. Tal idéia sintetiza um bocado do que temos falado aqui: diga-me o que ouves e te direi se procuras a paz de espírito.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Arte — as potências da alma humana — e Deus

Sidney Silveira
Do mesmo modo como entre as cinco potências da alma humana não há somente ordenação orgânica de umas às outras, mas sobretudo hierarquia funcional — estando as potências vegetativas, sensitivas, apetitivas e motrizes a serviço do bem inteligível, que é o fim da alma racional, conforme demonstra Santo Tomás na Quaestio Disputata de Anima —, assim também há, analogamente, como ressaltou o Prof. Nougué em seu último texto, hierarquia quanto ao gênero das artes, na medida em que elas nos aproximam, mais ou menos, do nosso fim último, que é Deus (Por ora, deixaremos de lado o problema, de grande importância teológica, de se Deus é também o fim último daqueles que não crêem n’Ele, os ateus, e daqueles que, crendo, d’Ele se afastam pelo pecado ou por não Lhe prestar o culto devido, o que ficará para outro texto).

Assim, na tradicional visão católica, a felicidade tem alcance litúrgico, quer dizer, de culto, e não somente para os que receberam o sacramento da Ordem, isto é, os padres, mas para todos os fiéis. Pois se Deus é o fim último de todas as criaturas sem nenhuma exceção, e o fim se identifica com o bem, é patente que não poderemos ser felizes autonomamente, ou seja, se os nossos atos formais próprios da inteligência e da vontade — aqui, no caso, referidos às artes — se afastarem desse fim, ou então se buscarem fins intermediários em detrimento do fim último.

Tenhamos, pois, a plena certeza de que os coros angélicos não entoam nenhum funk para dançarinas estroboscópicas exibirem movimentos frenéticos, os quais exacerbam a sensualitas, mas com arte louvam a ordenação universal de todas as criaturas a Deus, na medida em que, sendo dotados de uma elevada inteligência intuitiva, compreendem e se deleitam maximamente nessa compreensão, pois sabem que tal harmonia e tal ordem provêm de uma inteligência ordenante: o próprio Deus, artista soberano, supremo inteligível e sumo amável. Por isso a arte dos anjos é puro louvor. E aqui vale lembrar o seguinte: louvar implica juízo de valor (um ato da potência intelectiva), ao passo que fruir, não — pois, conforme explica Santo Tomás (Suma Teológica, IªIIª, 11, a.2. resp.), desfrutar não é ato da potência que alcança o fim como ordenadora, e sim da potência que alcança o fim como executora, o que é muito diferente. Por isso, a fruição está na potência apetitiva, e não na intelectiva, razão pela qual uma arte que nos leve a fruir sem contemplar é, ontologicamente, inferior àquela que nos leva a contemplar fruindo. E não me venham com essa história de que sentidos e inteligência estão como que num mesmo plano, como insinua o filósofo basco Xavier Zubiri na trilogia de sua famosa Inteligencia Sentiente e no livro Sobre el Sentimiento y la Volición. De tal tese nos ocuparemos noutra hora.


Por conseguinte, entre a ars cujo objeto é Deus e qualquer ars que vise a outro bem há diferença de gênero. A primeira dessas artes maximiza as potências superiores da alma, sem as quais sequer somos capazes de chegar à idéia de Deus — inalcançável pelas nossas potências intermediárias e instrumentais. Quanto mais louvá-Lo! Daí que, por exemplo, as reações psicofísicas suscitadas pela ars de uma Missa de Giovanni Perluigi da Palestrina e pela “ars” de um funk sejam absolutamente distintas. Uma facilita o estado de contemplação, e contemplação elevadíssima por referir-se a Deus — na qual o corpo é instrumento, apenas; a outra abrasa apetências nas quais o corpo, embora seja também instrumento, não conduz ao fim inteligível da alma racional, mas a uma deleitação anímica de muito menor alcance. Ou seja: esta última nos torna menos humanos — é claro que não quanto ao ser, mas quanto ao operar.

Finalizando: é óbvio que quem acredita na falácia da autonomia da consciência individual está impossibilitado para aceitar tal critério objetivo (de cunho espiritual) com relação às artes, e acaba por cair num frágil subjetivismo — ainda que sob máscaras sofisticadas. Os porquês disso veremos em outros textos.

Os fins da arte (II)

Carlos Nougué
(Ao contrário do anunciado ao final do último texto, ainda não trataremos aqui da questão de “se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer ‘flores do mal’”, a qual ficará para um próximo post.)

A conclusão de nosso artigo anterior — qual seja, a de que “o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem” — encerra a questão sobre os fins das artes?

Parece que sim, porque, negado o fim tautológico da arte pela arte, e apontada a ordenação dela a certo deleite do homem (o deleite com o belo), demos-lhe um fim suficiente, por tratar-se de um fim espiritual humano, superior em si a qualquer fim corporal humano. É a isso que se referia Bach ao dizer que “a música serve para recrear a alma dentro de justos limites”. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se por sua vez o próprio homem tem um fim que lhe é exterior (qual seja, Deus), todo e qualquer produto espiritual seu tem de ordenar-se a Ele, o que também diz Bach ao afirmar que “a música serve para louvar a Deus”. Ter-se-ia, então, uma contradição na própria afirmação de Bach que lemos em “Música e beleza (I)”.

Deve-se responder a isso dizendo, antes de tudo, que o homem não é um animal solitário. Ele é naturalmente social ou político, e toda e qualquer ação sua é, a princípio, uma ação também política, razão por que a própria formação ética do indivíduo, como dizia Aristóteles, visa a (e é coroada por) uma atuação na pólis ordenada ao bem da multidão. (Isso, diga-se, é todo o contrário da visão maquiavélico-liberal, para a qual a ética é assunto de foro íntimo individual, e a política, uma questão de alcançar ou manter-se no poder, donde ter a lei mero caráter de arbitração ou mediação no conflito entre os indivíduos e entre o indivíduo e o Estado – tema que trataremos proximamente).

Sucede porém que, como dizia Santo Tomás de Aquino:

• a pólis ou Estado é apenas um fim intermediário do homem, fim que assume caráter de meio com relação ao fim último dele, que é Deus mesmo;

• além disso, o fim da multidão ou Estado não pode ser diferente do fim de cada indivíduo que o compõe, razão por que o fim do próprio Estado também é Deus mesmo;

• nem tudo o que de propriamente humano faz o homem (ou seja, os atos da vontade e da inteligência: querer e entender) é meritório ou demeritório com relação ao Estado, mas o é, sim, com relação a Deus, motivo por que, se a princípio deve o homem atuar politicamente, pode, quando chamado a isto por Deus mesmo, deixar de atuar e de viver politicamente (como um São João Batista ou os Padres do deserto) para servir diretamente a Deus — sendo este obrar superior àquele não em espécie, mas em gênero.

