quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sobre as coisas políticas (II)

Sidney Silveira

No Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, texto comentado pelos principais pensadores medievais a partir do final do século XII, um dos problemas subjacentes às questões compiladas pelo notável magister catedralício da escola de Notre Dame era saber o que o homem deve usar e o que deve gozar. Em resumo, o uso está para o gozo assim como o instrumento do talhador está para a madeira; o pecado estaria justamente em inverter esta ordem, ou seja, gozar o que é para usar, e usar o que é para gozar. A propósito, um dos artigos do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo escrito por Santo Tomás começa assim: Deus usa o homem ou goza com o homem?

Deixemos a resposta a este instigante problema para outra ocasião, pois interessa-nos por ora a aplicação do princípio de causalidade instrumental às coisas políticas, para seguir o que se prenunciou no texto anterior: a política é, em relação ao fim último do homem, um simples meio. Noutras palavras, o homem deve usar das coisas políticas com o intuito de gozar da bem-aventurança perfeita que o espera, no céu. Sendo assim, enxergar em qualquer âmbito da Pólis o ápice da realização dos anseios humanos é esquecer-se de Deus, preterir a Cristo em favor de Barrabás, subjugar o espírito à matéria, a qualidade à quantidade.

Pois muito bem, nestes tempos de contornos apocalípticos, entre católicos amantes da Tradição é grande o risco do milenarismo, essa louca esperança de uma felicidade perfeita na terra. E isto num duplo viés: milenarismo político e milenarismo religioso. O primeiro é bastante encontradiço entre católicos de formação liberal que vêem o bem político como algo autônomo ou, na melhor das hipóteses, apenas acidentalmente subordinado ao fim último do homem: Deus. Haveria, para estas pessoas seduzidas pela hidra liberal, uma separação entre os poderes espiritual e material, e nisto são elas herdeiras distantes das obras como De Monarchia, de Dante, e Utopia, de Thomas More — durante séculos constantes do Index Librorum Prohibitorum.

Por sua vez, o milenarismo religioso é mais comumente encontrável entre católicos que, apesar de sua melhor formação doutrinal — não contaminada pelo espírito do Concílio Vaticano II —, esperam com inabalável convicção o ressurgimento da Cristandade no mundo, como se lessem nas entrelinhas dos desígnios da Providência o que está selado para os tempos atuais. Parecem esquecer-se da terrível pergunta de Cristo: “Quando vier o filho do Homem, acaso encontrará a fé sobre a terra?” (Lc. XVIII, 8). Não aprofundaremos este último tipo de milenarismo, pois o foco no momento são as coisas políticas, mas vale remeter os nossos leitores a um trecho do escrito Reflexões sobre o Apocalipse, originalmente publicado no blog católico A Casa de Sarto e traduzido pela Permanência. Ali se ensina, entre outras coisas, que o milenarismo espiritual é a materialização da esperança, ou seja, o retirar da Esperança cristã o seu caráter sobrenatural.

É verdade de fé que, desde o pecado original, o mundo pertence ao Maligno, que para perder as almas se aproveita da desordem instaurada por três grandes seqüelas decorrentes da queda de Adão: a concupiscência da carne (tendência à luxúria), a concupiscência dos olhos (amor às riquezas) e a soberba da vida (desobediência, proveniente do orgulho). Tendo isto em vista, Santo Agostinho afirmava que, desde Caim, fundaram-se no mundo apenas Cidades do Amor Próprio, as quais viriam a ser combatidas com a manifestação, na plenitude dos tempos, da verdade do Evangelho, que, por intermédio da Igreja militante, procurará estabelecer entre nós uma prefiguração da Cidade de Deus. Não à toa afirmava, em tom de lamento, Leão XIII, na Encíclica Immortale Dei: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho pairava sobre as nações”.

Aqui chega-se ao ponto nevrálgico da questão: ou as sociedades pagarão ao Criador o seu débito de justiça, dando-Lhe o culto público devido, ou legislarão totalmente à margem de Deus, conformando-se assim às Cidades do Amor Própio de que falava Agostinho, onde os homens são carniça do demônio. Ora, legislar à margem de Deus será exatamente o que farão as sociedades modernas instigadas pela reação da carne às duras exigências do espírito cristão. Com elas se inaugura, na prática, o Estado ateu, ou melhor, um tipo de ateísmo oficial camuflado, que, sob o demagógico pretexto de respeitar as liberdades individuais, propugna — com o Estado laico — uma neutralidade em relação às questões que desde sempre foram a base da civilização.

O que muitos ingênuos não percebem é que o Estado laico moldado pela intelligentzia maçônica dos séculos XVIII e XIX — e consagrado no século XX como verdade pétrea das constituições mundo afora, a pretexto de respeitar as consciências individuais — foi a brecha para o surgimento do Estado ateu; este não existiria se não tivesse havido aquele, pois o comunismo e todos os seus matizes socialistas são filhos robustos do liberalismo antieclesiástico. Na verdade, o comunista e o liberal são como o sádico e o masoquista: odeiam-se por se mostrarem complementares em suas patologias. O sádico perderia todo o seu prazer ao inflingir dor a quem sente prazer na dor; e algo semelhante pode-se dizer do masoquista.

Se por desgraça a Igreja já não age apostolicamente para converter o mundo à verdade evangélica, pois o discurso oficial, na melhor das hipóteses, aborda questões relativas à lei natural (ou seja: colocar-se contra o aborto; contra a política gayzista; contra o ateísmo; etc.), dado o ecumenismo em que jazem as autoridades; se ela já não propõe nenhum remédio a ser aplicado no plano político, para conformar as sociedades à lei do Evangelho; se ela já não se assume como a única religião verdadeira; tudo isso não implica que:

a) o mundo não precise ser convertido;

b) a Igreja não deva intrometer-se nas coisas políticas, inoculando nos costumes a caridade evangélica e condenando os erros contra a fé no seio da Pólis (e não apenas intra Ecclesiam) que possam interpor-se entre os homens e Deus;

c) o catolicismo não seja a única verdadeira religião, fundada por Deus Encarnado.

Antes de encerrar este segundo texto da presente série, vale indagar: entre os nossos presidenciáveis há, ainda que palidamente, alguém cujo grupo político represente a defesa dos princípios aqui arrolados? Há, de fato, do ponto de vista da fé, o menos pior? Concedo que pode haver o menos pior (mas não muito, diga-se) de uma perspectiva meramente política — mas de uma política que só pode ser assim chamada por uma analogia de atribuição extrínseca. Isto porque, em sua verdadeira acepção, a política acabou.

