Carlos Nougué
Ora, por uma aplicação tão simples quão inelutável do princípio de causalidade, conclui-se que a atividade intelecto-volitiva do homem, conquanto condicionada extrinsecamente pelo sensível, dele difere essencialmente e pela sua própria natureza, o que não se daria se ela não fosse efeito de um princípio imaterial: a alma humana. Esta forma espiritual, como já vimos, não depende da matéria para todas as modalidades de seu ser, ou seja, tem ela, como também já vimos, uma operação em que não intervém a matéria: a operação intelectual propriamente dita. (Para evitar uma complexidade impossível de resolver na brevidade desta série, não se pode insistir aqui no aspecto volitivo da alma humana.) E por isso a alma humana, porque forma espiritual, não se destrói por acidente (com a morte do corpo) como as demais formas. Além disso, ela não pode decompor-se, dado não ser composta de partes distintas, como o é o corpo; ora, se a alma fosse composta de partes distintas, algo as teria de unir, e seria este algo, então, o próprio princípio de unidade, a própria forma, deixando-o de ser aquela. Com efeito, como diz Louis Jugnet (ibid., pp. 93-94), “enquanto espiritual, [a alma humana] evidentemente não é afetada de nenhuma composição física; ela é inacessível a toda e qualquer composição, sendo a morte algo próprio do múltiplo e do composto enquanto tais. A imortalidade da alma [humana] é um corolário da sua espiritualidade, a qual se induz simplesmente da observação imediata da atividade intelectual. Dizemos bem: induz-se. A filosofia aristotélica e tomista não reconstrói o universo more geometrico, à maneira espinosista, a poder de definições a priori, de deduções racionais puras; ela supõe sempre um dado de experiência. Falando propriamente, nem empirismo nem racionalismo, aqui como alhures” (cf. Santo Tomás, In XII Metaph., lect. 3; Suma Teológica, Ia, q. 75, a. 6; Suma contra os Gentios, II, c. 79-81; Q.d. sobre a Alma, a. 14; etc.).
Ademais, como não pode nascer senão por criação a partir do nada, a alma humana não pode desaparecer senão por aniquilamento. Só Deus o poderia fazer, só Deus a poderia aniquilar, assim como só Ele a pode criar. Fá-lo-ia? Não! Deus confere a cada ente, de modo infalível, o exigido pela natureza de que Ele mesmo o dotou, donde estas palavras que Santo Tomás tomou emprestado a Santo Agostinho: “quanto às coisas naturais [e, nunca é demais repetir, a alma humana é natural, não sobrenatural], não se deve considerar o que Deus pode fazer, mas o que convém à natureza de cada uma” (Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 5, ad 1). Se Deus deixa desaparecer as formas materiais, é precisamente, como vimos, porque elas dependem completamente da matéria, e porque convém a esta mudar de forma para assim refletir, por sua potencialidade de certa maneira infinita, a própria infinitude do Poder criador. Em verdade e stricto sensu, os entes materiais não são aniquilados — eles transformam-se. E até a própria alma vegetal e a própria alma animal são formas que propriamente não desaparecem com a transformação da matéria de que são princípio; não se aniquilam, propriamente; como que subsistem dissolvidas nos novos corpos, como potência. A alma humana, porém, é propriamente imortal, ou, como se dizia entre os escolásticos, é uma forma substancial subsistente.
Mas resta uma questão tão delicada quão complexa: que espécie de vida pode ter a alma humana quando separada do corpo, sempre de acordo com o que exige a sua própria natureza? Como vimos, em todas as atividades vegetativas e sensíveis requer-se o corpo, razão por que elas hão de cessar inteiramente na alma separada. A inteligência, todavia, como igualmente vimos, é independente da matéria, no seu ato sumo de conhecimento, assim como correlativamente também o é a vontade, no seu ato livre. Desse modo, pois, a atividade cognitivo-afetiva pode continuar a exercer-se na alma separada do corpo — a vida da alma separada do corpo após a morte é vida da inteligência. Isso todavia ainda não resolve de todo o problema, porque, se de certo modo já se disse o que é a vida da alma separada do corpo, ainda porém não se disse como é esta vida. Ora, na vida presente as idéias mediante as quais a inteligência conhece o seu objeto têm origem nos sentidos externos, e são elaboradas graças ao auxílio dos sentidos internos; e, como tudo isso depende do corpo, e como portanto não se pode exercer com a dissolução deste, as idéias que a alma separada é capaz de inteligir hão de ter origem diversa. E como não seria assim se, mudado o modo de ser, é absolutamente natural que mude também o modo de operar?