Ora, tal escala e tal ordenação de fins hão de ser, analogicamente, também as da arte, da seguinte maneira:

• ao deleitar ou comprazer o homem criando coisas belas, a boa arte contribui — como dizia Platão com relação à música (na República e nas Leis) e Aristóteles com relação à música (na última parte da Política) e a diversas artes (na Poética) —, a boa arte contribui para a formação do caráter e da sensibilidade dos indivíduos, e portanto para a sua formação ética;

• ao contribuir para a formação ética do indivíduo, a arte já serve à própria pólis ou Estado, uma vez que a ética se ordena à política, sendo esta, como é, coroação daquela;

• mas deve a arte servir sempre, de algum modo, ao fim último do homem, ou seja, Deus, o que quer dizer que o fim último da arte também é Deus mesmo.

Pode-se hierarquizar a boa arte, portanto, da seguinte maneira geral.

a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia Bach.

b) No meio está aquela que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente.

c) No topo está aquela que serve a Deus liturgicamente.

Essa hierarquização, porém, requer muitas precisões e desdobramentos, que se farão nos próximos posts.

P.S. 1: Alguém já disse: “Deus nos deu a música e o vinho para mais facilmente podermos carregar a nossa cruz”. Seria ocioso dizer que, mais que para a música, isso de “justos limites” vale para o vinho, embora seja imperioso dizer: tampouco a arte, incluída a música, pode ser um sucedâneo para a religião, ao contrário do que propugnava, com tanta infelicidade, Schopenhauer.

P.S. 2: Antecipando algo do próximo artigo: naturalmente, a boa arte que serve diretamente a Deus não deixa de contribuir, muito pelo contrário, para a formação do indivíduo e da pólis – porque, quanto melhor se serve a um fim ulterior, melhor se servirá a um fim anterior, assim como a graça, conformando a si a natureza, não a destrói, mas a melhora.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Husserl e quejandos

Sidney Silveira
O fato de existir filosofia — ou seja: de que usemos as nossas potências intelectivas para alcançar certas verdades — já deveria ser-nos a evidência absoluta de que, ao contrário do que pensava Husserl, não temos a intuição direta das essências. Primeiro: se a tivéssemos, jamais haveria dissensões acerca da verdade, porque todos conheceriam as essências diretamente e, portanto, ninguém se enganaria acerca de nada. Tão logo contemplássemos um ente e... plaft!, nesse ato prosaico o compreenderíamos imediatamente. Mas a realidade é bem outra: há coisas sobre as quais homens de gabarito divergem há milênios, e, se o próprio Husserl não estivesse empenhado em construir uma filosofia “essencialmente nova” (são palavras dele, na apresentação do livro Idéias para uma fenomenologia pura e uma ciência fenomenológica), talvez deixasse de lado esse afã de novidade e partisse da seguinte premissa, na realidade bastante óbvia: se temos a intuição direta das essências, não precisamos de nenhum método para provar que temos a intuição direta das essências.

Assim, ter criado um método já é, ipso facto, a contraprova do erro implicado na chamada redução eidética husserliana, pois não é necessário provar, pela longa exposição de uma doutrina (compondo e dividindo, como diz Santo Tomás), o que já se sabe por intuição direta, pois o que se mostra não se demonstra. Assim, se a essência de um ente já se mostra pré-intelectivamente à nossa inteligência (tese a que também voltaremos, noutro texto), não precisamos demonstrá-la, pois tal procedimento seria, no mínimo, antieconômico. A propósito, ao final da vida o próprio Husserl confessou ao seu grande amigo e discípulo Eugene Fink que havia um erro capital na base de toda a sua teoria, mas era tarde demais para consertá-lo. Esse erro, logo nos primeiros capítulos do Idéias, é patente: uma sofisticadíssima confusão entre abstração e intuição.

A atitude de Husserl é bastante encontradiça em toda a filosofia moderna, pós-cartesiana: reinventar a roda e desqualificar o que foi feito pelos grandes do passado. Descartes, por exemplo, nos diz que a filosofia precisa partir de idéias claras e distintas (dando por pressuposto que, até ele, não havia idéias claras e distintas). Do seu famoso Cogito trataremos noutro post. Já David Hume pontifica que a sua filosofia representa algo semelhante ao que Newton fez para a física; Kant, que acordou do “sonho dogmático” lendo Hume, afirma estar fazendo uma revolução semelhante à de Copérnico; Nietzsche demole tudo para trás, e se diz portador solitário de uma verdade que os homens do seu tempo não estão aptos a enxergar; e Heidegger “descobre” que, desde os pré-socráticos até ele próprio, a metafísica tratou do ente e se esqueceu do ser. Quanta modéstia!

A propósito, há muitos outros exemplos dessa “humildade” espalhados pela história da filosofia, nos últimos 400 anos. Comparemos tal atitude com o respeito aos pensadores do passado e a santa paciência de Tomás de Aquino. Entre outras coisas por ser cheia de alusões a homens de outras épocas, só a Suma Teológica tem 512 questões, subdivididas em 2.669 artigos, sendo estes também repartidos em objeções e respostas incontáveis — no prolífico método dialético da disputatio. E assim é também em obras como De Malo, De Veritate, De Potentia Dei e outras questões disputadas. Nelas, não se pulam etapas, pois cada prova metafísica é encadeada à seguinte. E, no que concerne propriamente à consciência — da qual já mostramos que não é a sede da liberdade; não é uma superestrutura da alma; não é autônoma; não é potência, mas ato; etc. —, repito, no que concerne à consciência, no monumental De Veritate Santo Tomás resolve várias questões correlatas, sem as quais o problema de definir a essência disto a que chamamos “consciência” fica por resolver, como por exemplo a questão sobre a razão inferior e a superior (q. 15).

Voltaremos ao assunto, com o intuito de aduzir outros dados que mostrarão a impossibilidade de a consciência individual ser autônoma, como querem alguns liberais.

Os fins da arte (I)

Carlos Nougué
Uma das doutrinas sobre a arte que desde há alguns séculos mais curso têm, e que é assumida, ainda que com muitas sutilezas, até por filósofos que se reivindicam do tomismo, é aquela segundo a qual a arte tem por fim fazer coisas belas, ou antes, fazer o belo. Em outras palavras: a arte tem por fim a ela mesma. Ordena-se a si mesma. É a arte pela arte. Se uma obra de arte for bela, alcançou seu fim. Não importa se tal beleza se dá num canto gregoriano ou em Tristão e Isolda, numa Paixão de Bach ou em quaisquer tipos de “flores do mal”.

