sexta-feira, 29 de maio de 2009

Dionísio, Pseudo Areopagita


Raffaello Sanzio (São Paulo prega em Atenas)


Sidney Silveira
Falou-se noutro texto de quanto, durante toda a era Patrística, abundavam as admoestações contra a filosofia grega, particularmente as advertências para o perigo de assimilação, por parte dos cristãos, de elementos espúrios à fé. O exemplo para esta postura era buscado na Boa Nova trazida pelo Apóstolo aos escandalizados gregos (cfme. At. XVII, 23-29): a sabedoria dos homens havia sido suplantada por outra, divinamente revelada, que doravante seria o norte para todo e qualquer conhecimento humano, especulativo ou prático. Na culta Atenas de então, em meio aos juízes do Areópago — conselho de membros da aristocracia ateniense em cujo recinto havia várias imagens dos deuses pagãos —, Paulo anuncia eloqüentemente o ignoto Deus que veio ao mundo para pôr fim às humanas superstições e à adoração de falsos ídolos. A partir de então, não mais seria lícito aos homens procurar, fora da Revelação, a solução para os seus dilemas fundamentais, para os dramas que configuram a sua condição.

Neste momento decisivo para a história humana, como aconteceria tantas e tantas vezes ao longo dos séculos, ao simples anúncio da Palavra revelada distintos grupos se formaram: uma grande parte de zombeteiros; outra de pessoas céticas racionalistas, para quem a Cruz é simplesmente uma loucura; outra de gente que, como o rico do Evangelho (Lc. XVIII, 23), se sentiu atraída pela novidade, mas cujo apego ao mundo ou à carne impediu de abraçar a radicalidade da fé; e uma minoria que, com o auxílio da Graça, se abriu ao influxo benemerente da Palavra divina e produziu frutos de cem por um, de sessenta por um e de trinta por um (Mt. XIII, 8). Dentre estes estava Dionísio, depois cognominado “Areopagita”, um juiz que se converteu ali, no exato momento em que Paulo era avaliado por uma assembléia de pessoas atônitas a quem com firmeza dizia anunciar o Deus que a todos “deu a vida, o movimento e o ser” (At. XVII, 28).

Muitos anos depois — hoje se sabe que, provavelmente, no século V —, um homem que durante centenas de anos se acreditou ser o grego convertido por São Paulo, por razões que não cabe apontar neste breve texto, escreveu quatro livrinhos que influenciariam grandemente teólogos e filósofos cristãos: “Sobre a Hierarquia Celeste”; “Sobre a Hierarquia Eclesiástica”; “Sobre os Nomes Divinos”; e “Sobre a Teologia Mística”. Desde quando a crítica histórico-filológica apontou — já nos albores do século XIX — que essa obra não poderia ter sido escrita por São Dionísio Mártir, esse autor anônimo (um notável místico!) passou a ser conhecido pelos estudiosos como Dionísio Pseudo Areopagita.

Indico entusiasticamente aos leitores do Contra Impugnantes a leitura destas quatro pequenas obras de grande valor, que representam uma das maiores influências de um autor no decorrer dos séculos — e de forma quase subterrânea, por assim dizer. Eis alguns teólogos, Santos e filósofos que beberam desta fonte, com maior ou menor proveito:

São Máximo, o Confessor, autor das estupendas Centúrias da Caridade; Escoto Eurígena; Pedro Lombardo; ao que tudo indica, São Bernardo de Claraval; o notável Hugo de São Vítor; Santo Antônio de Lisboa; o grande cientista Robert Grosseteste; São Boaventura; Santo Alberto Magno; Santo Tomás de Aquino (em cuja obra, para se ter idéia da influência dionisiana, há 1.702 menções ao Areopagita); Nicolau de Cusa, cuja Douta Ignorância foi grandemente influenciada por nosso autor; toda a tradição dos cartuxos da Idade Média; Marsilio Ficino, já no Renascimento; São Thomas More; São João da Cruz, cuja Subida do Monte Carmelo tem algumas similitudes impressionantes com Sobre a Hierarquia Celeste e com Sobre os Nomes Divinos; etc.

Deixo, como tira-gosto, um trecho da Teologia Mística do Areopagita:

“Agora que escalamos desde o solo mais baixo até os mais altos cumes, [sabemos que] quanto mais subimos, mais escassas se tornam as palavras. Ao chegarmos ao cume, reina o mais completo silêncio. Estamos de todo unidos ao Inefável”. (Teologia Mística, III, 1033C)

Em tempo: Noutra ocasião, escreverei um pouco sobre a estrutura da Suma Teológica de Santo Tomás: do exitus e reditus. Ela é, segundo autores abalizados, de direta influência dionisiana. E também falarei um pouco sobre duas dessas obras do Pseudo Areopagita.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

“A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE”, do Padre Calderón, e novas “Jornadas de Humanidades” em La Reja

Carlos Nougué
I)
Uma das razões por que tive de deixar de escrever temporariamente para o Contra Impugnantes foi o estar ocupado com a tradução de A Candeia Debaixo do Alqueire, do Padre Álvaro Calderón, da Fraternidade São Pio X. E, com efeito, o livro será lançado em cerca de 20 dias pelo nosso Angelicum — Instituto de Filosofia e de Estudos Tomistas; e, efetivamente, foi para mim um privilégio poder traduzir esta obra magna, não só porque o tradutor é sempre, de fato, um leitor privilegiado, mas porque A Candeia... é, no âmbito da teologia, uma das obras mais importantes (se não a mais importante) dos últimos, digamos, 50 anos. E por quê?

São vários os motivos. Antes de tudo, o fato mesmo de o Padre Calderón ser não apenas um professor de seminário (e seminário tradicionalista), e não apenas um tomista, mas um Auxiliar de Santo Tomás, um verdadeiro continuador do Aquinate. Não apenas um comentarista. Depois, porque neste A Candeia... o Padre Calderón faz reviver, em alto estilo e com impecável competência, o método escolástico da disputatio, tão desenvolvido pelo mesmo Santo Tomás. Como verão os leitores, os artigos da disputatio se compõem, essencialmente, de quatro partes:

1) os argumentos ou objeções dos adversários da tese esgrimida no artigo, as quais deverão ser expostas de modo perfeito, não raro de modo superior à exposição dos próprios adversários, sendo dupla a razão para tal: honestidade e clareza intelectual; sobretudo o fato de que, assim procedendo, se está obrigado a dar uma resposta às objeções ainda mais perfeita, definitiva, cabal;

2) argumento(s) (de terceiros) em sentido contrário ao das objeções, o(s) qual(is) já como que encaminha(m) para a resposta;

3) esta mesma resposta, ou corpus, no qual se resolve globalmente a questão que suscita o artigo; é a parte principal;

4) as respostas às objeções, uma a uma, detalhadamente.

Mas A Candeia... é obra tão suma como dizemos sobretudo porque resolve, de modo definitivo, cabal, inequívoco, a questão central desta disputatio e, diga-se, do catolicismo nos últimos 45 anos: Qual o grau de autoridade do magistério conciliar, ou seja, o magistério oriundo do Concílio Vaticano II, como, aliás, diz o próprio conjunto do título da obra: A Candeia Debaixo do Alqueire – Questão Disputada sobre a autoridade doutrinal do magistério eclesiástico a partir do Concílio Vaticano II.

Qual a resposta do Padre Calderón? Naturalmente, deixarei que o vejam por si mesmos os leitores. Mas desafio desde já: que os apoiadores do Concílio Vaticano II, por um lado, e os sedevacantistas, por outro, tentem contestar as conclusões de A Candeia... naturalmente não com epítetos, vitupérios e coisas que tais. Uma multidão de coisas assim, como já disse alhures, não chega a constituir um silogismo. Tentem contestá-las no terreno propriamente teológico, e com o mesmo grau de amplitude e generosidade intelectual do Padre Calderón. Vejamos o que poderão conseguir.

Em tempo: logo avisaremos do dia e local do lançamento do livro. Mas reservem já com o Sidney seu(s) exemplar(es); comprem, presenteiem, e ajudem assim a que medre também em nosso solo este autêntico tomismo vivo que, na atualidade, quase certamente tem no Padre Calderón seu principal representante. E esperem Concílio Vaticano II: A Religião do Homem, outra obra sua, que não fará senão confirmar o que acabo de dizer.

II) E quisera poder estar presente às novas “Jornadas de Humanidades” do Seminário de La Reja (província de Buenos Aires, Argentina), da Fraternidade São Pio X, onde precisamente vive e dá aulas o Padre Calderón. O tema será “O Evolucionismo”. Mas melhor que o tema são os palestrantes: 1) como convidado especial, o biólogo Raúl Leguizamón, autor de vários livros, e que é junto com Michael Behe (autor de A Caixa-Preta de Darwin) o principal nome atual da ciência biológica e biomolecular antievolucionista; 2) o próprio Padre Calderón; 3) os padres Camargo, brasileiro, e José María Mestre, ambos também da Fraternidade; 4) os professores Bolo, Pérez Argüero e Casermeiro.

