quarta-feira, 30 de junho de 2010

"Index Bonorvm": a palestra sobre o liberalismo em BH


Sidney Silveira
Agradecemos encarecidamente, eu e o Nougué, a todo o pessoal do Index Bonorvm, de Belo Horizonte, que vem abrindo espaço para palestras e atividades em defesa da fé, e, neste último final de semana (domingo, 27/06), reuniu um bom grupo de pessoas para participar da palestra dada pelo Carlos sobre o liberalismo e suas terríveis raízes fincadas na Igreja. Vejam algumas fotos deste evento aqui; em breve, pelo que eu soube, o áudio da palestra estará disponível no próprio Index Bonorvm para os interessados. Informem-se com Frederico de Castro pelo email indexbonorvm@gmail.com. A vocês, caros amigos de BH, o nosso muito obrigado! Se Deus quiser, realizaremos muitos outros eventos como este.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Católico de direita?



Sidney Silveira
Uma das teses do catolicismo liberal — que, no Brasil, tem uma face mais ou menos homogênea, fomentada e moldada por sociedades discretas ou secretas — é a de que o católico só pode ser, por definição, um sujeito de “direita”, dada a incompatibilidade patente entre o Evangelho e os esquerdismos de todo tipo. Esses grupos, à força do poder do dinheiro e de sua notável organização, vão aos poucos disseminando e aplicando à realidade brasileira conceitos alienígenas, extraídos da política norte-americana e adaptados, por uma torção lógica, às terras tupiniquins. Uma política, obviamente, autônoma ou alheia às verdades da fé, pois outra tese muito cara a esses liberais, escrutinada numa série de textos do Contra Impugnantes, é a de que o poder material não deve prestar contas ao espiritual, dada a separação entre o Estado e a Igreja, para eles uma grande conquista do mundo moderno. A ordenação do Estado à Igreja seria acidental* ou indevida. Uma intromissão, uma usurpação de direitos.

Quando menciona em meios católicos que o socialismo foi anatematizado pelo Magistério, essa gente maliciosa omite o fato de pesar sobre o liberalismo pluriforme uma condenação ainda maior, de vários Papas. Em síntese, esses liberais eliminam um dos dois gládios da Igreja militante (o principal deles), e, assim, se sentem bem mais à vontade para defender a idéia de que o católico ou será de direita ou... anathema sit! Pura cortina de fumaça para estabelecer uma mentira insidiosa, afrontosa à fé e, por conseguinte, contrária ao Magistério.

De acordo com o ensinamento da Igreja, na prática o católico não pode ser fundamentalmente nem de direita nem de esquerda, nem socialista nem liberal, ainda que acidentalmente lhe seja lícito escolher (em matérias opináveis e em situações de extremo perigo para a configuração política) candidatos que, pelo menos no essencial, não contrariem as verdades da fé.

Outra coisa: se atualmente o Reinado Social de Cristo é na prática materialmente impossível — pois para tanto o mundo democratista precisaria ser recristianizado pela doutrina tradicional da Igreja e pelo sangue dos mártires —, isto não implica que não devamos proclamá-lo como verdade pétrea, uma espécie de cláusula inegociável.

Todo cuidado é pouco com esses lobos em pele de cordeiro! Sobretudo agora em que se aproximam as eleições e eles vão vender o seu peixe...
* Como se salientou no primeiro texto da série sobre as relações entre o Estado e a Igreja (com menção a um texto do Padre Álvaro Calderón), o Cardeal Ottaviani, ao defender a tese da subordinação do Estado à Igreja, sublinha corretamente que as relações jurídicas entre ambos devem comparar-se às relações entre o corpo (Estado, plano material) e a alma (Igreja, plano espiritual superior). Mas comete o grande Cardeal o erro de afirmar que tal subordinação é acidental ou indireta, dado que o Estado seria perfeitamente sui iuris. Aqui, como diz muito bem Calderón, Ottaviani se esquece de que uma subordinação acidental é, na prática, uma não-subordinação essencial. Um exemplo? O Papa está, acidentalmente, subordinado ao seu dentista. Mas certamente não o está em relação ao fim último de todos os homens e sociedades: Deus. E dizia eu ali: “Aqui vale fazer a seguinte ressalva: é óbvio que Calderón não considera o Cardeal Ottaviani um liberal, mas cita-o para mostrar como, mesmo entre bons defensores da Tradição, pode haver erro no tocante ao tema da política, sobretudo se se parte de critérios jurídicos como se estes fossem, de todo, descontectados dos critérios teológicos e dos ensinamentos do Magistério da Igreja”.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O materialismo da campanha da fraternidade