E acabou porque os valores sem os quais não há sequer resquício de civilização estão enterrados. Não sabemos até quando.

(continua)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Bacanal litúrgico e liberalismo político



Sidney Silveira
Duas imagens no Frates in Unum veiculadas nesta semana dizem muito: numa, D. Moacyr Vitti, Arcebispo de Curitiba, entrega flores à candidata Dilma Roussef; noutra, uma "sacerdotisa" "consagra" a Hóstia, na Paróquia Santo Antônio, também em Curitiba. Vale também atentar, no texto do referido blog, a uma "Nota" da Arquidiocese do Rio desautorizando a todos os que, no exercício do ministério ordenado ou mesmo em nome da Igreja, indiquem ou rejeitem candidatos ou partidos políticos... Graças a Deus, Satanás — até onde sabemos, pois o pai da mentira tudo faz enganando — não se candidatou a nenhum cargo eletivo ou executivo em terras fluminenses. Bem, eximo-me de falar o óbvio.
P.S. Como se diz num comentário ao texto do Frates in Unum ilustrado com a foto do bispo dando flores à candidata do PT à Presidência, parece que na CNBB há quem pense que só de pão vive o homem.

sábado, 25 de setembro de 2010

A Mãe do Salvador (II)

Sidney Silveira

Agradeço pelas mensagens que tenho recebido por postar no Youtube um pequeno trecho de aula em que falo da principal excelência de Maria, Nossa Senhora: ser a Mãe de Deus. Dizia eu ali, citando um livro de Garrigou-Lagrange, que a plenitude inicial de graça em Maria — que a preservou da mancha do pecado original — foi um privilégio especial concedido por Deus para que fosse a digna mãe do Salvador. Afinal, como Santo Tomás reitera em diferentes pontos de sua obra, Deus dá graças proporcionadas à missão que quer que uma pessoa realize.

Mas vale consignar outras coisas sobre Maria:

Ø Ela foi isenta, em toda a sua vida, não apenas de pecados mortais, mas também dos mais ínfimos pecados veniais. Daí dizer o Concílio de Trento (Seção VI) que o homem, uma vez justificado, não pode continuamente, ao longo de toda a sua vida, evitar todos os pecados veniais, a não ser por um privilégio especial como o que a Igreja reconhece haver sido concedido à Santíssima Virgem.

Ø Nos Santos, a confirmação da graça realiza-se mediante um grande aumento de caridade, sobretudo por aquilo que os místicos chamam de união transformante, o suplemento de graças atuais eficazes que os fazem evitar o pecado e os conduzem a atos meritórios cada vez mais elevados. Em Maria, tal união transformante não foi acidental, pois lhe impregnava a alma desde a imaculada conceição, quando na verdade sua santíssima alma foi adornada com todos os dons gratuitos.

Ø Ao definir o Dogma da Imaculada Conceição, Pio IX diz que Maria foi amada desde o primeiro instante sobre todas as criaturas — prae caeteris creaturis —, pois “Deus a cumulou admiravelmente com todas as Suas graças, muito mais que a todos os espíritos angélicos e a todos os Santos”.

Ø Santo Tomás explica a plenitude de graça em Maria dizendo: “Quanto mais nos aproximamos do princípio, melhor participamos dos seus efeitos. (...) Pois bem, Cristo é o princípio de toda a vida e de toda a graça; como Deus, ele é causa principal dela, e como homem no-la transmite (depois de havê-la merecido por nós), pois sua humanidade é como um instrumento sempre unido a Deus. (...) A Santíssima Virgem, estando mais próxima de Cristo que qualquer outra pessoa, posto que ele tomou [apenas] dela sua humanidade, recebeu de Deus uma plenitude de graça que supera a de todas as demais criaturas” (Suma Teológica, III, q. 27, a. 5).

Ø Em seu Comentário à Ave-Maria, escreve ainda o Angélico que o Arcanjo Gabriel, ao saudar Maria, mostrou-se cheio de respeito e veneração, pois compreendeu que Maria sobrepassava-o, pela plenitude da graça e pela intimidade divina com o Altíssimo. A propósito, é leitura obrigatória para quem quer estudar o tema o Comentário à Ave-Maria (In Salutationem Angelicam Expositio) traduzido com grande apuro por Omayr José de Moraes Jr.

Ø Há uma diferença teológica entre imperfeição voluntária e pecado venial. A imperfeição voluntária é, por assim dizer, uma generosidade menor, num dado momento. Assim, alguém porventura se encontra indisposto e, numa certa ocasião, deixa de fazer o melhor que poderia, o que não é em si pecado, mas uma pequena imperfeição. Pois bem, nem mesmo estas pequeníssimas faltas houve em Maria, segundo Garrigou, pois não houve nela ato imperfeito (remissus) de caridade inferior, estando a Virgem sempre totalmente pronta a responder a qualquer inspiração divina. Este pequeno trecho eu posto em resposta a alguém que me mandou email questionando que Maria fosse mesmo mais Santa que todos os Santos e Mártires juntos — como eu disse no vídeo citado acima. Vale também, caro amigo, ler o belíssimo trecho da bula Ineffabilis Deus, que definiu o Dogma da Imaculada Conceição.

Estes achados do livro La Mère du Sauveur – Notre vie intérieure, do Pe. Garrigou, são um grande tesouro para quem quer aprofundar a piedade mariana com estudos teológicos do mais alto gabarito.

Muito mais ainda há por dizer.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A verdade: o modo próprio de adequação entre a inteligência e as coisas

Sidney Silveira

A verdade é a adequação entre a inteligência e as coisas, diz Santo Tomás na esteira do filósofo Isaac Israeli. Mas o que se quer dizer exatamente com isto? Bem, neste trecho de aula frisava eu que a verdade:


a) é uma relação ontológica;

b) é uma relação categorial;

c) pressupõe um ente real extra mentis;

d) está primordialmente nas coisas, como fonte;

e) está formalmente na inteligência;

f) é o objeto [no caso, formal terminativo] dos movimentos da inteligência.