Para mais informações, vejam no site da própria Fraternidade:
http://www.fsspx-sudamerica.org/principal.html.
Adendo do Sidney: Dizer-se “tomista” empresta certa aura de ortodoxia a um teólogo, a um filósofo, a um professor de filosofia. O alemão Josef Pieper dizia, jocosamente, que tal é a magnitude de obra de Santo Tomás que só se pode aplicar o epíteto “tomista” a alguém de forma equívoca. Noutra oportunidade, apontei alguns dos problemas do tomismo contemporâneo, que muitas vezes aproveita do Aquinate o que quer — principalmente no terreno da metafísica e da moral —, mas, quando lida com questões cristológicas, eclesiológicas, soteriológicas, antropológicas, litúrgicas, magisteriais, etc., acontece o seguinte: ou se cala ou faz, criminosamente, Santo Tomás dizer o que não disse. Há entre essas pessoas quem queira fazer o Aquinate servir à nova orientação ecumênica, à nova liturgia, à nova cristologia pluralista e, enfim, àquilo que o padre Garrigou-Lagrange chamava de nouvelle théologie. É óbvio que, para tanto, faz-se uso de uma bibliografia cuja hermenêutica é, digamos, demasiado aberta — e totalmente “moderna”. Esses professores, na prática, põem Santo Tomás a serviço das suas próprias ideologias, a serviço do espírito de novidade que parece ter varrido quase tudo na Igreja. E, como diz o próprio Calderón, ter voluntas thomistica é uma coisa; ser um discípulo do mestre, outra mui distinta.
Tendo em vista tal panorama, deparar-se com a obra magna do Padre Calderón traz, de imediato, um susto, um assombro, uma atitude de verdadeiro pasmo. Não apenas por seu grande conhecimento da história da Igreja, dos dogmas, do Magistério, etc., mas pela grande erudição que possui no campo do tomismo, propriamente. Padre Calderón não é leitor apenas do neotomismo (muitas vezes tão distante de Santo Tomás, como é o caso de Maritain, cujos erros tremendos têm ressonância ainda hoje, no seio da Igreja), mas alguém que, além de ter ido com grande afinco à obra do próprio mestre medieval, conhece pesquisadores contemporâneos e, também, autores tomistas que, hoje, são apenas uma nota de rodapé nos trabalhos dos estudiosos da obra do Aquinate — como por exemplo Capreolo, João de Santo Tomás e Cajetano. A intransigência do Padre Calderón é a intransigência de quem não faz concessões ao erro, venha ele de onde vier.
O livro A Candeia Debaixo do Alqueire terá 330 páginas e custará R$ 60,00. Faremos o seu lançamento num “sebo” no Centro do Rio. Quanto às encomendas (e aqui lembro que o número de exemplares não é grande), responderei em breve a todos os já que me mandaram email — com informações sobre o depósito a ser feito e sobre o valor do frete. Desta vez, peço encarecidamente que não solicitem desconto no preço (o qual está baixo, dado o livro que é), pois além de tudo precisamos ter recursos para dar prosseguimento a esta difícil semeadura. Afinal de contas, gasta-se hoje tanto dinheiro com bobagens e, na hora de se comprar um livro tão importante como este, se argüi “falta de grana”. É quase uma espécie de avareza.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Catolicidade e ecumenismo

Sidney Silveira
Ouvindo de um padre, nesta semana, a defesa do ecumenismo — sob a alegação etimológica de que “ecumênico”, em sua raiz grega, tem o mesmo significado de “católico” (ou seja: universal) —, não pude deixar de lembrar-me de um texto do Padre Álvaro Calderón (o mesmo da obra-prima "A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE"), veiculado no site da Permanência. Vale a pena ler.

O segredo de Léon Bloy

Carlos Nougué
A Igreja sempre assumiu as artes em função da liturgia, ou seja, do “conjunto de cerimônias e ritos por meio dos quais [ela] expressa e manifesta sua religião para com Deus” (R. P. Jesús Mestre Roc, Curso de introdución a la liturgia, p. 3, texto encontrável no site Stat Veritas). E, assumindo-as assim, não podia senão elevá-las ao ápice de sua potência: com efeito, tudo na criação atinge seu ápice no serviço de Deus. Com respeito à música litúrgica, dizia o compositor Gounod: “Não conheço nem uma só obra saída do cérebro de algum grande mestre que possa pôr-se em paralelo com a majestade aterradora desses cantos sublimes que diariamente ouvimos [que se ouviam então, acrescente-se hoje] em nossos templos e em nossas cerimônias fúnebres: o Dies irae e o De profundis. Nada chega a tal altura nem a tal potência de expressão e de impressão”. Ou Mozart: “Quanto a mim, daria gozosamente todas as minhas obras por ter sido o autor do Prefácio”. Com respeito à poesia, que obra do mundo pode equiparar-se em sublimidade, para dar apenas um exemplo entre tantos e tantos, ao ofício de Corpus Christi escrito por Santo Tomás de Aquino? Com respeito à arquitetura, ou seja, a arte que hospeda a liturgia, que edifício pode senão ajoelhar-se diante de uma catedral gótica (escreverei proximamente um artigo sobre o gótico) ou mesmo de uma igreja românica ou barroca? E, quanto à pintura e à escultura, que obra grego-romana, para falar do melhor, não se apequena diante dos retábulos e estátuas e vitrais que adornam (ou adornavam) nossos templos fazendo deles como que imagens da cidade celeste?

E, mutatis mutandis, vale para todas as artes o que Monsenhor Gay diz especialmente sobre a música: “Há 19 séculos que a Igreja não cessa de cantar, e assim continuará até o fim do mundo, pois o canto não é para ela um passatempo, nem um prazer para ela ou para os demais; é um dever, um dever constantemente prescrito e constantemente cumprido; é o acento regular de sua linguagem e uma das fórmulas de seu culto. Cantava-se nas catacumbas, cantou-se nos cadafalsos, cantou-se em torno dos féretros, e nunca se cantará com um coração tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e total redenção” (Virtudes cristianas, II, apud R. P. Jesús Mestre Roc, ibid.).

Como todavia costumo dizer, as artes, ainda que em plano indubitavelmente inferior ao litúrgico, também servem ou deveriam servir para a vida do católico fora dos templos. Não obstante, no alegrar uma casa ou no entreter a cidade ou no contribuir para forjar a unidade de uma nação, não podem elas porém afastar-se do serviço de Deus a ponto de lhe ser em algum grau contrárias; têm, em verdade, de em algum grau prestar também serviço a Deus; têm de estar ordenadas, de maneira mais ou menos direta, a Ele. Têm ao menos de “estar à sombra do Evangelho”, como ouvi certa feita numa bela homilia, e como de fato estão os quadros de um Le Nain, o pintor francês (do século XVII) dos humildes, das famílias do campo, cujas figuras, como diz o Padre Calmel em Théologie de l’histoire (Dominique Martin Morin, 2ª. ed, 1984, p. 70), ”refletem um equilíbrio e uma dignidade que já não se vêem nos agricultores contemporâneos. Por que aquela calma, aquela gravidade, aquela paz impressa em seus rostos? Sem dúvida porque os camponeses que ele evoca guardam ainda mais ou menos intacto o patrimônio de virtudes cristãs trazidas aos gauleses mais de quinze séculos antes pelos primeiros bispos e pelos primeiros mártires. Fora das virtudes cristãs, jamais teríamos conhecido esta paz da alma, esta segurança diante da adversidade, esta força da alma que transfiguram e sobrelevam as frágeis virtudes humanas, que fazem com que a vida aqui em baixo, neste vale de lágrimas, ainda que repleta de provações, não seja porém envenenada nem desesperadora. São virtudes humanas sobrelevadas pela graça o que está impresso nos nobres rostos de Le Nain”. E, ao retratá-lo, prestava Le Nain ao seu modo, no seu grau abaixo do litúrgico, um serviço de louvor a Deus, ao mesmo tempo que, em ordem a esse serviço, prestava beleza ao mundo dos homens.

Mais ainda: podemos os católicos assimilar a obra de grandes artistas não católicos como o compositor luterano Johann Sebastian Bach ou o escritor ortodoxo russo Fiodor Dostoievski, contanto que saibamos expurgar dela o nefasto ou acusá-lo (o herético da letra de certas cantatas de Bach, o antipapismo, o pan-eslavismo, etc., em certas passagens de Dostoievski), e nos lembremos, sempre, de que somos não só de Cristo, mas de sua esposa, a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.