Há pois duas questões por resolver: primeira, se é verdade que o fim da obra de arte é fazer o belo; segunda, se não o for, se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer “flores do mal”.

Quanto à primeira, parece que sim, que o fim da obra de arte é fazer o belo, é fazer coisas belas. Porque, assim como o fim da sapataria é fazer sapatos, o fim da arte é fazer obras de arte, ou seja, obras belas. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se aquela visa à utilidade do homem e ao conforto de seus pés, esta também tem de ordenar-se a um fim que lhe seja exterior: por exemplo, comprazer, deleitar o homem, recrear sua alma.

E isto já é um início de solução da questão. Mas é preciso avançar, porque, assim como para atingir o seu fim a sapataria tem de obrar por modo e meios adequados a ele (como o é a técnica de fazer sapatos confortáveis, que aliviem o esforço dos pés e os protejam dos acidentes dos caminhos), assim também a arte, para atingir o seu fim, tem de obrar por modos e meios adequados a ele — como o são as técnicas de fazer o belo, de fazer coisas belas, harmoniosas, proporcionais que, por isso mesmo, deleitem ou comprazam o homem.

O homem, ao contrário dos animais, deleita-se com o belo, com o harmonioso, com o proporcional, e para o belo e harmonioso há critérios tão objetivos como o número de ouro (que estudaremos em outra oportunidade). E o fato mesmo de que o homem se deleite com o belo faz com que interrompamos neste ponto a analogia entre a sapataria e a arte, porque a sapataria visa a um fim corporal (a proteção e o conforto dos pés), e porque tudo o que é espiritual é superior a tudo quanto é corporal — ainda que o deleite com o belo não implique apenas as faculdades superiores de nossa alma (a inteligência e a vontade), mas também a potência cogitativa, que, segundo Santo Tomás, é um dos quatro sentidos interiores. (Note-se porém que a cogitativa, cujo correlato nos animais é a estimativa, é no homem regida diretamente pelo intelecto).

Digamos tudo isso de modo conciso e conducente à solução da primeira questão:

• Todos os entes, todas as criaturas e todas as suas operações e produções têm de ordenar-se a um fim exterior a eles próprios.

• O fim, por exemplo, da sapataria é o conforto de uma parte do corpo humano, enquanto o fim da arte é uma espécie de deleite do homem, o deleite com o belo.

• Um sapato desconfortável é resultado de uma sapataria falha, ainda que ele seja harmonioso, proporcional, belo em si (dentro dos limites em que o pode ser um sapato). Uma obra de arte que seja não-harmoniosa, desproporcional, feia em si é resultado de uma arte falha, e, se deleita a alguém, é porque este alguém é um apreciador ou receptor falho, que por uma razão qualquer perdeu a capacidade de apreciação do belo.

• Mas a arte é superior à sapataria e diversa dela na mesma medida em que tudo quanto é espiritual o é com relação a tudo quanto seja corporal, e na mesma medida em que um fim espiritual é sempre superior a qualquer fim corporal.

Logo, o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem, o qual, porém, deve ter intacta a sua capacidade de apreciar o belo e rejeitar o feio.

Em tempo 1: Uma sociedade capaz de apreciar a “música” de um Pink Floyd, de um Miles Davis, de um Schoenberg, com todas as suas cacofonias e desarmonias e estridências, é uma sociedade, digamos, esteticamente enferma. Perdeu o senso da proporção, o senso do belo – o senso mesmo da forma. É já, em verdade, uma sociedade em estado “terminal”: o apreciar tais tipos de música pressupõe pelo menos os estertores do intelecto. “A inteligência está em perigo de morte”, dizia com razões de sobra Marcel de Corte.

Em tempo 2: No próximo post veremos a solução da segunda questão enunciada mais acima, a qual, por sua vez, se desdobrará em algumas outras.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Consciência e obediência (entre a "autonomia" e o "sim" a Deus)

Sidney Silveira
Já vimos algumas coisas relevantes, em textos anteriores:

a. A consciência não é uma superestrutura da alma, mas apenas a aplicação de uma ciência habitual a algo;
b. Em termos metafísicos, a consciência é ato, e não potência;
c. Não é na consciência que reside a liberdade humana, mas na vontade;
d. Sendo uma “ciência unida a algo” (cum alio scientia, na expressão de Santo Tomás), a consciência não pode ser autônoma, porque dois são seus insumos básicos: 1º- A impecável sindérese — hábito natural que capta os primeiros princípios da razão prática; 2º- E as experiências adquiridas sempre à luz desse princípio indefectível. Isto para não entrarmos no mérito, entre outros, do ensino das verdades filosóficas fundamentais, que é um santo antídoto contra teorias engambelantes, como a que prega a contraposição entre consciência individual e autoridade exterior (essa tese merecerá, noutro texto, uma verdadeira dissecção do sofisma fundamental que embute);
e. Por todo esse condicionamento e por muitas razões que não cabe enumerar aqui — por mera questão de espaço —, a consciência é falível, ou seja, passível de erro, razão pela qual Santo Tomás afirma que a consciência não é regra regulante, mas “regra regulada” (regula regulata, cf. De Veritate, q. 17, a. 2, ad 7). Regra no ato das nossas escolhas, e regulada pelo princípio que a alimenta, o da sindérese, tão evidente que não precisa ser demonstrado, mas apenas mostrado.

Por ora, bastam essas constatações para o que, no momento, nos interessa. A primeira pergunta é: Como pode haver conciliação entre uma teoria que prega a autonomia da consciência individual (e mais, usando o nome “consciência” de forma totalmente equívoca) e outra que ressalta a absoluta necessidade de a consciência obedecer à norma externa promulgada por um Magistério — o da Igreja — participado pelo próprio Deus aos homens, ainda que esse Magistério seja, tão-somente, causa instrumental e não formal do exercício de uma autoridade que é própria apenas do Cristo? Pois bem, antes de mostrar o quão inconciliáveis são essas posições — a do católico, obediente, e a do liberal, que prega a autonomia da consciência —, é preciso deixar consignados alguns princípios, quanto ao Magistério da Igreja. Com relação ao objeto do Magistério, é preciso distinguir dois: o objeto primário são as verdades reveladas explícita ou implicitamente por Deus, seja na Sagrada Escritura ou pela tradição apostólica; o objeto secundário se estende a todas as coisas que, embora não tenham sido explicitamente reveladas, ao juízo da autoridade eclesiástica estão de tal forma integradas à Revelação, que são necessárias para custodiar integralmente essas mesmas verdades. Para defendê-las são proclamados os dogmas, que derrogam as opiniões a eles contraditórias.