Noutras palavras, a verdade na inteligência tem como causa material o ser das coisas. Sendo assim, pode-se perfeitamente dizer, com a escola tomista, que a verdade deve-se considerar em duplo aspecto: transcendental, no ente; e formal, na inteligência. Com relação à verdade transcendental, que não é outra coisa senão o ente real mesmo, vale dizer que ela é anterior à verdade no intelecto humano, e posterior à verdade no intelecto divino — que é o seu modelo, a sua causa exemplar. Em suma, o intelecto humano, para laborar, precisa alimentar-se do ser das coisas, que por sua vez provém do intelecto divino. Tendo isto em vista, Santo Tomás nos presenteia com este achado: “A verdade está propriamente no intelecto, seja humano ou divino, assim como a saúde está no corpo do animal” (De Veritate, I, a.4)


Remetamo-nos agora ao que diz o Aquinate sobre o conceito de idéia, pois é a propósito do que se afirmou da causa exemplar e do que se dirá abaixo: “O que em grego se chamou idéia, em latim se chama forma; daí que entendamos por idéia a forma das coisas existente fora das coisas mesmas. E a forma de uma coisa existente fora da coisa pode ter duas funções: ser modelo (exemplar) daquilo de que é forma; e ser princípio de conhecimento, e assim se diz que a forma do cognoscível está no cognoscente” (Suma Teológica, I, Q,15, art. 1, resp).


Por esta razão afirma Juan Cruz Cruz em sua ótima apresentação a um trecho do Cursus Theologicus de João de Santo Tomás (I, q. 22), publicado recentemente pela EUMSA, que a verdade transcendental tem uma dupla relação de conformidade: uma vertical, de dependência direta do intelecto divino, ou seja, das idéias na mente de Deus; e outra horizontal, de conveniência com o intelecto humano, na medida em que dá a este o seu insumo elementar. Diz a propósito o filósofo espanhol: “A relação de adequação que as coisas criadas mantêm com o intelecto divino corresponde a uma conformidade passiva, no sentido em que recebem dele a norma, a medida e a causalidade, donde brota uma relação de intrínseca dependência interna”. E podemos nós completar ressaltando que a relação de adequação que elas possuem com o intelecto humano é de identidade formal.


Reiteremos, para gravar bem o conceito: no intelecto humano, a verdade é a forma (species) inteligível imaterial da coisa conhecida, abstraída das propriedades da coisa; e, no intelecto divino, é a causa exemplar dos entes, a idéia divina sem a qual as coisas sequer existiriam. Neste contexto, não custa frisar que, para o Aquinate, Deus quando pensa, cria a coisa pensada; o homem quando pensa, abstrai; o anjo quando pensa, intui; e os animais irracionais, não tendo potências intelectivas, não conseguem transcender à materialidade das coisas, e, por esta razão, embora existindo entre coisas verdadeiras (verdade transcendental), não têm acesso à ratio veritatis (verdade formal).

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Sobre as coisas políticas (I)

Sidney Silveira

Recebi email indignadíssimo de um leitor nosso que, pelo visto, não aceita de forma alguma que anulemos, eu e o Nougué, o voto nestas eleições presidenciais. Antes de tudo, vale dizer que não me ofendem o tom exaltado e a superioridade pontifical do referido email deste nosso amigo, movidos decerto por uma justa ira em relação à desgraça política nacional, e nem o fato de o seu texto chamar-nos de “omissos”, citando como apoio o excelente teólogo Jean Ousset (que, segundo o missivista, pediria “ação” diante da presente situação do país) e fazendo referência ao princípio da “escolha do mal menor”, nas coisas humanas.

Não pude, contudo, ao ler esta mensagem, deixar de lembrar-me do que diz o Pe. Calderón: o tema da política foi o que mais suscitou erros no pensamento católico.

Vale, pois, remeter-nos a alguns princípios, antes de apresentar a razão de anularmos o voto (observe-se, porém, que não fazemos apologia do voto nulo, pois esta é uma matéria opinável a ser decidida por cada um, de acordo com a sua consciência. Com exceção, obviamente, dos casos em que votar neste ou naquele candidato implica ir diretamente contra as leis de Deus, e omitir-se torna-se então pecado grave. Veremos adiante que não há propriamente um mal menor, no atual quadro da política brasileira, do ponto de vista da fé).

Subordinação do temporal ao espiritual

O princípio reitor da ação católica nas coisas políticas, de acordo com a doutrina tradicional da Igreja, é o da subordinação da ordem temporal à espiritual. Em resumo, o espiritual está para o temporal:

> assim como a alma está para o corpo;

> assim como a graça está para a natureza, na alma do homem justificado;

> assim como a fé está para a razão, na teologia.

Quando precisa explicar a intervenção do poder espiritual nas coisas temporais, Santo Tomás — lembra-nos Calderón, no livro El Reino de Dios — recorre às três analogias acima. Mas adverte o Santo Doutor: não há nenhuma usurpação se porventura a Igreja se intromete nas coisas temporais naqueles assuntos em que o poder secular lhe está submetido. Em suma, de fato não cabe ao poder espiritual imiscuir-se na arrecadação fiscal, na engenharia de tráfego, etc. Mas ele pode, por direito divino inusurpável, meter-se nas coisas temporais em todas as ocasiões em que este se transforme num empecilho à consecução do fim espiritual superior custodiado pela Igreja, o que na verdade pode acontecer em inúmeras ocasiões, sobretudo quando Deus e a religião são banidos do Estado na forma da lei.

No livro De regimini principum (lib. I, cap. 15), o Aquinate afirma: “O juízo que se faz sobre o fim do homem deve fazer-se, igualmente, sobre o fim de toda a sociedade” (idem oportet esse iudicium de fine totius multitudinis et unus). Daí formular ele este maravilhoso princípio que o Nougué escolheu para pôr no pórtico da sua apresentação ao livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, do filósofo Jorge Martínez Barrera:

“(...) E, dado que o homem, ao viver segundo a virtude, se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina (...), é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”.

Comentando esta passagem, diz Calderón: “A argumentação de Santo Tomás é impecável. Dotado de natureza e tendo recebido a graça, o homem tem um único fim — não imanente, mas transcendente, não natural, mas sobrenatural —, e todos os bens de sua natureza devem estar subordinados ao movimento da graça, de modo que ele não busque a saúde, a riqueza, a ciência ou a virtude, etc., senão enquanto lhes servem para salvar a alma. Afinal, de que adianta ganhar o mundo e perder a alma? (cfme. Mt. XVI, 26)”.

Nas passagens citadas e em outras, em que faz uso de argumentos preciosos, Santo Tomás nos demonstra que a política é tão-somente um fim intermediário instrumental em relação ao fim último, e, ademais, deve estar dirigida pelo poder espiritual em todas as coisas em que lhe esteja naturalmente sujeita. Não custa aqui lembrar o que diz Leão XIII na Encíclica Immortale Dei, no tópico intitulado Princípios Fundamentais da Doutrina Católica. 44. Sobre a Autoridade da Igreja, pois adiante este trecho nos será útil: “Os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar nenhum dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo (grifo nosso!)”.