Para a relação do católico com as artes, contudo, o veneno mais insidioso não está propriamente nas obras de arte francamente não católicas ou blasfemas; está sobretudo no pensar e dizer que as artes têm mais ou menos autonomia com respeito ao fim último, com respeito a Deus. No considerar que tanto a jurisdição do político como o âmbito das artes podem instalar-se num terreno neutro com respeito ao Senhor; no considerar que, além daquele fim último, tem o homem um fim natural, a pólis, com suas necessidades naturais, entre as quais a do belo propiciado pelas artes; no considerar que há uma cidade intermédia entre a cidade de Deus e a do amor-próprio e do demônio, com artes intermédias entre a arte para Deus e a arte para o amor-próprio e o demônio. E este veneno, o veneno do humanismo, se inoculou em certo grau até nos melhores de nossos combatentes antiliberais. Com efeito, como diz o Padre Álvaro Calderón em El neonestorianismo actual – A propósito de la película “La última tentación de Cristo” (texto encontrável no já referido site Stat Veritas), “O verdadeiramente grave é o câncer que carcome hoje o catolicismo por dentro. Até os principais órgãos estão infectados com os princípios do inimigo, e, como acontece com o câncer, quanto mais se quer viver, mais rapidamente se morre, porque as próprias funções vitais da vítima servem para agravar o mal”. E uma das muitas provas que se poderiam aduzir ao dito, temo-la na contribuição dada pelo grande Louis Veillot para impedir se pusesse no Index Librorum Prohibitorum a obra de Léon Bloy (1846-1917). Dizia o eminente antiliberal com respeito a essa obra: “Trata-se de arte apenas”. Ou seja, de meras metáforas; estão em seu terreno neutro; o belo tem autonomia; etc.; etc.; etc. Mas, hélas!, aquele mesmo Léon Bloy, esse mesmo “Leão” que gerações e gerações de católicos consideraram e ainda consideram como defensor santamente irado da tradição e da ortodoxia, esse mesmo escritor que dizia não conhecer senão um só Satã poético verdadeiramente terrível, “o de Baudelaire, porque é sacrílego” (Le Révélateur du Globe, 1884), esse mesmo “profeta” triste, algo desesperado e eo ipso parente espiritual de Sören Kierkegaard, esse mesmo “vaticinador” a que se atribuía uma piedade máxima, de comunhão quotidiana, mas perpassada de um gosto excessivo pelo sofrimento, esse mesmo homem que consideravam um místico e que se considerava possuidor de um segredo revelado a ele e apenas a ele, esse mesmo era um arraigado e cabal luciferista!

Aqui não me estenderei demasiadamente sobre o assunto, até porque há textos que o tratam de modo decisivo. São eles: L’œuvre étrange de Léon Bloy, de Louis Jougnet, e L’enfant prodigue selon Léon Bloy – Une interprétation blasphématoire, de Antoine de Motreff (ambos em Le Sel de la Terre, n. 52, Printemps 2005, Avrillé, Couvent de la Haye-aux-Boshommes, pp. 189-202 e pp 116-140 respectivamente); e as obras Un Prophète luciférien, Léon Bloy, de R. Raymond Barbeau (Paris, éditions Montaigne, Aubier, 1957) e Présence de Satan dans le monde moderne, de Mrg Augustin Louis Léon Cristiani (Paris, France-Empire, 1959). Mas não poderia deixar de mostrar aqui, ainda que muito brevemente, os perigos imensos que se escondem atrás não só da pretensa autonomia e neutralidade das artes, mas particularmente das idéias estranhas, demasiado estranhas, de Léon Bloy.

E, com efeito, como não ver a origem gnóstico-luciferista da identificação pretendida por Bloy entre Satã e o Espírito Santo? Escreve ele em Le Mendiant Ingrat (em 14 de agosto de 1892): “Hoje, décimo primeiro domingo depois de Pentecostes [...] o fariseu representa Jesus e o publicano o Espírito Santo [...] o primeiro diz o que ele não é, NOM SUM, enquanto o segundo afirma, pedindo graça, que é um pecador. Uma estranha luz sobre este evangelho é dada pela aproximação destes dois textos: Omnis qui se EXALTAT humiliabitur (Lucas, XVIII, 14). Oportet EXALTARI Filium hominis (João, XII, 34)”. Ora, pergunta Antoine de Motreff: “como o Espírito Santo pode ser o pecador que tem de pedir perdão, senão porque ele já pecou contra Deus, qual Lúcifer? Uma vez que Satã se humilhará, Deus o exaltará até ele se tornar uma das Pessoas da Trindade” (op. cit., p. 123).

Não, não se trata de exagero, e para mostrá-lo bastarão umas poucas citações do mesmo Léon Bloy. Naturalmente, como bom “profeta” gnóstico, o francês não revelará o seu paracletismo luciferista senão pouco a pouco, progressivamente. Mas já as últimas páginas de Salut par les Juifs contêm a confissão total e peremptória de seu segredo. Com efeito, escreve Bloy em Le Mendiant Ingrat (em 31 de agosto de 1892) a respeito daquelas reflexões: “Encontrei a minha conclusão. Vou enfim poder evadir-me desta brochura que me tem cativo há dois longos meses. Suponho que, doravante, já não terei amigos esperáveis no que se chama o mundo católico”. E de fato não deveria tê-los, porque efetivamente diz ele em Salut par les Juifs: “Esse Visitante inaudito, esperado por mim durante quatro mil anos [sic], não terá amigos e sua miséria fará com que se assemelhem mendigos e imperadores. [...] Após ter exterminado a piedade [...], esse proscrito de todos os proscritos será condenado silenciosamente por magistrados de irreprochável doçura. // Jesus não tinha obtido dos judeus senão o ódio, e que ódio! Os cristãos terão liberalidade para com o Paráclito com o que está para além do ódio. // E é de tal modo o Inimigo, é de tal modo idêntico a esse Lúcifer que foi chamado o Príncipe das Trevas, que é praticamente impossível – mesmo no êxtase beatífico – separá-los. // Aquele que puder compreender que compreenda. // A Mãe de Cristo foi dita a Esposa deste Desconhecido de que a Igreja tem medo, e é certamente por essa razão que a Virgem prudentíssima é invocada sob os nomes de ESTRELA DA MANHÃ e VASO ESPIRITUAL”. Ou seja, o Paráclito esperado por Bloy e pelos judeus será Satã, Lúcifer, que é idêntico ao Espírito Santo prometido por Jesus para Pentecostes. E completa o francês: “Os raríssimos cristãos que ainda fazem uso da razão podem perceber que não se trata [...] de metáfora [...], mas simplesmente de constatar o Mistério, a PRESENÇA do Mistério, para escândalo dos imbecis ou dos teólogos pedantes que afirmam que está tudo esclarecido”. Como o sabe com tanta certeza Bloy? Porque “eu sei coisas que ninguém sabe. Elas não me foram mostradas unicamente para me fazer sofrer”.

Como se vê, diz com razão Léon Bloy que essa mescla de satanismo e loucura não é metafórica. Estava pois equivocado Louis Veillot, assim como estão equivocados, perigosamente equivocados, todos os que invocam a autonomia da arte e do belo: “belas” são as palavras com que Bloy ou Baudelaire louvam a Lúcifer, conquanto apenas belas entre aspas, porque indubitavelmente o belo disjungido do bem não pode ser senão um falso belo. O brilho do belo antagônico ao bem é brilho de ouropel; mas ouropel que, peçonhento, pode cegar, e cega, e vem cegando gerações e gerações de católicos, incluídos muitos dos nossos melhores.

Em contrapartida, como diz em entrevista (Zenit, 22 de maio de 2009) o escritor católico Michael O'Brien, “A vocação para a arte cristã é algo sagrado. É uma vocação, não uma profissão. É uma misteriosa relação de co-criação, e por isso a pintura e a escrita católicas, todas as artes, deveriam começar assim: com os artistas de joelhos, implorando a graça”. Sim, porque ao contrário de tantos servidores diretos ou indiretos de Satã no campo das artes, os artistas servidores de Deus não fazem obras que pudessem ser reunidas numa seção de museu intitulada “Arte cristã”, ao lado e em pé de igualdade com outras correntes artísticas. Não: como diz Henri Charlier, a arte cristã não é uma forma de arte mais; é a arte, aquela a que todas as demais, ainda que obscuramente ou a contragosto, aspiram.

E nunca se deverá afirmá-lo, e praticá-lo, “com um coração tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e total redenção”.

terça-feira, 26 de maio de 2009

"TV" Contra Impugnantes — exageros do fundador da escola cínica: Antístenes

Sidney Silveira
Veja-se um trecho da aula do Nougué sobre um dos chamados "socráticos menores": o fundador da escola cínica (Antístenes), cuja filosofia ascética, se levada às últimas conseqüências, nos conduziria a uma vida de cão (literalmente!), como o próprio Nougué o afirma de maneira salutarmente jocosa.

Padres “do mundo” e padres “no mundo”

Sidney Silveira
Concebamos um padre-galã, cantor barítono de voz aveludada, vestido de forma absolutamente mundana (não raro, com retoques de sensualidade e muita maquiagem), a entoar em shows com luzes pirotécnicas um tipo de música que Platão — o pagão Platão! — chamava de “langorosa”, nefasta para a sua República ideal*. Em suma: um tipo de música que, dada a sua melodia pobre e melosa, induz os incautos que a escutam a um estado psicológico narcotizante, no qual a sensibilidade é aguçada semi-hipnoticamente. Um tipo de música que acarreta o que místicos e filósofos medievais chamavam de divagatio mentis, quer dizer: a dissipação da inteligência em imagens em si desimportantes, um estado de espírito em que as rédeas da fantasia simplesmente se desorientam, perdem a sua ordenação à potência cogitativa da alma**. Eis, aqui, num breve quadro aproximativo, a figura e o trabalho do padre Fábio de Melo, um dos recordistas na venda de CDs e DVDs no último ano no Brasil — o que é um sintoma gravíssimo não apenas da doença de que padece a catolicidade em nosso país, mas da doença de que padece a sensibilidade, o gosto médio das pessoas.