Sendo assim, a anuência que o fiel católico dá ao Magistério não é a culminância de um processo dialético de busca da verdade, por parte da consciência individual (até porque a consciência não busca nada; apenas aplica), mas é anuência sob o peso da autoridade apostólica, já que quem diz é Deus, por meio dos seus consagrados: é o “sim” da fé às verdades primordiais reveladas pelo próprio Deus, e, por isso, em seu Comentário ao Credo, Santo Tomás afirma algo curioso: uma velhinha com fé, de certa forma, sabe mais do que... Aristóteles! Portanto, para o católico, a autoridade aperfeiçoa a liberdade, daí que deva ser sempre exercida pelos órgãos do Magistério eclesiástico, e mesmo as autoridades civis legítimas devem também ser obedecidas, como ensinou Leão XIII (pois toda autoridade humana vem do alto, como se lê em Jo. XIX, 1o-11); para o liberal, a autoridade (qualquer uma, civil ou religiosa!) coage a liberdade, daí que se queira sempre reduzi-la, no caso do Estado, ou dela ser de alguma forma independente, no caso das relações do liberal católico com a Igreja, o que lhe fará tender sempre a moldar o Magistério à sua consciência, que ele presume ser o epicentro da liberdade. Mas, aqui, a relação já se inverteu: a consciência (humana) tornou-se norma para o Magistério (divino). Por isso não exagera quem afirma o seguinte: entre o “sim” humilde e benévolo da alma simples e obediente, e o non serviam da alma orgulhosa e cheia de malícia, eis a distinção entre essas doutrinas.

Música e beleza (II)

Carlos Nougué
Ao final do post anterior, disse eu que, ao contrário da música de Bach, a música (e a arte) romântica expressa, em grande parte dos casos, uma desarmonia das esferas — ou melhor, a desarmonia do homem revolucionário, liberal e afastado da Igreja. Mas, pode-se replicar, também Bach, luterano, estava afastado da Igreja...

Sim, estava, mas não do mesmo modo que o artista romântico. Lutero, sempre astuto, sabia perfeitamente que não se muda da noite para o dia uma sensibilidade mais que milenar de uma multidão, e por isso (como o diz explicitamente) não suprimiu imediatamente alguns dos aspectos sensíveis da Missa católica, precisamente, para melhor vedar seu núcleo sacramental e sobrenatural: o sacrifício incruento sempre renovado no altar, a transubstanciação. Assim, não alterou essencialmente a seqüência das partes da Missa, manteve o latim em partes dela, não coibiu ostensivamente o culto a Maria (donde, aliás, um Magnificat como o de Bach), etc. Estava seguro de que o importante era a substituição da transubstanciação por uma “presença real” na assembléia dos fiéis, e a substituição, pois, do caráter sacramental e propiciatório da Missa por um caráter rememorativo e comemorativo. O restante, cumprido seu papel de cortina de fumaça, progressivamente se esvaziaria e, por inútil, ruiria.

Ora, Bach não era um teólogo. Era um simples fiel, membro de uma “guilda” de músicos (a família Bach). Era homem culto, é verdade, com estudos de teologia; mas não era um teólogo. (Aliás, nem sequer tinha formação universitária.) E como fiel participava da sensibilidade mais que milenar da cristandade. Não por nada se impressionou e emocionou tanto com o canto gregoriano, com a música de Palestrina e Frescobaldi e com o barroco de Couperin (com quem se correspondia) e Vivaldi, influências que se mesclaram com as protestantes do Norte da Alemanha (especialmente a de Buxtehude) e da tradição propriamente luterana de hinos e cantatas. Mais ainda, provavelmente teve contato com o movimento encabeçado por Leibniz (e Bossuet) de retorno ao seio da Igreja única.

Não por nada, não por nada, como se disse no post anterior, Bach rematou sua imensa e bela obra com uma católica Missa em Si menor: é patente nele, para os que conhecem sua vida e obra, o desejo de que se restabelecesse o estado anterior à cisão luterana. Não estou dizendo nada além disso; não estou dizendo que Bach fosse um criptocatólico; mas não por nada se encontraram entre seus livros os Exercícios Espirituais de Santo Inácio... E afirmo: tratava-se, também no caso de Bach, daquela sensibilidade que se negava a desaparecer.

Ora, o artista romântico era um homem em que já havia desaparecido aquela sensibilidade, substituída pela sensibilidade agnóstica, revolucionária e liberal. A sensibilidade do homem para quem a política não é a culminação da ética, e para quem a ética já não tem uma fonte universal e divina, porque para ele a ética acabou por ter sede na consciência individual. A sensibilidade do homem para quem a religião se reduziu, quando muito, a uma experiência individual e sentimental. A sensibilidade do homem, enfim, para quem o mais importante reside no sentimento, ou antes, nas paixões: na paixão de amar o amor e não o amado, ou melhor, de amar o amor como antecâmara da morte (lembremo-nos de Tristão e Isolda, em que o casal adúltero escolhe morrer por amor em vez de consumar o ato para o qual era adúltero); na paixão de morrer de rejeição do amado, ou de nostalgia de algo indefinido, ou de simples tuberculose – o mal do século; na paixão de tornar-se Demiurgo e autocriador, mas sobretudo de re-unir-se à “divindade das divindades” – o gnóstico Não-manifestado, o Nada, o nirvânico Nada.

Em tempo 1: Assim que morre Bach, sua música, que já era proibida nos templos calvinistas ou puritanos, é proibida também nos templos luteranos, por “demasiado complexa”. Que vaticinador, que estrategista foi Lutero, não?

Em tempo 2: Compare-se a música de Bach e a de Beethoven: naquela, as frases ascendentes e as descendentes têm, quase sempre, comprimento semelhante, ao passo que na do pré-romântico as descendentes são, também de maneira geral, muito mais longas que as ascendentes – donde a sensação de dilaceramento, ou de conflito, ou de queda, ou de obscuridade. Já se havia perdido a capacidade (e o desejo) da verdadeira harmonia e equilíbrio, e pois do verdadeiro belo, e estava aberto o caminho para todos os atonalismos e dodecafonismos. Voltarei ao tema.