Sidney Silveira
Após o Concílio Vaticano II, foram ganhando o beneplácito das autoridades eclesiásticas todas as mais nefastas correntes de "pensamento" e, por conseguinte, da ação a ele conexa. O liberalismo, chegado ao topo e consagrado pelo Magistério, disseminou a babel na qual se incluem, obviamente, os marxismos mais toscos que produziram coisas satânicas como a teologia da libertação, e excrescências como os carismatismos de todos os tipos. Os reflexos continuam. Um exemplo é mais essa campanha da fraternidade — peça de um materialismo mal-disfarçado por alusões acidentais a Jesus, pecado, penitência, eucaristia, etc. As palavras de ordem são "economia", "solidariedade", "mercado", "direitos", etc. Veja-se esta curiosa pesquisa feita pelo Deus lo vult.

terça-feira, 22 de junho de 2010

"TV" Contra Impugnantes

Sidney Silveira
Disponibilizamos mais dois pequenos trechos de aulas, em que se citam de passagem o problema do mal e o Demiurgo platônico.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sobre maus conselhos e avestruzes modernistas

A oitava vala de Malebolge: maus conselheiros envoltos em chamas.
Ilustração de Sandro Botticelli

Sidney Silveira
Ensina João de S. Tomás no seu Cursus Theologicus (II, q. 22), com aquela clareza que tanto apreciamos, que o nome “verdade” exclui os conceitos de tudo o que é simulado ou vazio, pois o verdadeiro está fundado e firmado no real (fundatum et firmum in re). Com isto nos indica, como bom tomista, que a verdade diz respeito fundamentalmente à realidade das coisas, dado ser uma relação categorial-formal e, ao mesmo tempo, transcendental:


a) categorial-formal porque estabelecida por nossa inteligência, que apreende imaterialmente as formas das coisas e as classifica; e
b) transcendental porque se baseia no ente real extra mentis. A propósito, como se disse neste vídeo, as coisas não são porque “Eu penso”, pois o Cogito precisa de um cogitatum, mas “Eu penso” porque elas são. Descartes e, depois dele, Kant, cabularam essa aula metafísico-gnosiológica.

Em resumo, o ser é o princípio gnosiológico inamovível. Retire-se o ser do horizonte e nada poderá ser pensado, imaginado, categorizado pelo homem. Por isso pode-se muito bem dizer que todas as patologias da alma humana provêm, radicalmente, de um afastamento do real — nessa complexa relação da inteligência com as coisas. Portanto, sem a verdade que se funda no ente e se formaliza na inteligência não nos resta senão cair num precipício intelectual e, deste, na cegueira moral, pois como pode agir bem quem não apreende minimamente a verdade das coisas?

Lembrei-me disso a propósito de mais um email recebido de um modernista católico que padece de um sestro terrível, como sói acontecer com pessoas que voluntariamente não querem analisar um problema em toda a sua amplitude (no caso, o da crise da Igreja): multiplicar as questões antes de responder às objeções. Essa mal-disfarçada tática indica uma tremenda patologia, o não querer ver a realidade das coisas, pecado este que, antigamente, tinha o nome de acídia — a ojeriza à própria excelência, muitas vezes fomentada por uma radical covardia.

Além de tal atitude representar uma burrice sem tamanho, pergunto-me: até que ponto realmente um sujeito desses não enxerga a sua mal-disfarçada tática, o estratagema primário de adiar uma conclusão que se impõe como evidência absoluta, a saber, que os frutos do Concílio Vaticano II e do Magistério posterior a ele são terríveis e causadores diretos da imensa crise atual? Assim, a essa pessoa e aos outros seus colegas que certamente me lêem (pois os modernistas neoconservadores estão entre os maiores consulentes dos textos do blog), vai um recado: por favor, não mandem novos emails, pois não me darei o trabalho de respondê-los, a menos que vocês esbocem um argumento contra os apresentados em minha contestação. Alguns inclusive já estão devidamente bloqueados de minha caixa de mensagens. Não tenho mais a mínima vontade de dialogar com vocês; a propósito, esta foi uma das razões por que não abrimos o Contra Impugnantes para comentários.

O pior é que tais avestruzes nem tiraram as fraldas e, mesmo com tamanha dissimulação e covardia, querem meter-se em discussões filosóficas e teológicas sem cujo conhecimento aprofundado (que eles não possuem) jamais poderiam dar sequer um pitaco sobre o Magistério da Igreja. Como atenuante para essa atitude de não querer ver o óbvio, engendrando mil questiúnculas para fugir às conclusões que os assustam, está a ignorância — ainda que culpável.

Por isso, o único conselho que vale para eles é: estudem, antes de se meter onde não têm competência, para não se transformarem em maus conselheiros em matéria tão grave. Lembrem-se de que, como diz o escolástico renascentista João de S. Tomás, a verdade é fundada e firmada no real. Se querem fugir dele, por favor não contem com a minha modesta ajuda... Reitero: pelo amor da Virgem, não me escrevam mais.

sábado, 19 de junho de 2010

Saramago segundo Nosso Senhor

Sidney Silveira
Vale a pena ler estes versos sobre o falecido escritor José Saramago. Que Deus se apiede da alma deste homem sacrílego e blasfemo, e, por um imenso e insondável favor de Sua infinita misericórdia, não permita que ela vá penar no inferno.