Mas o pior não é isto. O pior é que, sendo padre, esse jovem desconhece absolutamente a história do Magistério bimilenar da Igreja, a julgar pelas afirmações que faz em programas de auditório e em talk-shows sobre “doutrina” católica. A entrevista concedida no programa do Jô é apenas um exemplo: Fábio de Melo não apenas não soube responder à primeira pergunta, sobre se a teologia é uma ciência (ah, se tivesse ao menos lido a primeira questão da primeira parte da Suma Teológica!), mas engendrou um conjunto de barbaridades que, consideradas à luz da doutrina de sempre da Igreja, são o que tecnicamente se convencionou chamar de heresias ou blasfêmias. Exemplos do engenho teológico do padre Fábio de Melo: a) só houve, na verdade, uma única Missa (a da Santa Ceia), pois, em sua opinião, as demais não podem sequer receber tal nome; b) passamos, nesta vida, do estado “adâmico” ao estado “crístico”, idéia inspirada no malfadado evolucionista Teilhard de Chardin, incluído acertadamente no Index Librorum Prohibitorum, além de farsescamente envolvido na fraude do Homem de Piltdown. Essa opinião é herética em toda a linha, pois dá por pressuposto que essa passagem de um “estado” a outro é natural e se dá nesta vida, ou seja: é meramente humana. c) após dizer que foi muito namorador na adolescência (o que, em si, não seria um problema maior), Fábio de Melo deu claramente a entender que é impossível um sacerdote aderir ao celibato sem passar pela experiência do amor carnal***. Tal afirmação só poderia advir de alguém que, tendo maior ou menor experiência do amor carnal, mostra não ter nenhuma do amor sobrenatural que provém da Graça, e, portanto, de alguém que descrê da possibilidade de castidade nesta vida — uma castidade oriunda não de experiências humanas, mas da gratia gratis dada. De alguém que não conhece o Magistério da Igreja nesta matéria. A propósito, o padre Fábio disse nessa mesma entrevista que a sua vocação aconteceu depois que viu a piscina do seminário (santa inspiração!); d) inquirido pelo Jô sobre o “absurdo” do conceito católico de matrimônio (“só para procriar”, nas palavras do apresentador), o padre Fábio engrolou a língua e mostrou não conhecer não digo a doutrina tradicional (aquela que lindamente Pio XI nos lembrava em Casti Connubii), mas sequer a doutrina hoje vigente (em si mesma problematicíssima, pelos motivos que apontaremos noutro texto); e) professor de teologia (ai meu Deus!), padre Fábio disse que cabe à teologia ligar e não dividir (embora não dissesse ligar o quê a quê). Esqueceu-se da parábola do joio e do trigo o nosso “neoteólogo”? Sim, esqueceu-se que o mesmo Cristo disse: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa”. (Mt. X, 34-36). Poupo-me, aqui, de trazer à luz o que disseram grandes Doutores e o próprio Magistério sobre esta passagem do Evangelho, para não estender por demais o texto.

Não conheço o padre Fábio de Melo e não lhe quero mal. Mas já que a hierarquia é absolutamente frouxa e permite que esses sacerdotes reneguem o seu verdadeiro múnus, cabe aos leigos conhecedores do essencial da doutrina defendê-la de ações maléficas, no seio da própria Igreja. Na verdade, a situação é dramática, na medida em que a própria hierarquia se omite, em parte por estar ela mesma contaminada pelo vírus modernista-liberal que há 40 anos tomou conta de quase tudo. O que advirá da situação atual da Igreja é um mistério inscrito nos desígnios da Providência. Por um lado, não é demais lembrar a terrível frase do Senhor: “Quando vier o Filho do Homem, acaso encontrará a fé sobre a terra?” (Lc. XVIII, 8). Por outro lado, cabe-nos defender a doutrina com unhas e dentes, esperançosos da promessa do mesmo Cristo, de que as portas do inferno não prevalecerão sobre a Igreja (Mt. XVI, 18).

A diferença entre padres do mundo e padres no mundo é esta: entre os primeiros há os que perderam quaisquer resquícios de sacralidade, e há também os que, embora mantenham a fé, se omitem de defendê-la publicamente contra os absurdos inter pares. Quanto aos segundos, estes são cada vez mais raros e continuam sendo um sinal da absoluta sobrenaturalidade da fé. E é na Fraternidade Sacerdotal São Pio X — FSSPX que se encontram, em sua maioria.

São verdadeiros heróis da resistência.

* Neste ponto, Platão era absolutamente realista. Ele sabia muito bem que a exacerbação da sensibilidade representa, em todo homem, uma atrofia das capacidades superiores da alma racional. Se se disseminasse na Pólis, tal excitação da sensualitas acarretaria um tipo de sociedade dramaticamente má, incapaz de ter acesso aos valores superiores que configuram a condição humana. Uma sociedade incapaz de sair da caverna descrita no Livro VII da República. Hitler, o diabólico Hitler, também sabia disso: como se lê na monumental biografia escrita por Joachim Fest, depois de constatar que, em seus discursos noturnos, o efeito hipnótico sobre a multidão era maior, nunca mais Hitler discursou pela manhã. Mas, ao contrário: procurou a noite, e sempre com algo espetaculoso para distrair a massa, como na vez em que ordenou que todas as baterias antiaéreas da Alemanha, no entorno do Estádio Olímpico (onde faria a sua satânica arenga), apontassem a luz para um ponto convergente no céu. Quando isto foi feito, a multidão ficou apalermada com a pirotecnia e totalmente “aberta” para engolir o que dissesse o seu líder. O mesmo se pode dizer do truque de alguns pseudofilósofos liberais que, em meio a algumas verdades lapidares, escrevem algo baixíssimo, não raro uma mentira, e assim inoculam o seu veneno. Voltaremos a isto noutro texto.
** Uma sensibilidade desordenada acarreta um grande déficit na potência cogitativa — na prática, uma das mais afetadas em nossa dinâmica psíquica. Como vimos, a cogitativa capta as intenções não percebidas pelos demais sentidos, e é por este motivo chamada por Santo Tomás de razão particular — a partir da qual a ratio universalis exerce o seu império sobre as paixões. Uma sensibilidade molenga, acostumada a músicas melosas e de timbre adocicado, assim como a imagens cândidas, produzirá o que eu chamo de “psique Poliana”. Uma psique não aparelhada para a captação das verdades mais elevadas, ou seja: para a visão da real condição humana.
*** O mesmo se pode entrever na entrevista concedida por outro padre, o falecido Leo (mestre de Fábio de Melo), ao mesmo Jô Soares, na qual ele deixa escapar com certa ironia o seguinte: “Um dia, um padre idoso me disse: sou virgem. Achei bonito, isso”. A propósito, nessa mesma entrevista o padre Leo disse uma coisa que seria muito cômica se não fosse desgraçadamente trágica: descobriu a sua vocação numa certa noite psicodélica, após fumar vários cigarros de maconha e depois de cheirar várias carreiras de cocaína. Em síntese: ao contrário das grandes e verdadeiras vocações, que implicam o abrir de olhos (da inteligência) para uma realidade sobrenatural beatificante, e para a própria miséria do pecado em que se jaz, a vocação do padre Leo se deu num estado de semiconsciência, de grande consumição pela droga. Um estado em que a inteligência estava obliterada por uma sensibilidade distendida artificialmente por meios alucenógenos. Nessa entrevista, o falecido padre Leo dizia que o problema da maconha comercializada atualmente é que não é pura, mas misturada com outras substâncias. A que ele fumava em sua juventude, sim, era “da boa”.
Em tempo: Durante o Concílio de Nicéia (325), São Nicolau — aquele que o mundo sem fé transformou no "bom" velhinho Papai Noel — esmurrou o herege Ário, autor da tese que negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na ocasião, ninguém acusou a São Nicolau de falta de caridade. É claro que não estamos nós aqui a dizer que vamos esmurrar "A", "B" ou "C", mas aduzimos este exemplo apenas para mostrar que o zelo pela verdade da fé deve estar muitíssimo acima de respeitos humanos e de conveniências políticas, ou até mesmo de sanções eclesiásticas (nos casos em que a autoridade hierárquica depõe voluntariamente a sua autoridade magisterial e contraria a Tradição, e usa de alguns meios disciplinares para calar os que se recusam a seguir os erros. Aqui, vale o princípio da obediência ao princípio superior).
Em tempo2: A propósito do matrimônio, deixo aqui um depoimento pessoal, que pode servir de testemunho para alguém. Depois de me converter mui tardiamente e após grandes sofrimentos e provações (fiz a minha primeira comunhão dos 39 para os 40 anos), passei a estudar com muito maior afinco o Magistério. Dentre os meus grandíssimos pecados passados, estava o ter-me casado na Igreja sem nem sequer ser católico, enquanto a jovem nubente a que me uni sequer era batizada. Após consultar dois padres ligados a FSSPX, por intermédio do meu amigo Nougué, estes disseram-me que o meu caso era de nulidade. Entrei então com um processo num tribunal eclesiástico e, depois de quatro anos e muitas idas e vindas, no dia 24/12/2008 (exatamente na véspera do último Natal) recebi pelo correio a Declaração de Nulidade Matrimonial, que atestava que o meu casamento jamais fora um sacramento. Não que a minha felicidade dependesse disto — pois, após muito penar com relacionamentos desagradáveis a Deus, vi que nenhuma felicidade é possível, se se está longe da lei da Igreja —, mas o fato é que restituí uma verdade capital em minha vida. Graças a Deus.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

quinta-feira, 21 de maio de 2009

"TV" Contra Impugnantes — outro trecho da entrevista sobre a "Filosofia da Música"