Há alguns modos possíveis de a alma separada do corpo operar. Entre eles, 1) ela pode abrir-se ao fluxo das idéias angélicas; e 2) pode receber as idéias diretamente de Deus, de modo infuso.
Não obstante, e se é certo que nenhuma dessas maneiras de conhecer ultrapassa a potência do intelecto humano, e se, ademais, por serem conhecimento direto do inteligível, sem o concurso das coisas sensíveis, podemos dizê-las em si mesmas mais perfeitas que o conhecimento por abstração dos entes concretos, elas, no entanto, são para a própria alma humana menos perfeitas. Por que tal equívoca realidade? Porque, como é feito para se aplicar às coisas particulares, o nosso intelecto não consegue abarcar de um só lance todas as conseqüências contidas em dado princípio geral; esta capacidade só a tem a inteligência angélica. Guardadas as devidas proporções, sucede com o nosso intelecto (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, Ia, q. 89, a. 1, corpus) o que sucede com as pessoas pouco inteligentes, que não compreendem uma questão posta em abstrato, e só conseguem compreendê-la mediante uma multiplicação de exemplos concretos. No universo das idéias gerais, que se dão transparentemente aos Anjos, a alma humana vê de modo menos claro que no universo das idéias abstraídas do sensível, donde poder-se dizer, por este ângulo, que a alma humana separada subsiste de modo imperfeito.
Permanece, todavia, uma dificuldade quanto às almas separadas do corpo: como individualizá-las? Sim, porque se é impossível haver dois entes imateriais distintos que pertençam à mesma espécie (assim, cada Anjo é como uma espécie própria e à parte), poderia parecer igualmente impossível distinguir entre si as almas humanas após a separação do corpo. Sucede porém que as almas humanas, ao contrário dos Anjos, não são formas espirituais puras: o fato de terem animado corpos entre si distintos é já o bastante para diferenciá-las entre si. As almas separadas são individuadas por sua relação com certo e determinado corpo: aquele que o foi o seu.
Que foi o seu? Não, não somente — também o corpo que tornará a ser o seu. O que nos veio conseguir o Verbo, que, encarnado, habitou entre nós? Pelo mérito único da Sua Paixão e Morte na Cruz, e pela eficiência da Sua própria Ressurreição, veio-nos conseguir um destino imensamente mais glorioso até do que a vida no Jardim do Éden: a visão amorosa da Face de Deus, com a alma reunida ao corpo ressuscitado e novamente operando, por isso, de modo perfeito. Ora, apesar da sua real grandeza e dignidade, a alma humana não tem direito natural a tal condição, e é incapaz de por si mesma conhecer diretamente o Ser do Senhor; para que isto ocorra, será preciso que Deus mesmo nos exalte a alma por uma luz toda especial, ou seja, por pura obra e dom gratuito da Sua infinita Bondade.
(Continua.)
Em tempo: Poder-se-ia perguntar: não teria Deus criado o homem como ente imperfeito, pelo fato de uma parte dele (a alma) ser imortal e a outra (o corpo) não? Para responder a isso, sigamos o raciocínio do mesmo Santo Tomás. Aquele que faz uma faca a faz com a forma de faca (a qual pelo fato mesmo de ser forma é, enquanto tal, incorruptível), mas a partir de uma matéria (que pelo fato mesmo de ser matéria é corruptível, sujeita, no caso, a oxidar-se). Aquele que faz a faca gostaria de fazê-la inteiramente incorruptível; mas não o pode pela própria natureza das coisas. Ora, Deus ao fazer o homem (que, como a faca e por sua própria natureza, é dotado de uma parte incorruptível e uma corruptível) supriu este defeito: dotou Adão e Eva, mediante um conjunto de dons preternaturais e a Árvore da Vida, de um corpo “praticamente” (isto se terá de precisar, em outra ocasião) incorruptível. Mas, para que Adão e Eva e sua descendência continuassem com tal dote, impôs Deus a nossos primeiros pais uma condição, uma única condição: que não comessem da Árvore da Ciência do Bem e do Mal.
O pecado original é, assim, a causa primeira de a espécie humana ser uma natureza composta de uma parte imortal e uma parte mortal.