Neste ponto, vale destacar que o poder espiritual não pode lograr o seu fim sem a cooperação do secular, da mesma forma que a alma não consegue atualizar suas potências mais excelentes senão em conjunção com o corpo, que lhe serve de instrumento nos atos da inteligência e da vontade.

Estabelecidos estes princípios, é conveniente frisar ainda que a política não se restringe ao poder, mas abrange um grande conjunto de relações sociais a que hoje chamaríamos infrapolíticas.

(continua)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A cidade do capeta


Sidney Silveira

Numa sociedade que está indo espiritualmente para o buraco, é natural que uma pequeníssima parcela das pessoas vislumbre as causas fundamentais do caos reinante. O bem político, numa situação dessas, torna-se uma pura e simples impossibilidade ontológica, pois todas as estruturas sociais foram corroídas de forma tal, que na Pólis não há espaço para o bem e a verdade. Neste estágio da decadência, quanto mais firmemente descem ao abismo, mais as almas vão tendo a pletórica sensação de que nunca foram tão livres e desimpedidas em suas vontades. Este é o momento dramático em que a lei se torna uma absurdidade, uma afronta à moral natural e à reta razão. E não há mais volta, pois a metástase é completa.

Não apresento no parágrafo acima o Estado sem lei (a anomia platônica), mas uma situação muitíssimo pior: descrevo o Estado que se organizou com grande competência para a desonra moral, para o butim financeiro e fiscal, para a mentira política, para o controle das consciências, para o ataque sistemático e contínuo a qualquer resquício de sanidade no corpo social. Tal Estado, como não poderia deixar de ser, é o fiel retrato da situação espiritual da maior parte das pessoas que nele vivem, pois ele seria formalmente impossível numa estrutura política minimamente sadia, na qual os maus, os tolos, os homens devassos, os espertos, etc., teriam o acesso ao poder grandemente dificultado.

A princípio o declínio quase não é percebido, pois a marcha para a destruição da sociedade neste estágio inicial ou intermédio é lenta, e vem palmilhada por “conquistas” e “direitos” nunca assaz louvados pelos idiotas úteis. Mas, num momento como o atual, as evidências da dissolução sociopolítica vão tornando-se cada vez mais contundentes; porém já é tarde para reverter a situação. Façamos aqui uma analogia com o xadrez: o mau jogador só percebe a derrota quando a partida está claramente perdida, ao passo que o grande mestre já tinha previsto tudo com grande antecedência. No plano noético é mais ou menos isto o que ocorre: durante o declínio espiritual, o sujeito não tem a percepção de que está perdendo-se mais e mais; e não a tem, pelo menos, até chegar às raias do desespero.

A noção de autoridade natural também se perde, nesse Estado ínfero. E não apenas dos pais para com os filhos — e pensar que hoje no Brasil se legisla até sobre se é “crime” dar uma palmada educadora num filho levado! —, mas ela se dilui em todas as instâncias políticas e infrapolíticas: dos professores para com os alunos; dos jovens para com os idosos; dos homens em geral para com os religiosos, e destes entre si e, também, para com as coisas de Deus; etc.

Enfim, perdeu-se igualmente em tal Estado (liberal, por excelência) o vínculo fundamental entre a política e o fim último do homem: Deus. Na verdade, Deus será banido, na forma da lei, da sociedade política (é o Estado laico, defendido com sanha inaudita pelo catolicismo liberal e pelos liberais não católicos). Estamos, pois, na cidade do capeta, em que não se respeita a Deus e nem se Lhe presta o culto público devido, mas se fomentam politicamente as mais variadas formas de agressão, crimes e desrespeito.

P.S. Recomendo muitíssimo este trecho de uma aula do Nougué, no qual ele nos remete à “Cidade do Amor Próprio” de que fala Santo Agostinho no Civitate Dei.

P.S.2. Como se pode deduzir, o meu voto nas próximas eleições será nulo! E por pura, total e acachapante desesperança política. E digo-o igualmente pelo Nougué, que já me asseverou várias vezes que fará o mesmo que eu. Mas esta é conversa para um outro post.

As relações entre a inteligência e a vontade (VI): o pecado (1)

Sidney Silveira

O tomista R. Bernard, O.P., em artigo intitulado Le Peché, publicado em 1951, dizia que o pecado realiza-se numa atmosfera em que o espírito deblatera-se contra si mesmo. Não se trata, no caso, de uma simples ausência de pensamentos, ou da angustiosa coexistência de idéias contraditórias na alma, mas da falta dos verdadeiros e soberanos pensamentos que norteiam a vida humana e imprimem o seu caráter próprio. Em síntese, solicitado pelos apetites sensíveis, que são instrumentais em relação à vontade, o homem escolhe mal, quer dizer: escolhe contrariamente à regra da reta razão e à lei divina — da qual a lei natural é speculum.

É verdade que nem sempre a má-escolha decorrente de uma vontade corrompida provém dos apetites sensíveis; nos pecados mais graves, a vontade encontra-se em tal estado de hediondez que escolhe mal por simples vício espiritual. A inveja e a soberba são exemplos típicos desses pecados que se dão na parte superior da alma e não têm quase nenhum concurso com o corpo. A propósito, num espírito mais ou menos são, a inveja jamais poderá ser o impulso primeiro do apetite intelectivo, como quer-nos fazer crer bizarramente René Girard, com a “teoria” do desejo mimético, uma idéia dos infernos.

A psicologia do pecado refere-se, pois, à dinâmica relação entre os apetites naturais, sensitivos e intelectivos que há em nós. Faço a devida vênia ao fato de que me refiro aqui ao homem que já traz em si a mácula do pecado original, pois em Adão (como vários tomistas importantes sempre ensinaram, seguindo o Doutor Comum) o pecado aconteceu na esfera do espírito, dado que no chamado estado de inocência original todos os apetites sensitivos do homem estavam perfeitamente subordinados às potências superiores da alma. Em suma, não foi a apetecibilidade da maçã o que seduziu Adão, mas o querer ser como Deus. Portanto, tratou-se fundamentalmente de um pecado de soberba, e não de sensualidade.

Nascemos, pois, em pecado, com a liberdade diminuída e também com grande dificuldade para praticar o bem e conhecer a verdade. Decerto a vontade continua tendendo ao bem do espírito, mas os apetites sensitivos são atraídos de forma desordenada* aos seus fins imediatos. É claro que estou dando esta premissa por pressuposta, pois do contrário teríamos de mudar o foco do assunto; mas, como dizia Chesterton com o seu humor típico, a única coisa cientificamente comprovada de forma inequívoca é o pecado original, ou seja, essa tendência universal dos homens às mais inimagináveis barbaridades.

