segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Liberalismo e “libertarismo”: a tragédia consumada

Sidney Silveira
No instigante artigo Liberalisme, victime de son libertarisme — cujas principais conclusões enxertei como nota de rodapé no maravilhoso prefácio do Nougué ao livro da Sétimo Selo “A Política em Aristóteles e Santo Tomás” —, François Lemoine faz um conjunto de observações argutíssimas sobre a hidra liberal de mil cabeças, que bem poderia ser por nós chamada de “legião”.

Mostra Lemoine que, com o liberalismo, estamos em presença de:

a) um pragmatismo sem dogmatismo (ou seja: o “fazer” sem um “dever”);
b) uma praxeologia sem axiologia (Von Mises é um belo exemplo);
c) um imanentismo relativista e subjetivista sem “ethos” normativo, objetivo e transcendente;
d) um conjunto de práticas eficazes e “oportunidades” não vinculadas a um conjunto de princípios universais.

Em suma, trata-se de uma espécie de inversão em que os meios foram colocados no lugar dos fins. Ou melhor: aboliram-se, pura e simplesmente, os fins (eu mesmo já mencionei aqui um artigo do insuspeito liberal brasileiro José Guilherme Merquior, no qual ele afirma, com propriedade, que o liberalismo só foi possível, historicamente, graças à perda ou destruição da ética cristã do Sumo Bem). Graças ao fenômeno que o próprio liberal Merquior chama de individualismo moderno.

Essa revolta contra os princípios e os fins da vida humana, típica do liberalismo, pode ser vista em todos os seus ideólogos, consciente ou inconscientemente. Em todos, o indivíduo é posto como o centro e o fim da vida social, política e econômica. E se, na ética clássica e medieval, a parte se ordenava ao todo e o indivíduo servia ao bem comum, com o liberalismo (que é justamente a falta de ethos posta em prática) as coisas seguem a mão inversa: não existe bem comum e tudo deve partir do indivíduo e convergir a ele. É óbvio que, para tal ideologia se tornar vigente, um conjunto de promessas sedutoras foi feito, como aponta Lemoine:

1- Do humanismo, que privilegiaria a autonomia do homem em relação a tudo — a começar por Deus e pela religião;
2- De eficácia econômica, constatada na prática com o avanço industrial, científico e tecnológico;
3- Do fim das repressões contra o indivíduo, na medida em que o liberalismo, em tese, não produz mártires nem perseguidos, mas é a construção da sociedade plural em que todas as opiniões devem ser, aprioristicamente, respeitadas (a isso alguns hoje chamam de “base do diálogo”);
4- De bem-estar e de prazer propiciados pela posse dos bens materiais e pela liberdade de ação e de expressão livre do pensamento.

Os quatro tópicos acima representam a visão de mundo humanista (1º), economicista (2º), libertária (3º) e hedonista (4º). Em todas eles, há uma contraposição aos valores milenarmente propagados pela Cristandade:

1º) humanismo individualista contra a idéia de que Deus é o fim e princípio da vida humana, e por isso a religião é o primeiro dever de justiça dos homens (e das sociedades!) para com o Criador;
2º) economicismo materialista contra a idéia de que os avanços materiais não são o fim da vida humana e jamais devem estar desvinculados dos bens da alma (como bem dizia Leão XIII), razão pela qual não se deve produzir de tudo para atender às demandas, mas produzir de acordo com as reais necessidades do homem (que não são apenas materiais, mas sobretudo espirituais, morais, estéticas, etc.). Em outros artigos, já mostramos que, ao contrário do que imaginam os liberais, nem toda demanda é necessidade, embora toda necessidade seja uma demanda;
3º) libertarismo igualitarista, que prega o direito de TODOS os homens à livre expressão de idéias, contra a visão milenar da Igreja de que certas idéias — por nocivas ao homem (pelo perigo para a sua alma) e à sociedade (pelo risco da perda dos valores fundamentais) — não devem ter curso livre. A propósito, noutro artigo, falaremos dos benefícios da censura, apontando, entre outras coisas, que uma sociedade sem nenhum tipo de censura está fadada à autodestruição, na medida em que nada, nela, pode ser considerado como censurável;
4º) hedonismo imoralista, contra a visão de que muitos prazeres não são lícitos por estarem desvinculados dos deveres fundamentais do homem para consigo mesmo, com o próximo e com Deus (por exemplo: o de um serial killer que se compraz matando criancinhas; o de uma mãe que abandona os filhos para fugir com o amante que lhe dá prazer sexual, etc.). Com o hedonismo, nenhuma moral, nenhuma ordem, nenhuma sociedade e nenhum valor fundamental podem ser construídos.

Todos esses frutos terríveis do liberalismo ganharam o mundo. E, portanto, as conseqüências do liberalismo apontadas por Lemoine no referido artigo não são mais meras possibilidades, mas fatos concretos para os quais não há humana solução, pois o câncer em estado terminal já é uma metástase que abrange todos os âmbitos — sobretudo nas sociedades do Ocidente:

1. Degradação dos fundamentos da religião;
2. Indução dos indivíduos a se relacionar com a cultura não mais para “receber e transmitir”, e sim para “produzir e consumir”;
3. Tendência a que os crentes fabriquem, subjetivamente, os seus próprios sistemas de crenças, já que nenhuma autoridade, na sociedade liberal, tem o direito de “invadir” as suas consciências individuais;
4. Diabolização de toda moral universalista, que não pode ter lugar nas sociedades em que os indivíduos fazem de si mesmos o centro dos valores “objetivos”;
5. Instauração de um ambiente hedonista de crescente busca da satisfação pessoal, no qual o dever é tido como uma intromissão indevida, fonte de insatisfações de todo tipo;
6. Sensualismo feérico, ou seja: o prazer e os meios de adquiri-lo se multiplicam extraordinariamente, fazendo com que a sociedade, cada vez mais, “só pense naquilo” — como dizia uma famosa personagem da Escolinha do Professor Raimundo, que reduzia tudo a sexo;
7. Tecnicismo exacerbado. Ou seja: a técnica contraposta ao valor das pessoas.

Para Lemoine, o liberalismo é em si um impasse universal. E, a tudo o que ele aduz para demonstrá-lo, nós acrescentamos o seguinte: ele é fonte da dissolução da ordem social, é a fonte da multiplicação artificial dos “direitos” dos indivíduos (a ponto de tornar os corpus legislativos dos países uma barafunda de leis entre si contraditórias). Tanto ele como o seu fruto histórico — o comunismo, conseqüência direta do liberalismo do século XIX — hão de levar o mundo, provavelmente ainda no alvorecer deste século, à conflagração de uma crise global da qual não imaginamos o que sobrará. Se sobrar.

Liberalismo e comunismo (que é o seu outro lado da moeda, a sua contrafação piorada) são, pois, as duas formas modernas de afastar o homem de Deus. Duas formas de colocar o homem... no lugar de Deus!