Ora, por uma aplicação tão simples quão inelutável do princípio de causalidade, conclui-se que a atividade intelecto-volitiva do homem, conquanto condicionada extrinsecamente pelo sensível, dele difere essencialmente e pela sua própria natureza, o que não se daria se ela não fosse efeito de um princípio imaterial: a alma humana. Esta forma espiritual, como já vimos, não depende da matéria para todas as modalidades de seu ser, ou seja, tem ela, como também já vimos, uma operação em que não intervém a matéria: a operação intelectual propriamente dita. (Para evitar uma complexidade impossível de resolver na brevidade desta série, não se pode insistir aqui no aspecto volitivo da alma humana.) E por isso a alma humana, porque forma espiritual, não se destrói por acidente (com a morte do corpo) como as demais formas. Além disso, ela não pode decompor-se, dado não ser composta de partes distintas, como o é o corpo; ora, se a alma fosse composta de partes distintas, algo as teria de unir, e seria este algo, então, o próprio princípio de unidade, a própria forma, deixando-o de ser aquela. Com efeito, como diz Louis Jugnet (ibid., pp. 93-94), “enquanto espiritual, [a alma humana] evidentemente não é afetada de nenhuma composição física; ela é inacessível a toda e qualquer composição, sendo a morte algo próprio do múltiplo e do composto enquanto tais. A imortalidade da alma [humana] é um corolário da sua espiritualidade, a qual se induz simplesmente da observação imediata da atividade intelectual. Dizemos bem: induz-se. A filosofia aristotélica e tomista não reconstrói o universo more geometrico, à maneira espinosista, a poder de definições a priori, de deduções racionais puras; ela supõe sempre um dado de experiência. Falando propriamente, nem empirismo nem racionalismo, aqui como alhures” (cf. Santo Tomás, In XII Metaph., lect. 3; Suma Teológica, Ia, q. 75, a. 6; Suma contra os Gentios, II, c. 79-81; Q.d. sobre a Alma, a. 14; etc.).
Ademais, como não pode nascer senão por criação a partir do nada, a alma humana não pode desaparecer senão por aniquilamento. Só Deus o poderia fazer, só Deus a poderia aniquilar, assim como só Ele a pode criar. Fá-lo-ia? Não! Deus confere a cada ente, de modo infalível, o exigido pela natureza de que Ele mesmo o dotou, donde estas palavras que Santo Tomás tomou emprestado a Santo Agostinho: “quanto às coisas naturais [e, nunca é demais repetir, a alma humana é natural, não sobrenatural], não se deve considerar o que Deus pode fazer, mas o que convém à natureza de cada uma” (Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 5, ad 1). Se Deus deixa desaparecer as formas materiais, é precisamente, como vimos, porque elas dependem completamente da matéria, e porque convém a esta mudar de forma para assim refletir, por sua potencialidade de certa maneira infinita, a própria infinitude do Poder criador. Em verdade e stricto sensu, os entes materiais não são aniquilados — eles transformam-se. E até a própria alma vegetal e a própria alma animal são formas que propriamente não desaparecem com a transformação da matéria de que são princípio; não se aniquilam, propriamente; como que subsistem dissolvidas nos novos corpos, como potência. A alma humana, porém, é propriamente imortal, ou, como se dizia entre os escolásticos, é uma forma substancial subsistente.
Mas resta uma questão tão delicada quão complexa: que espécie de vida pode ter a alma humana quando separada do corpo, sempre de acordo com o que exige a sua própria natureza? Como vimos, em todas as atividades vegetativas e sensíveis requer-se o corpo, razão por que elas hão de cessar inteiramente na alma separada. A inteligência, todavia, como igualmente vimos, é independente da matéria, no seu ato sumo de conhecimento, assim como correlativamente também o é a vontade, no seu ato livre. Desse modo, pois, a atividade cognitivo-afetiva pode continuar a exercer-se na alma separada do corpo — a vida da alma separada do corpo após a morte é vida da inteligência. Isso todavia ainda não resolve de todo o problema, porque, se de certo modo já se disse o que é a vida da alma separada do corpo, ainda porém não se disse como é esta vida. Ora, na vida presente as idéias mediante as quais a inteligência conhece o seu objeto têm origem nos sentidos externos, e são elaboradas graças ao auxílio dos sentidos internos; e, como tudo isso depende do corpo, e como portanto não se pode exercer com a dissolução deste, as idéias que a alma separada é capaz de inteligir hão de ter origem diversa. E como não seria assim se, mudado o modo de ser, é absolutamente natural que mude também o modo de operar?