Pois bem: se o telos da inteligência é mesmo a verdade, e o da vontade é o bem, o pecado pressupõe uma deficiência nas relações entre a inteligência e vontade. Mas que deficiência seria esta? Seria anterior ao ato pecaminoso ou concomitante com ele? Seria voluntária ou involuntária? Tal deficiência seria já pecado? Todas estas questões foram abordadas por Santo Tomás em diferentes obras, e ele acabou encontrando uma deficiência anterior ao pecado atual no homem decaído — ou, noutros termos, potencial em relação ao pecado, embora ainda não seja, em si, pecaminosa.

O raciocínio parte da seguinte idéia: numa série de princípios subordinados entre si, a perfeição do princípio inferior depende da perfeição do princípio ativo superior (pois agens enim secundum agit per virtutem primi agentis). Ora, sendo o agente superior perfeito — e tome-se por perfeito o conceito de algo que, para ser o que é, não lhe falta nada —, o inferior também o será. Assim, se a vontade age sob a moção da inteligência quando esta lhe propõe o bem próprio, a ação será reta. Ocorre que a inteligência pode errar na consideração do bem apreendido, e a isto os melhores teólogos tomistas chamaram falso bem: o superestimar um bem em detrimento de outro mais excelente, em dado contexto. Neste caso, o pecado adviria porque a vontade seguiu a razão, como é natural suceder, mas seguiu-a naquilo em que ela simplesmente errava. Aqui a desordem do pecado é ex ignorantia, e não cum ignorantia: a primeira delas é a ignorância que não é pecado, mas induz a ele, e a segunda é a ignorância em si mesmo pecaminosa, relativa às coisas que o homem pode e deve saber.

Como se vê, a deficiência na inteligência (anterior à vontade que adere ao mal) é a ignorância involuntária, como nos leva a concluir o Aquinate em seu Comentário à Ética de Aristóteles, Livro III. Aqui, a ignorância é causa acidental do pecado. Por exemplo: o sujeito vê um líquido colorido e imagina que é um licor, mas se trata de um veneno. Toma-o ignorando a verdade, e se dá mal. Ele bebe o líquido simplesmente porque não sabe tratar-se de um veneno. Se soubesse, a beleza da cor não excitaria o apetite de beber, como diz o dono deste exemplo (o tomista português Celestino Pires, S.J.), no estupendo Inteligência e Pecado em S. Tomás de Aquino. Neste caso, a causa acidental indireta foi a ausência da regra da razão, coisa que a propósito não acontecia com Adão, cuja inteligência chegava muito mais perfeitamente à posse dos inteligíveis que a nossa; além do mais, possuía ele o dom da ciência infusa com que Deus o cumulou.

(continua)

* A ordem é a disposição das coisas aos seus fins próprios, e a desordem, obviamente, a perda dessa orientação teleológica. No caso do homem que já nasce com a mancha do pecado original, os apetites sensitivos não mais se ordenam à realização do optimum do espírito: conhecer a verdade e querer o bem. Logram, portanto, os seus fins imediatos sem nenhuma ordem ao fim último.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"TV" Contra Impugnantes: aspectos do pensamento de Santo Agostinho

Sidney Silveira
Vejam-se, neste trecho de aula do meu querido amigo e companheiro de blog Carlos Nougué, alguns aspectos do pensamento de Santo Agostinho.

As relações entre a inteligência e a vontade (V)

Sidney Silveira
Pelo que foi dito até aqui nos textos desta série, depreende-se que a inteligência move a vontade primordialmente, fornecendo a ela o seu insumo fundamental, a ratio de bem. Em suma, o que o querer apetece em cada um dos seus atos é a forma intelectiva de um bem. Ademais, a superioridade absoluta da inteligência provém, entre vários outros fatores, da precedência ontológica do seu objeto formal próprio (a ratio entis) em relação ao da vontade (a ratio boni).

Caminhemos com um exemplo: estudiosos reúnem-se toda semana para aprender filosofia tomista, e, sem dúvida, cada uma das pessoas do grupo vai às aulas porque quer, e, neste caso, o império da vontade fez valer a sua força, movendo as outras potências da alma à consecução do fim (ir efetivamente às aulas); mas só o fez porque a inteligência já havia informado que aprender filosofia tomista é bom em sentido geral (in comuni).

Vejamos o que diz o Aquinate, em dois textos de uma mesma questão da Suma:

“Pode-se considerar a inteligência sob dois aspectos: quando conhece o ente e a verdade universal ou enquanto potência particular aplicada a determinado ato. Ora, também a vontade admite essa dupla consideração: em razão da universalidade do seu objeto, por apetecer o bem em sentido geral (bono in comuni) ou enquanto potência da alma com determinada atividade. Se, pois, comparamos a inteligência à vontade em razão da universalidade de seus respectivos objetos, a inteligência é, em sentido absoluto, mais excelente e nobre que a vontade (intellectus est simpliciter altior et nobilior voluntate). Isto porque, sob a razão de ente e de verdade, o que a inteligência apreende contém a própria vontade, com o seu ato e o seu objeto próprios. Por isso a inteligência conhece a vontade, seu ato e seu objeto da mesma forma como conhece os demais objetos inteligíveis particulares”. (Suma Teológica, I, q. 83, a.4, ad.1.)

E por outra:

“Há duas maneiras de causar o movimento. Uma é ao modo de fim, e assim dizemos que o fim move o agente. Deste modo o entendimento move a vontade, pois o bem conhecido é o objeto desta. E move-a à maneira de fim. Outro modo é como causa eficiente (...). Desta maneira a vontade move o entendimento e todas as demais potências da alma (...). A razão disto é porque em toda série ordenada de potências ativas, a que se dirige ao mais universal move as demais que se referem a fins particulares, o que se observa tanto na ordem natural, como na ordem política . (...) Pois muito bem, o objeto da vontade é o bem e o fim em sentido amplo (in comuni), ao passo que cada uma das potências se ordena ao fim particular que lhe é próprio e conveniente, como por exemplo a vista [se ordena] à percepção das cores [e das formas, etc.] e a inteligência, ao conhecimento da verdade. Portanto, a vontade move, ao modo de causa eficiente, todas as potências da alma a executar os seus respectivos atos, exceptuando-se as potências vegetativas, que não estão submetidas ao nosso arbítrio”. (Suma Teológica, I, q. 83, a.4, resp.)