Sidney Silveira
Assistam aqui a mais um trecho da entrevista do Nougué ao Prof. Marcos Cotrim — vídeo que, ao fim e ao cabo, estará disponibilizado por inteiro no Youtube.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Limbo: sem dúvida alguma, um dogma

Sidney Silveira
Noutro dia, durante um jantar, dizia-me um bom amigo que a doutrina do limbo não é dogmática, baseado talvez num parecer da C.T.I. – Comissão Teológica Internacional, que rebaixara o limbo a mera hipótese teológica possível. Pois muito bem: sem — por ora — recorrer a nenhum Catecismo da Igreja Católica senão o atualmente vigente, basta ler o que se diz no parágrafo 88:

“O Magistério da Igreja empenha plenamente a sua autoridade, que recebeu de Cristo, quando define dogmas, isto é, quando, utilizando uma fórmula que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, propõe verdades contidas na Revelação divina ou verdades que com estas têm uma conexão necessária”.

Em suma, toda vez que a autoridade magisterial — encimada pela autoridade do Papa isoladamente, ou do Papa reunido com os bispos em Concílio — proclama algo como verdade de Fé, com exclusão de todas as opiniões contrárias, empenha a sua autoridade de maneira solene e, sendo assim, define e circunscreve a matéria dogmática. Isto esclarecido, além das menções ao Magistério solene feitas noutro post com relação ao limbo, acrescentemos as seguintes:

1- A resposta do Papa Pio VI ao bispo cismático de Pistóia, acerca dos que morrem sem o batismo: “A doutrina segundo a qual deve ser rechaçado como fábula pelagiana aquele lugar dos infernos (que os fiéis têm por hábito designar com o nome de ‘limbo das crianças’), no qual as almas dos que morrem apenas com o pecado original são castigadas com a pena de dano e sem a pena do fogo — ou, descartando para estas almas a pena de fogo, 'ressuscite' a fábula pelagiana segundo a qual haveria um lugar e um estado intermédio isentos de culpa e de pena, entre o reino dos céus e a condenação eterna — é falsa, temerária e injuriosa para as escolas católicas” (Denzinger, 1526)
2- Na profissão de fé proposta por Clemente IV em 1267, e submetida depois ao Segundo Concílio de Lion (1274), se diz, de forma solene e cristalina: "As almas dos que morrem em pecado mortal, ou somente com o pecado original, descem no ato ao inferno, para ser castigadas com penas distintas ou díspares" (Denzinger, 464).
3- Pouco depois, em 1321, o Papa João XII — o que canonizou Santo Tomás — acrescenta que as referidas almas das crianças que morrem sem batismo são castigadas "com penas e lugares distintos". (Denzinger, 493a).
4- A mesma declaração de Lion volta a encontrar-se no Concílio de Florença (1439) com as mesmas palavras acima. “As almas dos que morrem em pecado mortal ou somente com o pecado original descem imediatamente ao inferno, para ser castigadas, embora com penas desiguais”. (Denzinger, 693)
5- A Constituição de 1588, sobre o aborto, assinada pessoalmente pelo papa Sixto V, diz que as vítimas do aborto, vendo-se privadas do batismo, são excluídas da visão beatífica.

Em suma: trata-se de um dogma, e não de uma mera “hipótese teológica”, como diz a malfadada C.T.I. (ô sigla alegórica!) — e de um dogma fundamentado na Revelação, em Jo. III, 5: “Em verdade, em verdade vos digo: aquele que não renascer da água e do Espírito não verá o Reino de Deus”. Reiterando, não se trata de uma matéria opinável, mas de um dogma da Sagrada Escritura confirmado pela autoridade do Magistério no decorrer dos séculos. Infelizmente, hoje muitos ditos teólogos querem aplicar a Deus critérios da justiça humana e, com esta má-intenção, distorcem conscientemente na Sacra Pagina as palavras insofismáveis de Nosso Senhor. A propósito, como se disse noutro lugar, os teólogos (mesmo reunidos às centenas, como na C.T.I.) não têm autoridade magisterial alguma, pois o seu múnus é totalmente orientado pelo Magistério e pelos dogmas. Até mesmo o Doutor Comum, que é Santo Tomás, se em algum ponto tivesse contrariado o que disse o Magistério, perderia ipso facto a sua autoridade teológica. Mas isto ele jamais o fez.
Em tempo: Veremos adiante o que diz o Aquinate sobre o limbo, destacando entre outras coisas que se trata de um lugar de felicidade natural. Portanto, a pena de dano que sofrem os que morrem sem batismo, por sua vez, é uma interdição da felicidade sobrenatural (a visão beatífica), que Deus concede livremente a quem quer.
Em tempo 2: O corolário de tudo isto se lê no magnífico Catecismo Maior de São Pio X, nº 563: "Por que tanta pressa em batizar as crianças?. R. É preciso ter pressa para batizá-las, pois estão expostas, dada a sua tenra idade, a muitos perigos de morte e não podem salvar-se sem o Batismo".
Em tempo 3. Como se vê, esse castigo é privativo de um bem sobrenatural a que nenhum homem, por sua própria natureza, poderia ter direito. E como Deus é justíssimo e sapientíssimo, em seus irrevogáveis decretos pensou — desde a eternidade — num lugar de felicidade natural onde estariam as almas daqueles que, sem culpa, não foram limpos da mancha do pecado original. Os neoteólogos não suportam isto porque se arrogaram, com grande soberba, o papel de juízes do Criador.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A autoridade do Magistério da Igreja a partir do Concílio Vaticano II

Sidney Silveira
O livro a que aludi no post anterior (e que será a primeira publicação do Angelicum – Instituto Brasileiro de Filosofia e de Estudos Tomistas) é do principal teólogo da Fraternidade Sacerdotal São Pio X – FSSPX, Padre Álvaro Calderón, professor do Seminário de La Reja, na Argentina, a quem já se fizeram várias referências no Contra Impugnantes. Na prática, trata-se de uma obra de combate teológico em forma de disputatio, na qual se resolvem, sem nenhuma exceção, todas as questões centrais atinentes ao tipo de autoridade que se pode atribuir ao Magistério do Concílio Vaticano II e a todo o Magistério da Igreja — ordinário e extraordinário — que se lhe seguiu.

O livro é o seguinte:

A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE — Questão Disputada sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a partir do Concílio Vaticano II

A escolha do método da disputatio pelo Padre Calderón não se deu por um mero arqueologismo escolástico. Como o próprio autor frisa na “Introdução” ao livro, a quaestio disputata é uma radiografia do discurso científico à qual nada escapa. Em linhas gerais, este verdadeiro raio-X dialético consta de quatro etapas: 1ª) perguntar; 2ª) opinar; 3ª) responder; 4ª) e solucionar. Neste contexto, entre as principais objeções dos adversários, procuram-se as que mais fortemente se oponham à verdade, pois assim, ao final, a demonstração apodítica aparecerá cristalina para todos os que se derem o trabalho de percorrer o caminho por inteiro.

A obra do Padre Calderón que o Instituto Angelicum apresenta ao leitor de língua portuguesa é composta de quatro grandes artigos:

Artigo Primeiro: Se o Magistério conciliar não é infalível.
Artigo Segundo: Se o Magistério conciliar pode ser posto em discussão.
Artigo Terceiro: Se o Magistério conciliar não tem nenhum grau de autoridade.
Artigo Quarto: Se o Magistério conciliar não compromete a sua autoridade de modo indireto.