Há alguns modos possíveis de a alma separada do corpo operar. Entre eles, 1) ela pode abrir-se ao fluxo das idéias angélicas; e 2) pode receber as idéias diretamente de Deus, de modo infuso.
Não obstante, e se é certo que nenhuma dessas maneiras de conhecer ultrapassa a potência do intelecto humano, e se, ademais, por serem conhecimento direto do inteligível, sem o concurso das coisas sensíveis, podemos dizê-las em si mesmas mais perfeitas que o conhecimento por abstração dos entes concretos, elas, no entanto, são para a própria alma humana menos perfeitas. Por que tal equívoca realidade? Porque, como é feito para se aplicar às coisas particulares, o nosso intelecto não consegue abarcar de um só lance todas as conseqüências contidas em dado princípio geral; esta capacidade só a tem a inteligência angélica. Guardadas as devidas proporções, sucede com o nosso intelecto (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, Ia, q. 89, a. 1, corpus) o que sucede com as pessoas pouco inteligentes, que não compreendem uma questão posta em abstrato, e só conseguem compreendê-la mediante uma multiplicação de exemplos concretos. No universo das idéias gerais, que se dão transparentemente aos Anjos, a alma humana vê de modo menos claro que no universo das idéias abstraídas do sensível, donde poder-se dizer, por este ângulo, que a alma humana separada subsiste de modo imperfeito.
Permanece, todavia, uma dificuldade quanto às almas separadas do corpo: como individualizá-las? Sim, porque se é impossível haver dois entes imateriais distintos que pertençam à mesma espécie (assim, cada Anjo é como uma espécie própria e à parte), poderia parecer igualmente impossível distinguir entre si as almas humanas após a separação do corpo. Sucede porém que as almas humanas, ao contrário dos Anjos, não são formas espirituais puras: o fato de terem animado corpos entre si distintos é já o bastante para diferenciá-las entre si. As almas separadas são individuadas por sua relação com certo e determinado corpo: aquele que o foi o seu.
Que foi o seu? Não, não somente — também o corpo que tornará a ser o seu. O que nos veio conseguir o Verbo, que, encarnado, habitou entre nós? Pelo mérito único da Sua Paixão e Morte na Cruz, e pela eficiência da Sua própria Ressurreição, veio-nos conseguir um destino imensamente mais glorioso até do que a vida no Jardim do Éden: a visão amorosa da Face de Deus, com a alma reunida ao corpo ressuscitado e novamente operando, por isso, de modo perfeito. Ora, apesar da sua real grandeza e dignidade, a alma humana não tem direito natural a tal condição, e é incapaz de por si mesma conhecer diretamente o Ser do Senhor; para que isto ocorra, será preciso que Deus mesmo nos exalte a alma por uma luz toda especial, ou seja, por pura obra e dom gratuito da Sua infinita Bondade.
(Continua.)
Em tempo: Poder-se-ia perguntar: não teria Deus criado o homem como ente imperfeito, pelo fato de uma parte dele (a alma) ser imortal e a outra (o corpo) não? Para responder a isso, sigamos o raciocínio do mesmo Santo Tomás. Aquele que faz uma faca a faz com a forma de faca (a qual pelo fato mesmo de ser forma é, enquanto tal, incorruptível), mas a partir de uma matéria (que pelo fato mesmo de ser matéria é corruptível, sujeita, no caso, a oxidar-se). Aquele que faz a faca gostaria de fazê-la inteiramente incorruptível; mas não o pode pela própria natureza das coisas. Ora, Deus ao fazer o homem (que, como a faca e por sua própria natureza, é dotado de uma parte incorruptível e uma corruptível) supriu este defeito: dotou Adão e Eva, mediante um conjunto de dons preternaturais e a Árvore da Vida, de um corpo “praticamente” (isto se terá de precisar, em outra ocasião) incorruptível. Mas, para que Adão e Eva e sua descendência continuassem com tal dote, impôs Deus a nossos primeiros pais uma condição, uma única condição: que não comessem da Árvore da Ciência do Bem e do Mal.
O pecado original é, assim, a causa primeira de a espécie humana ser uma natureza composta de uma parte imortal e uma parte mortal.