Nestas passagens observa-se o absoluto equilíbrio de Santo Tomás, que evita os escolhos do voluntarismo — que predominará na filosofia ocidental, após os desvios de Duns Scot — e do intelectualismo, de que alguns maus entendendores o acusaram. Em resumo: a inteligência é superior à vontade em sentido absoluto (simpliticer), enquanto a vontade pode sê-lo em sentido relativo (secundum quid); mas, mesmo neste último caso, a vontade depende da inteligência para que o seu ato formal próprio (o querer) se realize, pois qualquer objeto, para ser apetecido, precisa antes ser conhecido.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"TV" Contra Impugnantes: A Mãe do Salvador


Sidney Silveira
Disponibilizo neste link o trecho do final de uma aula em que menciono um livro estupendo do Padre Garrigou: A Mãe do Salvador. Como devoto de Nossa Senhora, tão importante em minha conversão, o mínimo que faço é não apenas render-lhe graças, mas também, sempre que possível, reproduzir algo do que grandes teólogos e Doutores disseram dela.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Uma indagação do Papa Bento XVI

Sidney Silveira
O Papa Bento XVI acaba de declarar o seguinte, durante a sua viagem diplomática ao Reino Unido (a propósito, cada vez mais as viagens pontifícias restringem-se a ser mera diplomacia de Estado, não tocando em questões de fé senão acidentalmente, para não ferir ecumênicas susceptibilidades):

— É difícil entender como essa perversão do ministério sacerdotal foi possível, disse o Pontífice.

Difícil entender? Vejamos.

  • > A Igreja passa a assimilar, ao longo de décadas, todas as mais díspares filosofias modernas contrárias à fé, inclusive ensinando-as nos seminários;
  • > A Igreja, na prática, abole os anátemas, ou melhor: reserva alguns para os que quiseram manter-se fiéis à Tradição;
  • > A Igreja não apenas fecha os olhos para as heresias, mas muitas vezes dá a elas todo o apoio, no seio da própria Hierarquia;
  • > A Igreja apóia o ecumenismo, desde sempre condenado;
  • > A Igreja autoproclama-se “subsistente” entre outras igrejolas e seitas pseudocristãs ou cismáticas, ou seja: a Igreja Católica não mais se considera a Igreja de Cristo, nem a verdadeira religião, a Arca da Salvação;
  • > A Igreja faz com que o dogma extra Ecclesiam nulla salus vire uma simples miragem histórica;
  • > A Igreja torna-se laica em política, jogando no lixo a milenar doutrina dos dois gládios e aceitando a tese, de cariz maçônico, da separação entre as ordens material e espiritual (entre o Estado e a Igreja);
  • > A Igreja muda a doutrina da liturgia, transformando a Missa em algo muito semelhante a um culto protestante;
  • > A Igreja estimula o pluralismo teológico, com a criação da incrível Comissão Teológica Internacional – CTI, cujos documentos são um primor de dubiedade em favor de teses modernistas;
  • > A Igreja abole formalmente o Index;
  • > A Igreja permite que os teólogos passem a questionar as verdades da fé e do Magistério: para uns o limbo não existe; para outros o inferno está vazio, etc. Em suma, o teólogo modernista não mais parte do intocável dado de fé, mas das suas solitárias especulações de gabinete, sob o aplauso das autoridades, sobretudo quando inventa algo novo;
  • > A Igreja muda a doutrina sobre os fins do matrimônio, abrindo flancos para o sensualismo e para a deturpação dos usos do matrimônio;
  • > A Igreja abole alguns estágios fundamentais na ordenação sacerdotal;
  • > A Igreja permite que, em número até então inimaginável, jovens claramente sem vocação adentrem os seminários;
  • > A Igreja beatifica teólogos que estavam proscritos formalmente — e por razões gravíssimas — como por exemplo o italiano Antonio Rosmini, ontologista incluído no Index e condenado por três Papas;
  • > A Igreja muda o Código de Direito Canônico em sutilezas que, noutro texto, se tivermos tempo, vamos enumerar no Contra Impugnantes;
  • > A Igreja muda o Catecismo, ou melhor: aprova um Catecismo que mais parece um denso tratado de psicologia fenomenológica a ser entendido por meia dúzia de teólogos e filósofos, e não um documento simples, dirigido a todos os fiéis — mesmo os mais simples e indoutos —, como era o Catecismo de São Pio X;
  • > A Igreja abole as mais importantes etapas dos processos de canonização, tornando a santidade algo ordinário (o Papa João Paulo II, sozinho, canonizou mais santos do que nada menos que 500 anos de Papas juntos!!). De dom extraordinário da graça, a santidade torna-se ordinária;
  • > A Igreja deixa a Missa Tridentina proscrita, usando de medidas disciplinares rigorosas para com os recalcitrantes tradicionalistas, ao passo que estimula os mais absurdos experimentalismos litúrgicos — seja formalmente, pelos Bispos, seja por pura e simples omissão de todos os níveis da Hierarquia com relação às barbaridades mais inacreditáveis;
  • > A Igreja permite a comunhão na mão, sob pretexto de repetir o cristianismo primitivo (a isto voltaremos noutro texto); com isto perde-se a noção de que as sagradas espécies só podem ser tocadas por mãos ordenadas, etc.;
  • > A Igreja aprova ou tolera movimentos como a Teologia da Libertação (nas décadas de 60 e 70) e a Canção Nova, recentemente. Não é preciso dizer muito sobre isso;
  • > A Igreja abandona a segurança da teologia de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum. E hoje, nos seminários, ensina-se Kant, Husserl, Heidegger e muitíssimos outros filósofos de forma absolutamente acrítica, jogando na alma dos futuros padres a falsa idéia de que estas filosofias podem ser assimiladas pela Igreja sem nenhum problema;
  • > A Igreja permite e/ou estimula absurdos como a Confissão comunitária, que, além de derrogatória de um dado importante da fé, retira da alma dos fiéis a necessidade da confissão individual, do ato de contrição, etc.
  • > A Igreja abre flanco para teses totalmente contrárias à fé, como a evolução dos Dogmas e o poligenismo (ou seja, a idéia de que não houve Adão e Eva, mas protoparentes, o que acaba com a doutrina do Pecado Original);
  • > A Igreja estimula o fim do uso da batina, ou melhor: estimula que os padres se vistam mundanamente;
  • > Mil etecéteras!!! Isto foi apenas o que me lembrei em cinco minutos....

Será que é mesmo difícil entender como o ministério sacerdotal foi pervertido e chegou a tal ponto deplorável?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

As relações entre a inteligência e a vontade (IV)

Sidney Silveira
É verdade estelar da antropologia filosófica de Santo Tomás que as duas potências superiores da alma (a inteligência e a vontade) interagem continuamente nesta relação do homem com as coisas que o circundam. A inteligência — que é, radicalmente,
potência para todos os inteligíveis — subministra à vontade a ratio boni, ou seja, a “razão de bem”* que será o insumo para a vontade laborar. Literalmente falando, quer-se algo porque é bom, ou, noutras palavras: está implicado em todo querer, em toda e qualquer busca intencional do fim desejado, um juízo da razão prática. Por isso, pode-se afirmar que a vontade é movida pela forma intelectiva de um bem.