Eis o sumário:

Introdução
O método da Questão Disputada
A questão suscitada pelo magistério conciliar

ARTIGO PRIMEIRO
Se o magistério conciliar não é infalível
Objeções
PRIMEIRA OBJEÇÃO (geral): O magistério de um concílio ecumênico é infalível

SEGUNDA OBJEÇÃO: É errôneo dizer que há defeito quanto ao sujeito do magistério
Primeira opinião por criticar: Carência da suprema autoridade apostólica
Segunda opinião por criticar: Ilegitimidade do Concílio Vaticano II
Terceira opinião por criticar: Defeito de confirmação por parte do Romano Pontífice
Refutação das três opiniões

TERCEIRA OBJEÇÃO: É errôneo dizer que há defeito quanto à matéria ensinada
Opinião por criticar: Não infalibilidade por defeito de matéria
Refutação

QUARTA OBJEÇÃO: É errôneo pretender que o magistério conciliar não tem intenção de obrigar
Primeira crítica: Esta opinião implica certo voluntarismo doutrinal
Segunda crítica: Julga erradamente a intenção que de fato anima o magistério conciliar

QUINTA OBEJEÇÃO O Concílio é infalível ao menos enquanto magistério ordinário universal

SEXTA OBJEÇÃO: É errôneo negar a “universalidade” do magistério conciliar
Primeira opinião criticada: Nega a universalidade local
Refutação
Segunda opinião criticada: Nega a universalidade temporal
Terceira opinião criticada: Não cumpre o axioma quod ubique et quod semper
Refutação da segunda opinião
Refutação da terceira opinião


SÉTIMA OBJEÇÃO O magistério conciliar foi infalivelmente aceito pela fé comum dos crentes

Contra-réplica
Resposta
I. Prenotandos acerca do magistério da Igreja
1º O sujeito do magistério eclesiástico
2º O objeto do magistério eclesiástico
3º Divisão do magistério segundo seus atos
II. Os dois modos do magistério infalível
1º Magistério infalível extraordinário
2º Magistério infalível ordinário
III. O magistério conciliar não quis usar da infalibilidade de modo extraordinário
IV. As autoridades conciliares não querem recorrer à infalibilidade de modo extraordinário porque adotaram uma atitude liberal

1º A autoridade da Igreja segundo o liberalismo
2º O liberalismo do magistério conciliar
3º O magistério liberal não exerce a infalibilidade de modo extraordinário
V. O magistério liberal jamais pode alcançar a infalibilidade de modo ordinário
VI. Conclusão

Solução das objeções
À PRIMEIRA OBJEÇÃO: O ponto de resolução do dilema suscitado pelo magistério conciliar

À SEGUNDA OBJEÇÃO: É preciso resolver o dilema sem arvorar-se em juiz da credibilidade do magistério
Argumento geral
A) Com respeito às teses “sedevacantistas”
B) Ilegitimidade do Concílio Vaticano II
C) Sobre o defeito de confirmação por parte dos Papas conciliares
Docilidade católica diante do magistério

À TERCEIRA OBJEÇÃO: Não buscar outro critério fora do que o magistério diz de si mesmo

À QUARTA OBJEÇÃO: O magistério conciliar não quer impor sua autoridade
Contra a acusação de voluntarismo
As intenções do magistério conciliar

À QUINTA OBJEÇÃO
À SEXTA OBJEÇÃO
À SÉTIMA OBJEÇÃO


ARTIGO SEGUNDO
Se o magistério conciliar pode ser posto em discussão
Objeções
PRIMEIRA OBJEÇÃO: Qualquer magistério autêntico exige submissão do intelecto

SEGUNDA OBJEÇÃO: Diante da sentença do magistério, o católico deve guardar silêncio

TERCEIRA OBJEÇÃO: Se houver contradição aparente, pergunta-se privadamente
Contra-réplicas
Primeira réplica: O magistério não infalível deve ser julgado à luz da tradição
Segunda réplica: O magistério conciliar permite o diálogo
Resposta
I. Os graus de autoridade nos atos de magistério
II. O magistério conciliar preferiu o diálogo ao exercício de sua autoridade
1º Instauração do “diálogo” como novo modo de exercer o ministério apostólico
2º O magistério “dialogado” é uma exigência do liberalismo conciliar
3º O magistério “dialogado” conciliar não exerce em nenhum grau sua autoridade
III. Os simples fiéis vêem-se obrigados a defender publicamente o magistério tradicional

Solução de objeções e réplicas

À PRIMEIRA OBJEÇÃO
À SEGUNDA OBJEÇÃO
À TERCEIRA OBJEÇÃO
À PRIMEIRA RÉPLICA
À SEGUNDA RÉPLICA


ARTIGO TERCEIRO
Se o magistério conciliar não tem nenhum grau de autoridade
Objeções

PRIMEIRA OBJEÇÃO: O magistério conciliar tem ao menos autoridade teológica máxima

SEGUNDA OBJEÇÃO: A linguagem moderna não diminui a autoridade doutrinal do magistério conciliar

TERCEIRA OBJEÇÃO: Os Papas sempre merecem a religiosa submissão dos fiéis
Contra-réplica
Resposta
I. O subjetivismo do pensamento moderno
1º O espírito moderno
2º O subjetivismo
II. O subjetivismo no magistério conciliar
1º O proscrito subjetivismo do modernismo: o “simbolismo”
2º O triunfo do subjetivismo no magistério conciliar
3º Critérios para discernir o subjetivismo teológico moderno
4º O subjetivismo no diálogo pós-conciliar entre teólogos e magistério
5º O subjetivismo nos textos do Concílio Vaticano II
III. Atitude do fiel católico diante do magistério conciliar
Solução das objeções

À PRIMEIRA OBJEÇÃO
À SEGUNDA OBJEÇÃO
À TERCEIRA OBJEÇÃO


ARTIGO QUARTO
Se o magistério conciliar não compromete sua autoridade de modo indireto

Objeções
PRIMEIRA OBJEÇÃO: Autorização indireta da doutrina conciliar
SEGUNDA OBJEÇÃO: Promulgação pontifícia da reforma litúrgica
TERCEIRA OBJEÇÃO: A canonização de santos pós-conciliares
QUARTA OBJEÇÃO: A leis universais do novo Código
QUINTA OBJEÇÃO: A aprovação pontifícia dos “novos movimentos”
SEXTA OBJEÇÃO: Confirmação celestial das aparições marianas
SÉTIMA OBJEÇÃO: O “fato dogmático” do Concílio Vaticano II
Contra-réplica: Infalibilidade nos atos de governo?
Resposta
I. Acerca da relação entre magistério e governo
1º Do magistério e governo em geral
2º Do magistério e governo eclesiásticos
3º Divisão dos atos de governo eclesiástico em razão de seu compromisso doutrinal
4º Conclusão
II. Do governo liberal e sua relação com a verdade
1º Os fundamentos da sociedade moderna
2º O maquiavelismo do governo liberal
III. O maquiavelismo do governo da hierarquia conciliar
1º O caráter pastoral do Concílio Vaticano II
2º A colegialidade na disciplina eclesiástica
3º O ecumenismo com as religiões
4º A liberdade religiosa com os Estados
5º Conclusão: A traição da Verdade
IV. Autoridade dos atos do governo conciliar
Solução das objeções

À CONTRA-RÉPLICA
À PRIMEIRA OBJEÇÃO
À SEGUNDA OBJEÇÃO
À TERCEIRA OBJEÇÃO
À QUARTA OBJEÇÃO
À QUINTA OBJEÇÃO
À SEXTA OBJEÇÃO
À SÉTIMA OBJEÇÃO


SÍNTESE
FINAL
Critérios para julgar o valor do magistério de um concílio ecumênico
Como se exerceu o magistério no Concílio Vaticano II
A autoridade doutrinal do Concílio Vaticano II
A candeia debaixo do alqueire


Neste momento de absoluta babel doutrinal, a publicação deste livro do principal teólogo da FSSPX é não apenas profilática, mas também representa um grande serviço para todos os católicos que se interessam pelas questões mais importantes da Igreja.

Falarei, noutro post, algo sobre o conteúdo da obra.
Em tempo: O livro custará R$ 60,00, e desde logo aviso: os interessados em adquiri-lo devem entrar em contato conosco pelo email
sidney@edsetimoselo.com.br, para reservar o seu exemplar. Na resposta aos emails (no início de junho), darei informações sobre a forma de pagamento.
Em tempo2: Constam do livro quatro apêndices, que são os seguintes:
APÊNDICE PRIMEIRO: “Algumas noções teológicas”.
APÊNDICE SEGUNDO: “A infalibilidade do sensus fidei, segundo o Concílio Vaticano II”.
APÊNDICE TERCEIRO: “Comentário à Encíclica Fides et Ratio”.
APÊNDICE QUARTO: “Resposta a Les degrés d’autorité du Magistère, do Padre B. Lucien”.
Em tempo3: A tradução é do meu amigo Nougué, e o prefácio desta edição brasileira será assinado por D. Tomás de Aquino, Abade do Mosteiro da Santa Cruz, em Nova Friburgo, cuja ajuda inestimável para esta tão importante publicação registramos aqui.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"TV" Contra Impugnantes — Aristóteles: o Primeiro Motor Imóvel (parte II)

Sidney Silveira
Veja-se outro trecho de aula sobre o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles, deste curso que se encerrará no próximo dia 17/06. Aproveito para dizer que, em breve, todos os leitores do Contra Impugnantes terão notícias acerca do lançamento do primeiro livro do nosso Instituto Angelicum.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Desvirilizados

“Estais, pois, de sobreaviso, para que ninguém vos engane com filosofias e vãos sofismas baseados nas tradições humanas, nos elementos do mundo e não em Cristo”.
São Paulo (Epístola aos Colossenses, II, 8)


Sidney Silveira
As Patrísticas grega e latina tinham em alta conta essa advertência paulina contra o perigo da assimilação espúria de elementos filosóficos que, na raiz, fossem contrários à Fé. Os Padres são useiros em admoestações e palavras de condenação à filosofia e à literatura pagãs em geral, ao tipo de saber representado por aquilo que Tertuliano chamava, pejorativamente, de Athenae, linguata civitas. Para o cristão, a filosofia deveria ordenar-se a algo muitíssimo superior às coisas mundanas, superior às coisas da Pólis — embora ele pudesse servir-se destas como instrumentos para a aquisição de um conhecimento de muito maior envergadura. E tal conhecimento era nada menos do que a Cruz, a qual, como se disse alhures, é o amor em seu ápice pletórico insuperável, fonte de todo conhecimento certo, verdadeiro e útil.