Raízes anti-religiosas do liberalismo

Sidney Silveira
Dizia com muito acerto José Guilherme Merquior que, historicamente, o liberalismo só se tornou possível graças ao colapso — no terreno ético-político — da noção cristã de Summum Bonum. Para o notável ensaísta, esse colapso resultou no fenômeno do individualismo moderno, ou seja: na dissolução da idéia de bem comum e na tendência ao empirismo em moral, dada a perda de todo aquele gigantesco edifício metafísico e teológico da Escolástica (cujo cume é Santo Tomás), o qual tinha como pedra angular a noção analógica de ente, e, em seu ápice, o Próprio Ser Subsistente, que não é outro senão o Summum Bonum cristão de que fala Merquior, no hoje amarelecido artigo intitulado “O argumento liberal”, em livro do mesmo nome.

A desconfiança nas instâncias de poder, que os liberais clássicos herdaram de Locke e Montesquieu, nasce não apenas de sua visão monolítica do poder público como lugar de violência, desmandos e coerção das liberdades individuais (ei-las de novo!!) — daí o seu ímpeto em limitar o poder e mantê-lo sob o que chamam, por uma analogia de proporcionalidade imprópria, de império da lei —, mas se deve consignar, também, a sua carência de uma boa antropologia filosófica e de uma gnosiologia minimamente aceitável, além da ignorância do beabá da metafísica. E, é claro, o caráter irreligioso que é um dos sustentáculos de sua política, a saber: o poder público, se se tolera haver algum (toc! toc! toc!, ugh! bah!, #!@#) nesse ambiente Estadófobo, deve respeitar in primis não a Deus, o Summum Bonum, mas a autonomia dos indivíduos, que passam a ter uma moral privada intocável por qualquer lei, humana ou divina. Assim, com o passar do tempo, a religião passará a ser, na melhor das hipóteses, apenas um dado cultural entre tantos outros, tão “respeitável” pela moral laica e por sua correspondente legislação quanto ir a uma orgia pansexual. Amigos, eis aqui o admirável mundo dos dias de hoje, em relação ao qual o de Aldous Huxley é “fichinha”.

Uma coisa não se pode negar. Estamos nos antípodas da noção católica tradicional, traduzida na idéia de Santo Tomás de que a religião é uma virtude anexa à da justiça, pois louvar a Deus e prestar-Lhe um culto agradável e digno é o primeiro dever de justiça dos homens, do qual nem indivíduos nem sociedades estão livres.

Outra coisa: se observassem um pouco, talvez os paleoliberais da virada dos séculos XVIII para o XIX percebessem que a violência não é prerrogativa do “poder”, mas do homem, em permanente e titânica luta contra as paixões que lhe atormentam a alma. Infelizmente, eles estavam muito ocupados em instaurar uma nova ordem (para a qual nada mais útil que uma Revolução, como a Francesa, a lhe aplainar o terreno!) e jogar a pá-de-cal sobre a ética do Sumo Bem, para dar olhos a uma obviedade antropológica daquelas. A propósito, o caráter anti-religioso em que germinou a visão de mundo liberal pode ser ilustrado pelo incrível caso das 16 heróicas freirinhas carmelitas de Compiégne, guilhotinadas por "atividades contra-revolucionárias" em 1794, enquanto entoavam serenamente uma Salve Rainha a caminho do cadafalso, pois se sabiam próximas do céu. É certo que, de meados do século XIX até hoje, surgiu um liberalismo que se pretendeu católico, mas essa é uma história para outro post.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Música e beleza (I)

Carlos Nougué
Joahnn Sebastian Bach encerra alguns mistérios. Entre eles, o fato de ter sido um luterano e, no entanto, ter querido rematar sua obra com uma católica Missa em Si menor em cuja composição levou 25 anos — ele, que compunha num abrir e piscar de olhos. Karl Geiringer explica-o de maneira interessante, conquanto apenas introdutória, em Johann Sebastian Bach, The Culmination of an Area.

Mistérios à parte, porém, o fato é que é de Bach uma frase que encerra, por seu lado, toda uma doutrina a respeito da música: “A música serve para louvar a Deus e para recrear a alma dentro de justos limites. Se se perde isso de vista, a música não passará de barulhos infernais”. E doutrina justa. Está na linha de Platão (que, embora rechaçasse em grande medida as artes, dava lugar especial à música); de Aristóteles (que dedica a ela o último capítulo que nos chegou de sua Política); de Santo Agostinho (leia-se o seu De musica); e, de modo geral, do pensamento católico, segundo o qual, como é óbvio, não podemos ser católicos sem sê-lo inteiramente, em todas as nossas manifestações, e segundo o qual todos os nossos fins intermediários ou se ordenam ao nosso fim último, ou simplesmente deixam de ser fins.

Bach, portanto, dá à música (e ipso facto à arte em geral, como veremos em outro artigo) seu fim último e seu fim intermediário. Mais que isso, porém: a própria obra de Bach, intrinsecamente, é um remate prático de uma longa tradição filosófica, que começa com Pitágoras, passa por Boécio, Santo Agostinho e Pseudo-Dionísio Areopagita, e chega a Santo Tomás de Aquino, segundo a qual a beleza (qualquer beleza, da espiritual à material) tem caráter não só transcendental, mas objetivo: é questão de proporções. É questão de proporções tanto a harmonia dos coros angélicos como a harmonia das esferas, e por isso são belos.

Dizê-lo da música de Bach, é verdade, não nos deve fazer esquecer da superioridade do canto gregoriano e do canto polifônico (este, o pós-tridentino); trata-se de superioridade não de espécie, mas de gênero, e portanto insuperável e inquestionável. Mas, por outro lado, Bach é inquestionavelmente uma rotunda negação da música (e da arte) que, após o interlúdio ambíguo do classicismo, se instala na Europa: a música (e a arte) romântica. Ora, o romantismo, nascido como mescla de duas fontes, a gnóstica e a liberal, é um antípoda da arte bachiana: não tem a Deus por fim último, mas o próprio indivíduo humano; não busca recrear a alma dentro de justos limites, mas antes busca exacerbar-lhe as paixões; e, em vez de ser uma imago da harmonia da Divindade e do universo, expressa, em grande parte dos casos (já no Bethoveen de transição, e muitíssimo em Wagner), uma desarmonia das esferas — ou melhor, a desarmonia do homem revolucionário, liberal e afastado da Igreja.

