sábado, 31 de janeiro de 2009

O homem “transformado” em anjo (I)

Sidney Silveira
Como ensina Santo Tomás, a essência das coisas materiais abstraída de suas notas individuantes (quidditas rei materialis abstracta a notis individuantibus) é o objeto formal próprio da inteligência humana, ou seja, aquilo a que esta primeiramente se dirige. E essa abstração é o nosso modo específico de conhecer, que, como o demonstra eloqüentemente a experiência, não é por intuição direta das essências das coisas, como supusera Edmund Husserl — num erro gnosiológico fundamental que traria dramáticas conseqüências para a filosofia do século XX, a começar por Heidegger e, depois, por Sartre*.

Se, de fato, a nossa inteligência chega à verdade por uma espécie de atalho intuitivo, isto significa que não precisamos disciplinar-nos, estudar com afinco, para a obtenção do conhecimento; não precisamos combater paixões que obliterem os atos próprios da inteligência; não precisamos dos signos sensíveis da religião (Magistério, sacramentos e Escritura), já que o nosso relacionamento com Deus será intuitivo e, portanto, direto, sem intermediários de qualquer ordem; não precisamos de mestres que nos encaminhem às verdades mais altas; etc. Ou, melhor dizendo, não precisaríamos de tudo isso se, de fato, conhecêssemos as coisas por intuição direta de suas essências. E este é o caso não dos homens, e sim dos anjos — de acordo com a teologia católica tradicional.

Vejamos:

1- Justamente por terem o conhecimento por intuição direta, os anjos não precisam de um mestre para chegar às verdades que estão aptos a conhecer, as quais são captadas por eles no ato, ao contemplar qualquer ente (daí Tomás de Aquino dizer que o anjo vive entendendo). Aqui, no entanto, é preciso fazer uma ressalva: para o Angélico Doutor, um anjo pode ensinar a outro de espécie inferior, iluminando-lhe** a inteligência com a manifestação de uma verdade mais universal a que tem acesso naturalmente, dada a sua superioridade (observe-se que estamos ainda no plano da natura, ou seja: não nos referimos ao conhecimento de algo sobrenatural, mas ao conhecimento de uma verdade sob um conceito mais universal de um anjo em relação ao outro que lhe seja inferior quando à espécie. Uma verdade acerca de algo que está, portanto, além das possibilidades do anjo inferior. Isto é muito diferente do caso do homem, que precisa do mestre até mesmo para conhecer as coisas a que está naturalmente capacitado).
2- Os anjos não precisam ordenar paixões que impeçam o conhecimento pelo simples fato de que não as têm — porque lhes falta o apetite sensitivo, raiz de todas as paixões***.
3- Os anjos não precisam de disciplina nem de nenhum tipo de ascese para conhecer, pois as formas inteligíveis lhes são absolutamente conaturais e, por isso, sequer pode haver erro ou falsidade em seu conhecimento natural (obviamente, isto não se aplica ao conhecimento que os anjos têm das coisas sobrenaturais, para as quais precisam do auxílio divino).
4- Os anjos não precisam da Escritura, porque Deus lhes faz revelações diretas (cf. Suma Teológica, I, q. 58, a.1, resp.), nem de sacramentos (que são signos sensíveis da Graça, e o anjo, não possuindo sensibilidade, não precisa de sinais sensíveis para ter acesso à realidade), nem do Magistério eclesiástico, em sentido próprio, o que decorre de tudo o que foi dito acima.

Voltemos agora a nós, míseros humanos. Quais teriam sido as principais conseqüências do intuicionismo husserliano e de seu método fenomenológico, que ainda hoje deixam ressonâncias para várias correntes filosóficas? É o que veremos no próximo texto sobre o tema.

* A Sartre e a Heidegger nos referiremos noutra ocasião.
** Explica o Aquinate o sentido de "iluminação", no caso específico de que nos ocupamos (ou seja: que não diz respeito à teoria agostiniana da iluminação): “A luz, no que se refere ao entendimento, não é outra coisa senão a manifestação da verdade. (...) Iluminar, pois, não é mais do que dar a outro a manifestação de uma verdade conhecida”. (Suma Teológica, I, q. 106, a.1, resp).
*** A paixão, ensina-nos Santo Tomás seguindo a São João Damasceno, é o movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal. A paixão é, portanto, sempre psicofísica, abrange corpo e alma.