Mas o que é, propriamente, a vontade? Que ela para o Aquinate seja o apetite intelectivo do bem, já sabemos. Mas o que quererá dizer o grande Doutor da Igreja com isto? Pois bem, por apetite entenda-se a inclinação natural da potência ao ato — ou a um conjunto de atos. E Santo Tomás identifica três tipos de apetite:

> natural, que é a tendência radicada na forma do ente para atualizar certas potências (por ex., é natural o apetite da pedra para a inércia, ou seja, não estando ela submetida a forças exógenas, ficar parada);
> sensitivo, que, no homem, é dividido em concupiscível e irascível. Em palavras simples, o concupiscível é o deleite ou o desconforto decorrentes da captação, pela sensibilidade (sensualitas), de um dado sensível. Assim, um cheiro agradável acarreta certo prazer imediato, e o mau cheiro, aversão. O apetite irascível, por sua vez, é a busca de um bem árduo que se deseja, ou a fuga de um mal árduo que se queira evitar. Assim, a esperança é um movimento do apetite irascível, porque possui, entre outras, as seguintes características: 1- tem-se esperança sempre de algo difícil, e não do que está à mão e pode ser realizado de imediato, é claro. Assim, eu não espero caminhar, bocejar, etc., mas simplesmente caminho e bocejo; 2- esse algo árduo que se espera é um bem, pois ninguém espera o mal; 3- e é futuro, pois o presente não se espera; etc.
> e intelectivo, que é o movimento da vontade na direção da forma de um bem. Em resumo: a inteligência fornece à vontade a ratio boni universal. Sem esse conhecimento primevo, não se pode querer nada, porque: 1- só se deseja o que se conhece de alguma forma, pois o absolutamente desconhecido seria, por conseguinte, impossível de ser apetecido; 2- esse algo que se conhece é desejado justamente por considerar-se (acertada ou erroneamente) um bem. Voltaremos a isto depois.

De acordo com o Aquinate, há dois atos próprios na vontade:

a) o elicitus (extraído de sua potência), que é o querer;
b) e o imperatus (a moção de outras potências da alma para executar o que a vontade quer. Assim, se quero fazer esportes agora, as potências motrizes do meu corpo são chamadas a atualizar os seus atos próprios, para cumprir o império da vontade).

Vale dizer que o próprio (um dos cinco predicáveis, lembremos) mais próximo da essência da vontade é o querer. Ou seja: a vontade opera, priomordialmente, pelo querer — que se materializa na escolha deste ou daquele bem. Trata-se da instância inexpugnável da liberdade humana, que não pode ser coagida nem mesmo por Deus, porque Deus pode mover necessariamente a vontade humana a querer o que Ele quer que ela queira, apresentando-lhe um bem de tal ordem que é impossível não desejá-lo com todas as forças da alma, mas não pode coagi-la a querer o que não quer. Essa premoção divina da vontade humana implica necessidade, sim, mas não coação. Isto porque o voluntário é, por definição, o não coagido.

Desses dois atos — o elicitus e o imperatus — só o segundo pode ser coagido. Por exemplo: posso ser impedido fisicamente de praticar o meu esporte predileto, mas não posso ser coagido a não querer praticá-lo. Portanto, o ato primeiro da vontade, o elicitus, jamais pode ser coagido, pois o querer é imaterial e, portanto, não pode ser obrigado por nenhuma força física ou espiritual.

A vontade pode ser, com certeza, induzida ao erro, seduzida pelo demônio, etc., mas jamais coagida.
P.S. Veremos em outro texto de que forma a vontade move todas as outras potências da alma (inclusive a inteligência), e como ela é devedora desta para a execução dos seus atos.

* Vale remeter-nos ao bem como um dos
transcendentais do ser.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (IV)



Sidney Silveira

A tentativa de prova pela tendência natural do homem à felicidade

Gallus M. Manser, um dos grandes tomistas do século XX, traz uma bela refutação, em seu livro A Essência do Tomismo, dos argumentos em favor da prova da existência de Deus a partir do anelo de felicidade que há no coração do homem. Enumeremos duas dessas teses em forma de silogismo, para torná-las bem claras:

1- Todo anelo natural supõe a existência real da coisa anelada. Ora, o homem tem o anelo natural de unir-se a Deus, onde está a sua felicidade e o seu fim próprio. Logo, Deus existe.
2- Deus é o objeto formal especificante tanto da inteligência quanto da vontade. Pois muito bem: toda potência supõe a realidade do objeto formal que a especifica. Logo, Deus existe.

O primeiro desses argumentos supõe o axioma “na natureza nada se faz em vão” (natura non agit frustra, ou então natura nihil facit frustra). Ocorre que esta máxima se aplica às coisas naturais, e Deus está absolutamente acima de todas as naturezas. Pergunta-se, então, o grande metafísico: pode porventura afirmar-se que tudo na natureza — no mundo, enfim — é proporcional ao fim último? A resposta é “não”, embora com ela não se invalide o axioma natura nihil facit frustra, pois este tem valor universal relativo às coisas naturais, até mesmo quando individualmente a finalidade se frustra, como é o caso das disteleologias que observamos nas monstruosidades em alguns indivíduos: um homem nasce sem a perna; outro sem o braço; um bebê é anencefálico, etc. Não obstante, tais realidades materializadas em indivíduos não frustram o fim da espécie humana.

Manser mostra o seu engenho filosófico ao referir-se a essas monstruosidades que frustram a natureza em alguns indivíduos, e, com isto, parecem invalidar o princípio acima aludido. Aponta ele simplesmente o seguinte: na natureza também existe o casual, o acidental que só pode ser suficientemente explicado à luz de um princípio superior. No caso de que se trata, o tomista dominicano nos remete ao fato de que tais disteleologias, tais finalidades malogradas, se explicam por inserir-se no contexto da Providência divina — que permite o mal nos indivíduos em ordem ao bem maior das espécies (não entro, por ora, no tema do mal no homem). E, com grande argúcia, ele nos lembra ainda que sempre, ao aplicar este princípio, Santo Tomás supõe como já demonstrada a existência de Deus. Daí ser absolutamente improcedente falar em “prova” da existência de Deus a partir deste princípio. Pode até ser um argumento razoável, mas jamais probante.