Em tempo: para Bach, a forma musical chamada fuga era uma imagem ou expressão das processões da Santíssima Trindade.

domingo, 22 de junho de 2008

Antes da consciência, a alma (II)

Sidney Silveira
Como já se disse, a alma humana tem cinco potências, que são o princípio e o limite de suas operações — as quais são absolutamente complementares neste todo harmônico que é a estrutura psicofísica do homem. E há, entre elas, não apenas complementaridade, mas hierarquia, ou seja: desde as operações inferiores que não transcendem a matéria, pois são realizadas instrumentalmente no plano corporal, como as da parte vegetativa (por exemplo: a digestão e as funções que dela derivam), até o supremo grau da parte intelectiva (que, por abstração, apreende imaterialmente as formas materiais, no conhecimento das essências das coisas), tudo contribui para que a alma alcance o seu fim principal, que é o bem inteligível, como salienta Santo Tomás na Questão Disputada Sobre a Alma, artigo 13, resposta à sétima objeção. Trocando em miúdos: todas as potências da alma humana são orientadas a esse fim principal, e por isso podemos dizer que as nossas operações vegetativas, sensitivas, apetitivas e motrizes estão a serviço do nosso optimum que é o inteligível, instância onde se dão os atos propriamente humanos: entender (a verdade) e querer (o bem). Sem a possibilidade de concretizar esses atos, sequer poderíamos ser ditos entes livres.

A propósito, um desvio ou defeito numa das funções intermédias dessas potências — sobretudo nas sensitivas e nas apetitivas — pode comprometer a operação máxima do ser humano, que se dá no plano da inteligibilidade.

Pois muito bem. Dizem muitos liberais contemporâneos que a consciência individual é autônoma, embora engasguem quando alguém lhes pergunta: autonomia em relação a quê? Ora, já vimos que a consciência não chega nem mesmo a ser uma potência essencial da alma, mas apenas a aplicação de um conhecimento a algo (ou de um erro, pois ela pode errar!!!). Como diachos ela poderia ser “autônoma”? Recorramos ao pai dos burros, que diz o seguinte do vocábulo “autonomia”: é a faculdade de governar-se a si mesmo; direito ou faculdade de se reger; liberdade ou independência moral ou intelectual; etc. Mas nós já constatamos que a consciência tem, como insumo, tanto a sindérese (esta sim, impecável enquanto hábito natural pelo qual captamos os primeiros princípios da razão prática) como as experiências. Sendo assim, o fato é que a consciência não possui autonomia nenhuma, nem intrínseca (em relação à sindérese) nem extrínseca (em relação às experiências adquiridas, que são exteriores a ela e pelas quais certos conhecimentos vão tornando-se habituais em nós).

A consciência é, portanto, um bicho altamente condicionado e nada autônomo!!! Não creiamos nessa falácia — que ganhou força com liberais do século XIX, como o obstinadíssimo Lamennais, e depois foi metamorfoseando-se, para escapar a todas as críticas — de que há uma coisa chamada “liberdade de consciência”, outra chamada “liberdade de escolha”, pois, como Santo Tomás demonstrou suficientemente em diferentes obras, a liberdade não está per essentiam nem na consciência nem na escolha, mas na vontade, que é apetite intelectivo. Se existe, pois, algo livre em nós é o querer (embora este não seja absoluto ou autodeterminado, como pensava Duns Scot, no século XIV). A propósito, vale consignar aqui o seguinte: a supervalorização da consciência individual, hoje tão querida dos liberais, é um dos disfarces do voluntarismo, ou seja, daquele tipo de filosofia que pretende fazer-nos crer, contra todas as evidências, que a vontade pode tudo, como por exemplo afastar-se do bem e querer o mal em si. Neste ponto, embora sem o intuito de misturar as estações, ocorre-me dizer o seguinte: o pecado original, conforme nos ensina a Sagrada Escritura, foi um pecado de afastamento de Deus (o supremo Bem), e, portanto, uma tentativa de autonomia da vontade humana em relação ao ser, ou melhor, ao Próprio Ser Subsistente.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Política em Aristóteles e Santo Tomás

Sidney Silveira
Disponibilizo, a seguir, um pequeno vídeo da palestra de apresentação do livro “A Política em Aristóteles e Santo Tomás”, de Jorge Martínez Barrera, professor de filosofia da PUC de Santiago do Chile e, atualmente, um dos grandes especialistas no tema da política na obra do Aquinate. Com certeza, um trabalho de arrepiar os liberais — artífices históricos da separação, hoje vigente em todo o mundo ocidental, entre o Estado (instância moral, na medida em que visa a bens políticos) e a Igreja (primado espiritual, cujo fim transcende e abarca esses bens políticos, por razões que veremos em outros textos).

O evento aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, em 04/12/2007, e o pedaço de palestra que vocês vêem é do meu grande amigo Carlos Nougué, amante da filosofia tomista que, em breve, postará neste blog vários textos.

A propósito, esse livro formidável saiu pela pequena editora Sétimo Selo, de cuja linha editorial sou — com muito orgulho — o responsável.

Naquela acalorada noite carioca, os demais palestrantes foram o professor Paulo Faitanin, da Universidade Federal Fluminense (homem cujo amor a Santo Tomás levou a criar e manter uma interessante Revista Eletrônica de Estudos Tomistas), e o próprio Jorge Martínez Barrera, que veio ao Brasil especialmente para o lançamento do livro.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Antes da consciência, a alma (I)

Sidney Silveira
A supervalorização do papel da consciência, corriqueira entre liberais de todas as vertentes, nasce da absoluta falta de uma teoria conseqüente sobre o que seja o homem, a começar por seu princípio intrínseco de movimento: a anima, com todas as suas potências.

Em suma, sem uma antropologia filosófica consistente, cai-se em reducionismos nefastos em psicologia (e, no caso dos liberais, basta lermos o que, ao longo dos tempos, escreveram sobre a natureza humana, sobre a liberdade, etc., para constatarmos que, na melhor das hipóteses, eles fizeram das potências inferiores da psique o parâmetro das superiores). Cai-se também em uma péssima teoria política, uma teoria econômica em que os meios e os fins se invertem, literalmente, e uma teoria do direito de cunho contratualista, que engessa a lei nas fórmulas jurídicas, dada a perda do vínculo entre lege e natura — realidades estas que veremos em textos futuros. Uma tragédia em toda a linha!

Portanto, depois de adquirida uma base metafísica — sem a qual a filosofia tende a se transformar numa conversa de rufiões —, convém investigar o que é o homem, de que potências se constitui, quais são os seus atos próprios, o que nele é natural e a que fim tendem as suas operações.