Hoje, a hermenêutica liberal predominante nos estudos patrísticos quer fazer-nos crer em duas coisas:

1ª. que as condenações veementíssimas dos Padres limitavam-se a um posicionamento essencialmente teórico, mas não prático (valha-me Deus!);
2ª. que as cristalinas palavras de São Paulo em sua Epístola aos Colossenses referiam-se não a algo universal, mas sim a uma coisa contingente: à situação histórica em que o Apóstolo escreveu e à comunidade colossense a que se dirigia.

O que não faz a malícia moderna para minimizar e desvirilizar tudo o que o Cristianismo tem de firme, sólido, universal!

A verdade é, no entanto, bem outra: não apenas durante a Patrística, mas no decorrer de toda a história da Igreja, tanto o Magistério como os teólogos e Doutores sempre postularam a absoluta necessidade de afastamento de quaisquer idéias contrárias (ou mesmo pouco afins) à Fé. O estabelecimento do Index Librorum Prohibitorum, a partir do Concílio de Trento, não é nada mais, nada menos do que o ato de tornar canônica esta condenação formal, esta crítica acerba a tudo que afaste o homem da Verdade revelada. A Tradição, os mártires (como Justino, cuja imagem ilustra o presente texto) e a história dos Dogmas e das heresias estão aí para confirmar isto. Basta tomar conhecimento deles, para ver o quanto essa condenação é universalmente ininterrupta, no decorrer dos séculos.

Quando Irineu, por exemplo, escreve o seu Contra as heresias, é na verdade contra vários tipos de filosofias gnósticas que se bate, como por exemplo as que afirmavam que a matéria foi formada a partir de certas afeições da Sophia, tese à qual ele responde com a teoria da criação a partir do nada, que já tinha sido enfatizada por Teófilo de Antioquia e que sempre foi de senso comum na Igreja, com base escriturística no livro do Gênesis. O mesmo se pode dizer, analogamente, da obra de Orígenes Contra Celso; dos diferentes escritos de Agostinho contra os pelagianos e semipelagianos e contra gnósticos de diferente estirpe; de Santo Tomás contra os averroístas e contra os impugnantes do culto de Deus e da religião; etc. Além, é claro, da condenação formal de heresias de todos os tipos, pelo Magistério.

O que vivemos hoje é, portanto, algo inédito. Um otimismo irreal, sem qualquer fundamento, leva muitos a praticar um catolicismo aberto a tudo e a todos, à assimilação de uma gama variadíssima de pensadores que, ao fim e ao cabo, representam um enorme perigo para as almas. Em vários seminários hoje se estudam o criticismo kantiano, a fenomenologia husserliana, o historicismo hegeliano, o Dasein heideggeriano, etc., sem o menor espírito crítico e sem que se lhes anteponha a síntese abarcadora de Santo Tomás. Estuda-se teologia moral com critérios de um relativismo historicista altamente daninho. Ademais, minimizada a autoridade do Magistério nos últimos 40 anos, perdemos critérios objetivos e nos desvirilizamos espiritualmente; tornamo-nos, pois, ineptos para a luta contra o mundo, contra a carne e contra o demônio — três inimigos ferozes da nossa salvação.

Como o Magistério não mais se manifesta solenemente com relação a tantos elementos da cultura e da filosofia contemporâneas que são, em si mesmos, nefastíssimos, mais do que nunca o católico deve buscar orientação nos Santos Doutores, no estudo do Magistério bimilenar, na constante leitura do Evangelho e, enfim, em tudo o que a sabedoria de Cristo fez luzir nos homens da Igreja. E, se tem pendor filosófico, deve estudar o Doutor Comum: Santo Tomás de Aquino.

Aí sim, terá critérios objetivos para pôr a nu os sofismas modernos — herdeiros da visão liberal que impregnou o mundo com o seu bafio — e orientar-se pela verdadeira sabedoria.

Perderá amigos, com isto. Mas e daí?

sexta-feira, 8 de maio de 2009

"TV" Contra Impugnantes — Aristóteles: o Primeiro Motor Imóvel (parte I)

Sidney Silveira
Veja-se um trecho de aula sobre o Primeiro Motor Imóvel (o Theos de Aristóteles), um Deus ao qual, literalmente, não se pode rezar — pois, de acordo com o Estagirita, se ele pensasse qualquer coisa diferente de si mesmo, degradar-se-ia ontologicamente. Mais adiante, veremos como o pensamento cristão, com Santo Tomás de Aquino, dará resolução satisfatória, definitiva, às aporias aristotélicas deste trecho da Metafísica.

"TV" Contra Impugnantes — Platão: correspondência entre a alma humana e o Estado

Sidney Silveira
Assista na "TV" Contra Impugnantes esse trecho de aula ministrada pelo Nougué, cujo tema geral era Platão e sua concepção de Estado.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sobre unidade e multiplicidade

Sidney Silveira
Enquanto os relativismos moral e ético-político (essencialmente liberais) atuam com uma espécie de sinergia negativa, aglutinando toda a sorte de elementos desagregadores, voláteis e tendentes ao caos, a visão de mundo católica concentra e orienta os valores a partir de um sentido transcendental, teocêntrico, sagrado, único capaz de restaurar os valores verdadeiramente humanos e dar sentido de unidade às sociedades — sentido catalisador de certezas a partir da divina fonte de todas as certezas: a Verdade revelada (certa e indubitável), tábua de salvação para os homens. Isto é o que mais ou menos afirma, neste texto, André F. Falleiro Garcia, do Site da Sacralidade, que gentilmente reproduz o nosso mini-artigo alusivo a Santo Antônio, Doctor Evangelicus cuja bela imagem acima foi retirada do mesmo Site da Sacralidade.

Essa orientação fundamental (entre a multiplicidade profana, de um lado, e a unidade sagrada, de outro) irradia sobre toda a vida material e espiritual, tanto dos indivíduos como das coletividades. No caso do Ocidente contemporâneo, a orientação vigente (pluralista, democratista e libertária) é o fruto nefasto da perda do sentido de unidade e de sacralidade — grande legado de dois séculos de liberalismo. Obra dos infernos.
Em tempo: Ainda a propósito do extraordinário Santo Antônio de Lisboa, vale dizer que toda a sua vida foi uma busca ardorosa de Deus, uma ascese orientada ao amplexo místico de sua alma com o Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Voltaremos ao tema, noutra oportunidade.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O grande Santo Antônio de Lisboa: da ascética à mística

Sidney Silveira
Já se aludiu aqui à superioridade intrínseca da vida religiosa consagrada em relação à vida laica, à vida de quem se imiscui nos negotia secularia — idéia que está absolutamente de acordo com a doutrina da Igreja e com o ensinamento dos Santos Doutores. Um deles — Santo Antônio de Lisboa, talvez o maior taumaturgo da história da Igreja, Santo miraculoso e místico, de doutrina infelizmente pouco conhecida — nos mostra em vários dos seus Sermões que, no itinerário da vida espiritual, há uma primeira e necessária etapa ascética, pois o homem, absorvido pela multiplicidade de cogitações e de paixões (verdadeiras imago mundi pegajosas, de que precisa livrar-se), absorvido pelo tumulto das preocupações temporais, pela azáfama do dia-a-dia, não encontra as condições e as forças para entregar-se à contemplação das coisas espirituais superiores, para as quais Deus o criou. E no atual estágio de natureza decaída, ele precisa, pois, fazer uma lavagem prévia da alma, para então alcançar a silenciosa solicitude do deserto, que é o primeiro degrau da escada bíblica de Jacob, em cujo cimo está o próprio Deus. A subida da escada, segundo o Santo, supõe um esforço (a prática de atos virtuosos agradáveis a Deus, que significam a abertura da alma para a ação da Graça) e um prêmio (a visão beatífica).

