domingo, 25 de janeiro de 2009

O fim de um injusto opróbrio

Carlos Nougué
Não é do desconhecimento de nenhum católico (que tenha olhos de ver) a crise em que está mergulhada a Igreja desde o Concílio Vaticano II. Note-se bem: não dizemos que nunca tivesse havido crise na Igreja antes desse Concílio, nem que imediatamente antes dele a Santa Madre vivesse um momento de esplendor. Não o dizemos, até porque dizê-lo seria ir contra a verdade.

Com efeito, muitas foram as crises desde que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou sua Igreja sobre a rocha que é Pedro. Houve uma pouco depois da ascensão de Nosso Senhor: a da tendência à judaização, resolvida com a admoestação de São Paulo ao Papa São Pedro, cujo comportamento no caso implicava risco para a fé (cf. Gálatas, II, 11-14). A respeito desse episódio, diz Santo Tomás na Suma Teológica: “Aos prelados [foi dado exemplo] de humildade, para que não se recusem a aceitar repreensões da parte de seus inferiores e súditos; e aos súditos [foi dado] exemplo de zelo e liberdade, para que não receiem corrigir seus prelados, sobretudo quando o crime for público e redundar em perigo para muitos [...]. A repreensão foi justa e útil, e o seu motivo não foi leve [...]. O modo como se deu a repreensão foi conveniente, pois foi público e manifesto. Por isso escreve São Paulo: ‘Falei a Cefas’, isto é, a Pedro, ‘diante de todos’, porque a simulação praticada por São Pedro acarretava perigo para todos”. E muitas crises se seguiram a essa, e nelas, porque os Papas “não andavam retamente, conforme a verdade do Evangelho”, nunca deixou de haver quem “lhes resistisse cara a cara” (cf. Gálatas, ibid.): Santo Atanásio (iniquamente excomungado por isso) e Santo Hilário resistiram ao Papa Libério; São Columbano, ao Papa Bonifácio IV; São Sofrônio, ao Papa Honório I; São Bruno, ao Papa Pascoal II; a Universidade de Paris, ao Papa João XXII; Santa Catarina de Sena, a Gregório XI e Urbano VI...

Por outro lado, já desde o ocaso da Idade Média (e especialmente desde Felipe, o Belo), o humanismo, e depois o Renascimento, e depois o luteranismo, e depois o liberalismo e a revolução francesa, e depois o comunismo e o “é proibido proibir” vieram cercando e combatendo a Igreja, a Cristandade, a doutrina cristã. Era a revolta da carne e do amor-próprio contra a ordenação de toda a vida humana, incluindo as cidades e seus regimes políticos, ao Fim Último do homem, ao Bem Comum de todo o universo, ao reinado social de Cristo. Era a revolta contra o Reino de Deus. Era o retorno em escala ampliada do “non serviam” edênico. E, em face desse sítio cada vez mais maciço e agressivo, a própria Cristandade (e por vezes os próprios homens da Hierarquia, como, por exemplo, os Papas humanistas) veio fraquejando cada vez mais, quer cedendo ao subjetivismo crescente do pensamento moderno, quer cedendo à velha reivindicação de Dante (expressa em seu Sobre a Monarquia): a independência do poder temporal com relação ao poder espiritual.

Ora (e não aprofundamos esse tema aqui precisamente porque o faremos na série “Sedevacantismo, uma conclusão à procura de premissas”), a situação da Igreja imediatamente antes do Concílio Vaticano II era a de uma cidade gravemente sitiada e exausta, que tivera dificuldades até para cumprir efetivamente o programa antimodernista ordenado por São Pio X. Mas as resoluções daquele Concílio, que tenderam, todas, a negar o caráter magisterial e infalível do Papado e a transferi-lo, liberalmente, para o “povo de Deus”, lançaram a Igreja numa crise sem precedentes, justamente porque derivada tanto de uma rendição ao mundo quanto da renúncia da própria Hierarquia a exercer sua autoridade suprema (e divinamente delegada). (E que não se argua a impossibilidade material de exercer essa autoridade por causa da negativa do mundo em aceitá-la: o fato de um governante ser deposto iniquamente lhe retira a autoridade de jure?) Poder-se-ia citar aqui, em apoio a essa conclusão, uma série de cifras, como as da queda súbita, acelerada e muito volumosa do número de vocações, do fim quase total das missões, da perda crescente de fiéis para as seitas protestantes, para o islã, etc., etc., etc. Mas basta citarmos ninguém menos que dois Papas conciliares: Paulo VI, que falou de uma infiltração da “fumaça de Satanás” na Igreja e de uma “autodemolição” dela; e João Paulo II, segundo o qual o catolicismo na Europa estava em situação de “apostasia silenciosa”.