Na estrutura psicofísica do homem, a forma dá o ser ao composto (forma dat esse). É o que diz, com muita propriedade, Santo Tomás. No caso, o que a forma "dá" é a vida, como fica claro na bela fórmula “a vida é o ser para os viventes”. Vale lembrar que, em todos os entes compostos de matéria e forma, a forma tem prioridade sobre a matéria, pois a matéria não se move nem age por si, mas é potência para ser movida por outrem, como Aristóteles já ensinara. No caso do homem, a forma é a alma, e esta, de acordo com a clássica definição, é o princípio intrínseco de movimento do corpo. Não fosse assim, seríamos entes tão inanimados quanto uma porta, o que a experiência mostra ser absurdo — não obstante a porta não ter potências para a burrice, atualizadas em muitos dos nossos semelhantes. Assim, fica desde logo refutada a corrente de psicologia conhecida como monismo materialista, que nega a existência da alma. É simples: se o homem não tivesse alma, não poderia movimentar-se por si.

Quais seriam, então, essas potências da alma humana? Voltemos a Tomás de Aquino, e não por um arqueologismo anacrônico, mas porque a sua psicologia é, ainda hoje, uma referência fundamental, como demonstra Martín F. Echavarría no seu monumental La Praxis de la Psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás. Pois bem: diz o Santo Doutor que a alma humana possui cinco gêneros de potências: vegetativas, sensitivas, apetitivas, motrizes e intelectivas. Consideradas em seu conjunto e a partir de suas operações, essas potências representam o horizonte máximo das possibilidades humanas, pois, como acontece em todo ente composto de matéria e forma, só podemos operar no limite das possibilidades da nossa forma — razão pela qual eu não posso ficar, por exemplo, durante 25 minutos embaixo d’água, pois a forma entis humana não é como a dos hipopótamos. Gravemos, então, em nossa memória: a forma é o princípio, e também o limite, da operação dos entes.

Pois bem.
O papel da consciência, nessa estrutura, embora importante, é bastante delimitado. A tentativa de torná-la uma substância ou potência especial resultou, na história da psicologia, no chamado paralelismo psicofísico — postura que não resolve o problema das relações alma/corpo, nem se há uma ou mais formas substanciais na alma—, pois se limita a constatar o paralelo entre fenômenos psíquicos e orgânicos.

Continuaremos, nos próximos textos, a estudar os atos próprios do homem e a estrutura da alma, e, mais adiante, veremos quão nefasto é o ato de hipertrofiar o papel da consciência nesse ente composto que é o homem.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Consciência individual e liberdade (II)

Sidney Silveira
Após vermos que a liberdade transcende as escolhas livres, e também o fato de ser impossível que ela tenha como fundamento a consciência individual, vale indagar qual seria o insumo elementar desta última, ou seja: de que material faria uso a consciência individual, para aplicar princípios universais a casos concretos.

À primeira vista, a resposta óbvia parece ser a seguinte: a consciência, para formar-se, necessita apenas de experiências que garantam o processo de aplicação da norma a cada caso. Aprofundando o problema, vemos que a coisa não é tão simplista. Santo Tomás, na já citada questão De Conscientia, mostra de forma cristalina que, não sendo a consciência nem hábito nem potência, ela mesma dependerá de outro hábito, que é o dos primeiros princípios da razão prática (conhecido como sindérese). Esta última é observável empiricamente até nas crianças de tenra idade, em suas apetências mais elementares, e o Angélico a define por meio de uma comparação: “Do mesmo modo que a alma tem certo hábito natural pelo qual conhece os primeiros princípios das ciências especulativas — ao qual chamamos “entendimento dos princípios” —, há nela também certo hábito natural dos primeiros princípios da razão prática (operabilium), que são os princípios universais do direito natural”. Em suma, cada ser humano tem, inscrita na natureza de sua anima, a capacidade de captar os princípios universalíssimos da razão prática, ou seja: eu sei, desde muito cedo, que certas coisas são para mim (e, a fortiori, para os demais) intrinsecamente boas ou más: que tirem a minha vida não é bom, por isso, por princípio, não devo tirar a vida dos meus semelhantes; que os outros mintam para mim é mau, por isso, não devo mentir para os outros; ter algo roubado é ruim, razão pela qual não devo eu meter-me a roubar; etc.

Não é o caso, neste pequeno texto, de expor os argumentos, em geral muito frágeis, dos que negam tal tendência, natural ao homem, de captar os primeiros princípios da moral, ou pior, negam até a existência de uma natura. O fato é que a tendência da busca pela verdade — mostrada por Santo Agostinho de forma brilhante com a frase “a maior prova de que a mentira é má, em si, dá-se pelo fato de que o maior mentiroso do mundo odeia que mintam para ele” —, da preservação da vida, e, em suma, de tudo o que capta a sindérese, pode ser resumida com simplicidade: “Não devo fazer aos outros nada que seja ruim para mim mesmo”. Sob esta luz, o princípio da sindérese fica evidente: afastar-se do mal e inclinar-se ao bem, eis a tendência fundamental observável em todos os seres humanos — até naqueles que fazem mal a si e aos semelhantes, pois o fazem movidos pela forma de um bem: o suicida, ao matar-se, pensa em pôr fim aos seus tormentos, o que é visto por ele como um bem maior; o assaltante, ao roubar, pensa no dinheiro, tido como bem apetecível, etc.

A sindérese, portanto, nunca erra no princípio universal captado naturalmente pela nossa razão prática, mas pode haver erro, sim, na aplicação do princípio a cada caso. “O que erra não é a sindérese, mas a consciência, pois é nela que se aplica o juízo universal da sindérese”, diz Santo Tomás.

Estabelecido este princípio, torna-se necessário concluir que a consciência, para ser bem formada, não necessita de um experimentalismo tosco e exagerado, pois já tem um insumo inamovível, inscrito em nossa própria humana natureza: a captação dos princípios universais da ordem moral.

domingo, 15 de junho de 2008

Consciência individual e liberdade (I)

Sidney Silveira
A partir do princípio metafísico estabelecido anteriormente — de que nenhum ente pode ser causado pelo seu próprio operar —, ficou assentado que não são as escolhas o que nos faz ser livres, mas uma instância ontologicamente superior a cada ato de eleger esta ou aquela coisa: a vontade, apetite intelectivo do bem.

Se, por uma radical impossibilidade metafísica, a liberdade não está fundada nas escolhas livres (que são uma operação sua, tão-somente), muito menos pode estar fundada na consciência individual. Santo Tomás, no De Veritate, questão De Conscientia, explica que o nome “consciência” significa a aplicação de uma ciência a algo, daí ser uma espécie de “com-saber” ou “saber simultâneo” (simul scire). E, justo por ser a aplicação de uma determinada ciência a algo, a consciência não pode significar, em termos metafísicos, um hábito ou potência, mas um ato — e, aqui, lembremos que a liberdade é um conceito afim ao de potência, pois é sempre liberdade de ou para.