Como frisa Gama Caeiro, em seu Santo António de Lisboa (volume II), o grande Santo português refere, expressamente, duas situações nessa ascensão:

a) a primeira é a da sublevatio mentis, na qual — após dar o primeiro passo na subida da escada mística — a inteligência e a vontade se aguçam, e os atos de devoção e admiração com as maravilhas da criação ganham nítido contorno, além de avivar a esperança dos bens futuros prometidos por Deus na Sagrada Escritura. Spes est bonorum expectatio futurorum, ensina o Santo, sem jamais esquecer-se de que tal expectativa é em relação a algo absolutamente transcendente. Nesta etapa, entra em jogo um elemento que modela o caminho: a discrição (discretio), que dá ao homem a proporção dos seus próprios atos nesta subida espiritual, um justo meio análogo ao que Platão define no Filebo como a realização da beleza e da virtude, com a diferença de que, no caso de Santo Antônio, a busca desse meio termo já é um efeito da Graça, e não uma virtude meramente natural. Na prática, a discretio antonina é uma atitude de não querer ir além do que Deus concede nesta caminhada, a busca de um respeitoso limite humano perante a imensidade de Deus, como afirma o mesmo Gama Caeiro. Um feliz contentar-se com o lugar em que se está, mas, ao mesmo tempo, uma abertura para receber mais de Deus.
b) A segunda é a da alienatio mentis, último grau da contemplação infusa, quando cessa a ação da razão humana e não há lugar para a inteligência propriamente dita, no sentido racional, mas apenas para o afeto amoroso captado pelo olho da contemplação (oculo contemplationis), um olho intuivo. Mas com a seguinte e relevante ressalva: tal intuição se dá por infusão da Graça sobrenatural, já que nenhum tipo de conhecimento humano natural acontece por meio de intuição imaterial direta, e sim por abstração a partir da essência das coisas materiais, como temos dito em vários textos no blog.

De um ponto a outro desses dois mencionados, tantas são as sutilezas da subida da escada mística antonina — cujo ápice, de acordo com o Santo, é o extasis contemplationis —, que não cabe destrinçá-las todas neste pequeno texto. Depois, posso indicar uma bibliografia antonina que, a propósito, deve começar pela leitura dos seus iluminadíssimos Sermões (por exemplo, em Santo António de Lisboa, Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos [Ed. Bilíngüe], com introdução, tradução e notas de Frei Henrique Pinto Rema, em dois volumes, da Editorial Restauração, 1970. Ou Santo António de Lisboa. Obras Completas. Lello & Irmão, 1982.).

O que importa, por ora, é destacar um ponto central da doutrina deste Doutor da Igreja, proclamado Doutor Evangélico pelo Papa Pio XII, que, em 1946, na Carta Apostólica Exulta Lusitanis Fidelis, aclamara Santo Antônio como “exímio teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística”. Justamente o ponto que ensina o seguinte: sem purgação do espírito, não há como desvencilhar-se das ciladas do mundo, que nos afastam de Deus decisivamente.

Tudo isto vem a propósito de uma coisa muito importante: nenhuma ascética tem valor, se não se orientar à mística. Uma ascética mundanizada, em que se enfatiza o valor moral da ação sem a necessária orientação ao sobrenatural, é uma escada de Jacob sem Deus no ápice. E esta é, infelizmente, a mentalidade laicista de muitos católicos do nosso tempo: são pessoas moralmente boazinhas, pagadoras das contas do final do mês, não se metem em discussões (mormente para defender a Fé), são capazes de algumas mortificações corporais, etc. E acham que isto é ser santo. Confundem a sua própria acomodação ou covardia com “santidade”.

A propósito, veremos, noutro post, o que o doce Santo Antônio (assim descrito em todas as principais biografias) escreveu sobre hereges e heresias. E com que firmeza e contundência! Sem medinhos de ferir alheias susceptibilidades.

Em tempo1: Os Sermões de Santo Antônio — que é também de Pádua — podem ser lidos em italiano (e também no original latino) neste link.
Em tempo 2: Que tristeza infinita ver o extraordinário Santo Antônio, um dos grandes sermonistas da história da Igreja, um dos grandes místicos de todos os tempos, um homem que teve a Graça de realizar milagres estupendos, um mestre espiritual, ser transformado pela devoção popular em apenas um Santo “casamenteiro”.
Em tempo 3: Que o doce Santo Antônio fosse tão azedo com os infiéis e com os hereges, explica-se pelo fato de que o homem que está na Fé acaba tendo graças proporcionadas à sua ação prática, o que lhe dá o discernimento dos meios adequados aos fins excelentes que tem em vista. Hoje se sabe que a linguagem de Santo Antônio para combater os hereges Cátaros e Albigenses era a mais popular, e não a do latim eruditíssimo, ciceroniano, que usava em seus escritos. É óbvio que o Santo não acanalhava a linguagem ao nível dos erros dos hereges, nem usava palavrões ou coisa que o valha; apenas sabia usar o instrumento certo para passar a sua límpida mensagem, que não era outra senão a da Santa Igreja.

sábado, 2 de maio de 2009

Pequeno achado

Sidney Silveira
No excelente site Stat Veritas — que presta um inestimável serviço, com a difusão de textos do Magistério, de teólogos, de Doutores, além orações e textos sobre a Sagrada Liturgia, etc. —, encontrei por estes dias o texto “O pecado típico do liberalismo”, de Julián Gil de Sagredo. Um escrito curto, sintético, mas que faz uma argutíssima observação sobre os tipos de autonomia que diferentes tipos de liberalismo* propugnam:

1- No liberalismo teológico de Lutero, a razão se desvincula da Fé e cria o livre exame (erigido como novo árbitro da Verdade revelada).
2- No liberalismo filosófico de Descartes e de seus epígonos Kant, Fitche, Schelling e Hegel, a razão se desvincula da realidade e fabrica os vários tipos de idealismos (todos letalmente daninhos).
3- No liberalismo jurídico de Hobbes, a razão se desvincula do direito natural e acaba por promover o positivismo jurídico.
4- No liberalismo político-social de Rousseau, a razão se desvincula da natureza social do homem e inventa o pacto social.
5- No liberalismo econômico de Stuart Mill e de seus prosélitos, a razão se desvincula da hierarquia dos valores e transforma a economia (que é meio) em um fim em si mesma. Ou, na melhor das hipóteses, num meio não necessariamente vinculado ao fim (o que dá na mesma).

Esses liberalismos, de acordo com o articulista, foram destruindo, uma a uma, algumas das grandes sínteses que a Cristandade havia construído:

a) a síntese entre a vontade e a Graça, que resolvia o problema da predestinação;
b) a síntese entre o entendimento e a vontade, através da idéia que resolvia o problema da verdade;
c) a síntese entre o direito humano e o direito natural, que resolvia o valor da lei positiva;
d) a síntese entre autoridade e liberdade, que dava ao Estado (e aos indivíduos) o seu medium, o seu ponto de equilíbrio;
e) a síntese entre indivíduo e comunidade, que moldava a forma mesma da sociedade.
No decorrer do tempo, em meados do século XIX, surgiu o mais nefasto dos liberalismos — o católico (esse, do tipo de Lord Acton). Dada a sua sutileza, dada a sua engenhosa tentativa de conciliação entre contrários e contraditórios, o liberalismo católico pretende o acordo entre Cristo e Belial: um pacto entre o sistema liberal, que proclama a autonomia da razão individual e, por conseguinte, o esfacelamento do corpo social em células cada vez mais estanques, independentes e sem norte, desprovidas de uma ratio unitiva (no caso, a Fé), e o sistema católico, que sempre propugnou a heteronímia ou sujeição de ambos (indivíduo e Estado) a Deus.

Por este pequeno grande achado, o texto de Julián Gil de Sagredo vale a leitura.
* Com o termo “liberalismo”, não me refiro neste texto ao liberalismo histórico que se desenvolve na virada dos séculos XVIII para o XIX, mas a um conjunto de teoremas que embutem a visão de mundo liberal, baseada na autonomia da razão e da vontade, sob os mais variados disfarces.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

"TV" Contra Impugnantes — o conceito de verdade

Sidney Silveira
Disponibilizo um brevíssimo trecho da aula sobre a verdade — do curso livre de filosofia que estamos, eu e o Nougué, ministrando —, em que se destacam algumas características da verdade, a partir do conceito que Santo Tomás de Aquino tomou de empréstimo do filósofo judeu Isaac Israeli: a verdade é uma certa adequação entre o intelecto e a coisa (veritas est adequatio intellectus et rei). A verdade, de acordo com a sua razão formal, está no intelecto, mas em razão do seu objeto ela está, radicalmente, nas coisas — como fonte. Daí Santo Tomás dizer, num trecho do seu De Veritate, que, mesmo se não existisse a inteligência humana, haveria o ser, que é o primeiro efeito da potência divina. Noutra ocasião, postarei o restante do conjunto das observações feitas no decorrer desse encontro.
Em tempo: Não é ocioso advertir que, nesse trecho de aula de filosofia, não estou falando sobre a Verdade revelada pela Sagrada Escritura, nem sobre a verdade do Dogma — ambas absolutas, intocáveis e, em si mesmas, atemporais e imutáveis —, mas apenas introduzindo o tema da verdade, a partir do conceito de adequatio.