Já com relação ao segundo silogismo acima citado, Manser (a meu ver muito acertadamente, e contra uma série de respeitados tomistas: Garrigou-Lagrange, Gredt, Lehmen-Beck, etc) nega a premissa maior. Ou seja: não é válido dizer que Deus é o objeto formal especificante tanto da inteligência como da vontade. Vejamos o argumento.

É verdade que toda potência está ordenada, por necessidade natural, ao seu objeto formal especificante. E justamente aqui entra o argumento de outros tomistas em favor da prova da existência de Deus a partir das premissas deste silogismo: sendo Deus o objeto formal especificante da inteligência e da vontade, se Ele não existisse, não existiria a vontade nem a inteligência. Mas é evidente que a vontade e a inteligência existem; logo, Deus existe.

A isto responde Manser: o que o homem quer por necessidade natural não é Deus, mas a felicidade em geral, in comuni (e nisto reproduz o que diz o Aquinate em De Veritate, XI, q. 2). A Deus o homem elege livremente, e não por necessidade natural. Em suma, pode-se dizer que o homem apetece a Deus indiretamente, a partir do bem em sentido geral. Portanto, Deus não pode ser o objeto formal especificante nem da vontade, e nem inteligência — já que a vontade é apetite intelectivo do bem. Ademais, não sendo Deus o primeiro que se conhece aqui na terra pelo homem, tampouco será Ele o primeiro que se deseja naturalmente.

Em resumo, se a felicidade em geral, ou seja, o boni in comuni, é o objeto especificante da vontade humana como potência, torna-se inadimissível admitir um segundo objeto formal especificante para a mesma vontade. Diz Manser:

“Se considerarmos a vontade humana unicamente em sua atividade terrena (in ordine actus eliciti), nem a vontade tende naturalmente a Deus em primeiro lugar, nem muito menos é Deus o objeto formal da vontade na ordem natural”.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Missa para gays com anuência do Vaticano?

Sidney Silveira
Se o que se diz neste link é verdade verdadeira — como parece ser —, a apostasia intra Ecclesiam está em vias de fechar o cerco a qualquer resquício de catolicidade. As portas do inferno avançam e só nos resta o fiel apego à promessa do Cristo de que não prevalecerão...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Realismo moderado

Sidney Silveira
Em seu comentário à Metafísica aristotélica (In XII lib. Metaph. L.III, 1.1.), Santo Tomás afirma:

“O filósofo deve considerar todas as dificuldades, pois, como lhe cabe investigar a verdade em toda a sua amplitude, também lhe compete confrontar-se com todas as aporias. Do contrário, deve comparar-se a quem anda sem saber aonde vai”.

Comparar-se a quem anda sem saber aonde vai. Sábias palavras do Santo! Certamente, ali o Aquinate não presume que a averiguação da verdade seja extensivamente completa — pois ele parte da pressuposição de que a verdade dos entes é inesgotável na medida em que participam da inesgotabilidade do Ser divino. Em síntese, quer dizer Santo Tomás em seu comentário a Aristóteles o seguinte: o filósofo deve pôr na investigação da verdade todo o seu ímpeto e todos os seus recursos. Decompor as aporias em suas premissas fundamentais, e não descansar enquanto o erro não revelar a sua face oculta. Tal atitude distingue o verdadeiro filósofo.

Cabe dizer que tal investigação nada tem de quixotesca, pois advém da consciência de que a inteligência humana é, primordialmente, a potência para todos os inteligíveis (como se diz
nesta aula). É claro que um só homem não pode atualizar todos os inteligíveis da ordem do ser, pois, para tanto, ser-lhe-ia necessário possuir um intelecto infinitamente perfeito. Não! Em Santo Tomás não há esse racionalismo idealista, essa idéia de que a razão humana pode, por um método qualquer, resolver todos os problemas...
É uma posição equilibrada:. nem a quimera racionalista, de um lado, nem a boçalidade pungente de quem não quer ver o óbvio, de outro. Realismo moderado.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Uma notícia: coleção de DVDs tomistas

Sidney Silveira
Até o início de outubro, começaremos a apresentar uma série de vídeos de aulas à qual demos o nome de A Síntese Tomista, em homenagem ao grande Garrigou-Lagrange, autor do hoje clássico La Synthèse Thomiste — obra de leitura obrigatória para todo estudioso da obra do Aquinate. É mais uma tentativa de viabilizar tanto o projeto da editora Sétimo Selo, como o do Instituto Angelicum. Talvez até não consigamos lograr tal intento, mas ainda não nos demos por vencidos...

As primeiras aulas serão compilações temáticas a partir de vídeos gravados em diferentes cursos (alguns trechos deles estão no Youtube, no Canal Contra Impugnantes). Ou seja: num mesmo DVD haverá trechos de aulas distintas. Quero aproveitar da melhor forma o material de que já disponho. Depois, num segundo momento, entrarão os vídeos de novas aulas. A propósito, não se espere uma superprodução técnica ou coisa que o valha, pois não há recursos fnanceiros para tal, mas sim o esforço sincero por produzir um conteúdo digno da obra de Santo Tomás e de sua importância para o Magistério da Igreja.

Os DVDs custarão R$ 60,00 e a venda será direta, de acordo com informações que postarei quando aproximar-se o momento. De toda forma, peço a todos os amigos católicos amantes da doutrina tradicional e interessados na obra de Santo Tomás que comecem a divulgar desde já este projeto. Façam circular esta informação para o maior número possível de pessoas.

Assim como no caso da editora, esta iniciativa será custeada com recursos próprios (pois não temos financiadores), razão pela qual dependeremos da venda para fazer o projeto vingar.

P.S. Agradeço imensamente aos amigos que compraram livros pela loja virtual da Sétimo Selo no mês passado. Isto possibilitou-nos reimprimir mais exemplares dos livros Sobre o Mal, de Santo Tomás (que estava esgotado) e A Candeia Debaixo do Alqueire, do Pde. Calderón. Com relação a este último, como sei que a nova tiragem deverá esgotar-se logo, peço aos interessados em adquiri-los que enviem email de solicitação do exemplar para rosangela@edsetimoselo.com.br nos próximos dias, para garantir a compra.
P.S.2. Reitero: apenas com este apoio na compra dos produtos poderemos seguir em frente com a editora num ritmo que não seja o da velocidade contemplativa das vacas 'sagradas' da Índia (perdoem-me o chiste!), mas no ritmo que o projeto merece. Para ter-se idéia, há 5 livros prontos para a impressão, mas que esperam a entrada de recursos — os quais só poderão mesmo vir das vendas ou de um improvável mecenas que, providencialmente, aparecesse...