Pois bem, sobretudo dois bispos, Monsenhor Lefebvre e D. Antônio de Castro Meyer, resistiram “cara a cara” a essa fumaça, a essa autodemolição, a essa apostasia silenciosa (não raro gritada). E, como Santo Atanásio, foram por isso excomungados, junto com os quatro bispos da Fraternidade São Pio X consagrados por M. Lefebvre precisamente para “manter íntegros os sacramentos e o sacerdócio”. Mas o Papa atual, Bento XVI, atendeu à Fraternidade São Pio X liberando primeiramente a tradicional Missa Tridentina, com o que dava fim a uma “ab-rogação” que em verdade não o foi: a Missa Tridentina não podia nem pode de modo algum ser ab-rogada (o que se explicará também na série “Sedevacantismo...”); e suspendendo agora, num “ato unilateral, bondoso e corajoso” segundo D. Bernard Fellay, superior da Fraternidade (cf.
www.dici.org e www.statveritas.com.ar), a excomunhão que atingia os quatro bispos consagrados por D. Lefebvre (conquanto não, ou ainda não, a que atinge este e D. Antônio de Castro Meyer).

Agradeçamos ao Papa, e agradeçamos especialmente a Nossa Senhora (por cuja intercessão em favor deste ato de Bento XVI se rezaram um milhão e setecentos mil rosários), este fim (parcial, mas efetivo) de tão escura sombra na história da Igreja. Como diz ainda D. Fellay, graças a este gesto do Santo Padre dá-se “o fim do opróbrio que pesava, nas pessoas dos bispos da Fraternidade, sobre todos aqueles que estão unidos de perto ou de longe à Tradição”, os quais “já não serão injustamente estigmatizados e condenados por terem mantido a Fé de seus pais”.

De nossa parte, por nos incluirmos entre os que estão unidos à Tradição da Igreja, não podemos senão rejubilar-nos com D. Fellay e a Fraternidade. Mais que isso, porém: com eles reafirmamos

● nossas fervorosas orações pelo Papa;

● nosso apego à Igreja de N. S. Jesus Cristo, nossa aceitação de seu ensinamento e nossa Fé na primazia de Pedro;

● nossa adesão ao Credo, ao juramento antimodernista de São Pio X e à profissão de Fé de Pio IV;

● nossa esperança na efetiva e mais que devida reabilitação de D. Lefebvre e D. Antônio de Castro Meyer;

● a necessidade de superar doutrinas opostas ao magistério infalível, para que se superem as causas profundas da atual situação da Igreja e se alcance, assim, uma sólida restauração dela – contra o mundo, contra a carne e contra o demônio.
Adendo do Sidney: Não é demais lembrar, frisar, destacar, que, embora desde ontem oficialmente em "unidade visível" com a Santa Sé, a Fraternidade São Pio X não arredou pé das questões doutrinais que são a razão de ser de sua firme posição desde o Concílio, conforme deixou claro ontem (24/01) o seu superior, D. Bernard Fellay, em um comunicado da Fraternidade e também em uma carta aos fiéis. E, aos amantes da Tradição insatisfeitos com a decisão de ontem — pelo fato de o documento não citar nominalmente a D. Marcel Lefebvre —, vale dizer: cuidado, caros amigos, para não cair nalguma espécie de sedevacantismo. Confiem: a confiança, dizia Santo Tomás, é uma esperança fortalecida por inabalável convicção. Ademais, são inescrutáveis os desígnios da Providência e só nos cabe o abandono total, na certeza de que os males, quaisquer que sejam, são por Deus ordenados a bens infinitamente maiores para as almas que O amam. E, por fim, essa coisa de querer tudo o mais perfeitamente possível cheira a milenarismo, pois tem um quê da ânsia (nada católica) de buscar a felicidade plena neste mundo. Não nos esqueçamos de que a nossa luta tem em vista uma vitória cujo ingrediente é a derrota para o mundo, como mostram os Santos mártires de todos os tempos — alguns dos quais perseguidos ou condenados iniquamente com o beneplácito e, não raro, a ação efetiva de membros da própria Igreja. Em suma, a paciência é o aprendizado próprio do sofrimento; se não aprendemos a sofrer nela, é porque o caminho a percorrer ainda é longo e nem sequer estamos preparados para o combate, não obstante as boas intenções e a clara visão do cenário da batalha.