Sidney Silveira
Em termos metafísicos, o ato que distingue o homem dos demais entes compostos de matéria e forma provém do influxo de suas duas potências mais elevadas: inteligência e vontade. E, a propósito, o estudo da interpenetração ou mútua colaboração da inteligência e da vontade no ato propriamente humano é um dos grandes temas da obra de Santo Tomás.
Em termos metafísicos, o ato que distingue o homem dos demais entes compostos de matéria e forma provém do influxo de suas duas potências mais elevadas: inteligência e vontade. E, a propósito, o estudo da interpenetração ou mútua colaboração da inteligência e da vontade no ato propriamente humano é um dos grandes temas da obra de Santo Tomás.
Pois muito bem: relendo hoje o belíssimo livro Inteligência e Pecado em S. Tomás de Aquino, do português Celestino Pires, S.J. — obra publicada em 1961 pela Faculdade de Filosofia de Braga (Portugal), mas que continua atualíssima, entre muitas outras coisas, pela superação dos erros de J. Maritain e J. de Blic no tocante ao tema do pecado —, deparei-me com um tópico particular: a ignorância como causa do pecado. Ou, em suma: em que sentido a ignorância pode causar o mal moral na vontade? Eis, em resumo, a resposta de Santo Tomás, sumariada por Celestino Pires: a inteligência age diretamente sobre a vontade, apresentando-lhe o bem sob alguns aspectos. É esta a sua forma positiva, direta e essencial de moção sobre a vontade. Mas há também uma moção negativa, indireta e acidental da inteligência: é a moção proveniente da ignorância de alguns aspectos essenciais do bem querido pela vontade. Em suma, a inteligência move per se a vontade pelo conhecimento, e per accidens pela ignorância. Um exemplo prosaico dado pelo próprio Celestino Pires, no estudo citado, parece-me bastante ilustrativo: “Conheço que determinado objeto é bom; a vontade move-se, quer alcançá-lo porque foi proposto pela inteligência como bom. De outra forma, vejo um líquido colorido bonito e desejo bebê-lo porque julgo que é um determinado licor [por mim conhecido], mas na verdade é um veneno. No primeiro caso é o conhecimento que move a vontade: quero o objeto porque é bom. No segundo, é a ignorância: quero porque não sei que é um veneno [algo mau]. Se o soubesse, não me apeteceria bebê-lo. Como se vê, o nexo causal dos dois porquês é diferente. O primeiro exprime a causalidade própria, per se, da inteligência; o segundo, a causalidade indireta, per accidens”.
A partir deste ponto há vários aprofundamentos e distinções, mas não vou mencioná-los agora porque a citação vem a propósito de algo que preciso dizer, sobre o projeto do Contra Impugnantes e sobre algumas reações que tem suscitado — as quais acabaram por levar-me, nos últimos dias, a tipos e modos de resposta que não fazem bem nem a mim, nem ao projeto em si e nem às pessoas a quem respondi. Ou melhor: a uma pessoa em particular. Pessoa de talentos maiores que os meus, de trajetória mais longa que a minha, na fé (a qual não cabe a mim julgar), e que ainda tem muito a dar de si, com a difusão da obra de Santo Tomás — para a qual está perfeitamente capacitada.
Tenho ainda o ardor, a flama do recém-convertido, flama que não quero jamais perder, pois é um signo sensível de um grande amor. Por ordem cronológica: primeiramente, amor a Santo Tomás — principal causa instrumental da minha tardia conversão, Santo a quem amo com grande força, com gratidão, e a quem todo o esforço da editora Sétimo Selo é dedicado (a propósito, era o mínimo que eu poderia fazer em agradecimento: compartilhar, da melhor forma que pudesse, mesmo com as minhas limitações, esse bem maravilhoso, profundo, que deixou marcas indeléveis em minha alma). Lendo Santo Tomás no silêncio e na solidão durante anos, aprendi muito sobre mim mesmo, sobre o que é humano, sobre a Igreja e sobre as coisas divinas. Um verdadeiro milagre transformador, retificador, purificador, pois, se dependesse apenas da minha história passada e dos meus pecados, eu estaria hoje num buraco escuro. Em segundo lugar à Igreja, cuja doutrina igualmente amo e de cujos sacramentos dependo para não me afastar de Deus. Igreja por cujos ensinamentos recebo a notícia dos bens divinos — bens que me seriam vedados se não tivessem sido revelados por Deus e ensinados pela Igreja desde quando recebeu, do próprio Cristo, esse Magistério (sobrenatural, porque participado pela fonte divina: “Ide e ensinai”, Mt. XXVIII, 19). Depois à Virgem, a quem venero. Agora por ordem “ontológica”: primeiro a Cristo e, por participação, à Igreja da qual ele é o cabeça, depois à Virgem e, por fim, a Santo Tomás, o mais santo dos sábios e o mais sábio dos santos, como se costuma dizer. São amores que se mesclam e que é minha obrigação ordenar a um duplo fim: natural (com a concretização das obras da fé) e sobrenatural (Deus mesmo, a quem tenho o dever de louvar e adorar já nesta vida, e, se for da vontade d’Ele, na vida perfeita que há de vir). Houve, é claro, outras causas instrumentais da minha conversão (coisas, pessoas e situações), mas isto é assunto que não diz respeito a ninguém.
Vi-me compelido a escrever este depoimento porque, embora o Contra Impugnantes seja um espaço de combate — e eu tenha verdadeiro ódio aos inúmeros malefícios da heresia liberal*, em todas as suas configurações, para a fé —, flagrei-me pecando contra a caridade em algumas das respostas desta última semana. Por paixão, pois reagi a algumas provocações. E também por ignorância, num duplo sentido: pelo desconhecimento de algumas coisas implicadas na discussão de que se trata (como as reais motivações do outro), e pela não-consideração do bem de sua alma, pois sei perfeitamente que podemos, de várias maneiras, mesmo sem querer, acabar servindo de instrumento para os pecados do próximo. Daí que o amor ao próximo, até mesmo aos inimigos ou adversários, seja absolutamente necessário, pois também ele está ordenado ao fim último de todos os homens: Deus. Quantos Santos, graças a esse amor sobrenatural, efetuaram conversões espetaculares e apaziguaram ódios que, humanamente, seriam impossíveis de extinguir! São exemplos para todos nós. Ademais, é esta uma pessoa de quem (na única vez em que nos vimos) ouvi o seguinte, enquanto esperava o trem numa estação do Metrô carioca: “Quero e espero que nós sejamos amigos”.
Como é dever nosso não apenas pedir perdão a Deus pelas faltas cometidas, mas também, na medida do possível, dar humana satisfação, ou seja, reparar, aqui vai: perdoe-me, meu amigo (em Cristo), se, com ou sem razões, eu lhe respondi sem observar o dever de amar-lhe. Meu desejo é o de que nos vejamos na eternidade beatífica, e que seja esta a vontade de Deus. Rezo hoje por esta intenção. E espero sinceramente que as divergências — quaisquer que sejam e por maiores que sejam — não se tornem ocasião de pecados graves para nenhum de nós dois.
* Heresia porque, em todos os seus princípios "autonomistas" fundamentais, foi solenemente condenada pelo Magistério da Igreja, como já mostramos.