Quando a ciência se aplica a algo com o intuito de dirigir, diz Santo Tomás que a consciência instiga, induz ou obriga; quando se aplica a algo para examinar o que se fez, diz-se que a consciência acusa ou remorde (accusare vel remordere). Ademais, a consciência pode errar, e, como veremos em textos mais à frente, liberdade e erro se auto-excluem radicalmente; daí que a liberdade não possa estar sediada na consciência individual (passível de erro), ainda que esta última tome uma parte em todos os atos propriamente humanos. Daí também que um sujeito tenha o direito de errar, mas o seu erro não possa ter quaisquer direitos, pois dar direitos políticos ao erro implica atrofiar, com o passar do tempo, a liberdade dos indivíduos (a verdadeira, que radica na vontade e tem como objeto algo exterior a ela, como se explica no último parágrafo), ainda que sob pretexto de defender a "liberdade" de escolha. Se alguém, por exemplo, receita um veneno letal de ação rápida para curar uma pequena ferida no dedo mindinho do pé, esse erro deve ser refutado publicamente, em prol de todos. E, dado esse caráter comunitário da verdade, ou seja, de estar a serviço do bem comum e não de interesses conflitantes com este, dizia com propriedade Santo Agostinho: “A verdade não é minha nem tua, para que seja nossa”.

Outro ponto destacado por Santo Tomás nesse texto luminoso no De Veritate é a distinção formal entre consciência e livre-arbítrio. Os juízos da consciência e do livre-arbítrio diferem porque o juízo da consciência se mantém no plano do conhecimento, enquanto o do livre-arbítrio implica conhecimento e afeto, na medida em que é um juízo de escolha (iudicium electionis). Ademais, assim como acontece com a consciência, o livre-arbítrio (que não é a liberdade, mas a capacidade de escolha) pode errar ou se perverter, pelo influxo das paixões.

Não tendo, pois, como fundamento nem os atos livres nem a consciência — e embora resida essencialmente na vontade —, a liberdade pressupõe, com relação ao seu objeto, algo extrínseco à vontade e também à inteligência: quanto aos meios, esse algo é um ente apetecível e inteligível; e quanto ao fim, necessariamente, como veremos noutra ocasião, é o Próprio Ser Subsistente. Diga-se, portanto, que reduzir a liberdade humana à chamada “liberdade de consciência”, ou à “liberdade de pensamento/expressão” ou ainda à "liberdade de escolha" foi obra do liberalismo, ou melhor: foi obra parida no protoliberalismo anticlericalista, inimigo da Igreja, e continuada em correntes e disfarces os mais diversos, nos últimos 200 anos.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Trecho de aula

Sidney Silveira
Sendo um dos propósitos deste blog divulgar a metafísica de Santo Tomás de Aquino — e, a partir deste tesouro filosófico, cumprir as duas funções próprias da sabedoria, de acordo com o Angélico, que são: ordenar as coisas aos seus fins próprios e combater os erros —, postamos, a seguir, um pequeníssimo trecho de aula ministrada num curso de extensão no Rio de Janeiro. A nossa idéia é disponibilizar em DVDs — assim que possível e a um custo acessível — essas aulas aos interessados em filosofia tomista. Eis o tira-gosto:


A liberdade humana e os atos livres dos homens

Sidney Silveira
Um princípio metafísico válido sem nenhuma exceção para todas as realidades — sejam materiais ou imateriais — nos servirá para lançar luzes sobre o que seja a liberdade humana. É o seguinte: nenhum ente pode ser causado pelo seu próprio operar. Apliquemos o axioma: um estômago, por exemplo, não pode ser causado pela digestão; um olho não pode ser causado pelo ato de ver; uma perna não pode ser causada pelo próprio caminhar. Tudo isso seria um grandíssimo absurdo. Deixaremos de lado, por ora, as sofismáticas, aporéticas e não raro sedutoras tentativas de desqualificar o princípio de causalidade, como por exemplo a do pobre David Hume (o que faremos em outro “post”). No momento, apliquemos essa norma à liberdade humana, para chegarmos à necessária conclusão de que a liberdade não pode ser causada pelos atos livres dos homens, da mesma forma que a percepção táctil não é a causa da mão que tateia. Em suma, não somos livres porque escolhemos, mas escolhemos porque somos livres. Um corolário óbvio desta premissa é que a consciência individual, por meio da qual uma pessoa faz as suas escolhas, não pode ser a raiz da liberdade, mas apenas a instância pela qual a liberdade exerce o seu ato formal próprio: a escolha.

Sendo assim, quando liberais de colorações as mais díspares defendem que a consciência
individual é a sede da liberdade, estão contrariando um princípio metafísico elementar, que não passaria despercebido a um estudante do período escolástico: nenhum ente é causado pelo seu próprio operar, porque, neste caso, tal ente seria a causa de si mesmo, o que é absurdo. Portanto, a liberdade — sendo uma potência cogniscitivo-volitiva — não escapa à norma: ela não pode ser causada pelas suas operações, que são as escolhas.

Não é o ato de escolher o que nos faz ser livres. Há uma instância anterior e propiciante do ato de escolha, já que esta se dá apenas secundum electionem voluntatis, de acordo com Santo Tomás. Essa instância é a vontade mesma, definida pelo Angélico como o apetite intelectivo do bem. É isto o que nos propicia escolher — razão pela qual os animais irracionais não são capazes de escolha, a não ser que, com relação aos animais, apliquemos o conceito de “escolha” com analogia de atribuição — a qual se dá quando a forma significada pelo nome análogo se encontra em diferentes sujeitos: num analogado primário de forma perfeita e principal, e em analogados secundários de forma imperfeita e derivada. Ora, o leão não escolhe comer ou não a zebra, pois não é dotado de apetite intelectivo do bem (ou seja, de vontade, a qual só pode ser dita do leão por analogia), mas somente de apetências sensitivas que o impelem a agir sempre da mesma forma, em resposta ao que os dados sensíveis lhe apresentam. Por isso, ele está arrojado no mundo da sensibilidade, onde não há ética, moral nem a recta ratio da lei.

Infelizmente, os liberais “pularam” essa aula de metafísica. E, com eles, grandíssima parte do mundo contemporâneo — idólatra da consciência individual e da “liberdade” de escolha, ainda que se trate de escolha dos erros mais diabólicos.