Teologia sagrada, teologia natural e o tipo de subordinação das ciências humanas a ambas


Sidney Silveira
Afirmou-se noutro texto que, de acordo com o grau de abstração de determinada ciência e, sobretudo, em razão do fato de ela buscar os seus princípios em outra, é estabelecida uma subalternação ou ordenação. Neste contexto, conforme frisa a escola tomista da melhor cepa (Cardeal Caetano, João de S. Tomás, Santiago Ramírez, Garrigou-Lagrange, G. Manser, etc.), a física ordena-se à matemática e esta, à metafísica, etc. Pois muito bem: como foi dito também que a metafísica é subalternada à teologia, cabe fazer alguns esclarecimentos, que me ocorreram após uma frutuosa conversa com o meu querido amigo e companheiro de blog, Carlos Nougué.

Na verdade, quando se frisa que a metafísica se ordena à teologia, é preciso fazer algumas distinções importantes, para que as coisas não fiquem nas brumas da obscuridade. Em primeiro lugar, destaque-se que toda ciência possui um tríplice objeto:

> Material;
> Formal-terminativo; e
> Formal-motivo.

Objeto material é tudo aquilo que, de alguma forma, cai sob a consideração da ciência. Lancemos mão de um exemplo afirmando que o objeto material da visão são todas as coisas que o olho vê: o cavalo, o céu, a pedra, etc. Por sua vez, o objeto material da física (que aborda o ente na perspectiva do movimento) são todas as coisas que se movem: o cavalo, o céu, a pedra, etc. Portanto, um mesmo objeto material pode ser comum a ciências distintas.

Objeto formal-terminativo é aquela formalidade ou perfeição que a ciência considera e estuda em todos os seus objetos materiais. No caso da visão, para prosseguirmos no exemplo, podemos dizer que é a cor (e também a forma) das coisas vistas: a do cavalo, a do céu, a da pedra, etc. No caso da física, é a consideração do motor das coisas que se movem e movem umas às outras: o cavalo, o céu, a pedra, etc. E, assim como acontece no caso do objeto material, frise-se que o mesmo objeto formal-terminativo pode ser considerado por diferentes ciências. Santo Tomás dá o exemplo disto no começo da Suma (I q.1, a.1, ad. 2), quando aponta que o fato de a terra ser redonda pode ser demonstrado por ciências como a astronomia e a física.

Objeto formal-motivo, por fim, é o meio a partir do qual uma ciência considera o seu objeto formal-terminativo. No caso do olho, é a luz pela qual a cor e a forma das coisas vistas são percebidas. No caso da física, é o movimento enquanto orientado a um fim (via ad terminum), que nos entes naturais é o primeiro na intenção e o último na realização*. Esse termo final é propriamente a razão de ser (ratio essendi) de o motor mover as coisas movidas. Vale registrar que o objeto formal-motivo, ao contrário dos outros dois, jamais pode ser compartilhável por duas ou mais ciências, pois, se o fosse, na verdade essas ciências transformar-se-iam numa só.

Assim, como afirma Santiago Ramírez em alguns de seus escritos, o objeto que especifica uma ciência é propriamente o formal-motivo ou, então, o objeto formal-terminativo enquanto afetado pelo formal-motivo.

Pois muito bem: qual seria o objeto formal-terminativo da teologia? O Angélico Doutor responde que é Deus, mas não sob a razão comum de ser, de bondade, de verdade, de unidade, etc., mas sim sob a razão própria de Divindade. Ou seja: sub ratione deitatis. É Deus em si mesmo, ou, se se preferir, todos os atributos de Deus que só podem ser conhecidos pelo homem graças à Revelação. Por esta razão é a teologia o hábito intelectivo pelo qual se estuda Deus em sua recôndita e íntima realidade. E qual seria, por sua vez, o objeto formal-motivo da sagrada teologia? Nenhum outro senão a Revelação mesma, responde Santo Tomás. Neste contexto, a sagrada teologia se distingue radicalmente da teologia natural ou teodicéia, dado que esta última procede dos princípios informados pela razão, enquanto a teologia sagrada parte dos princípios que lhe subministra a fé.

Sendo assim, quando se diz que a metafísica se ordena à teologia, como eu fiz no texto aludido, está-se afirmando que esta ordenação é, primeiramente, em relação à teologia natural, e não à teologia sagrada, pois esta última, tendo como objeto a Deus conhecido pela Revelação, não pode subordinar as outras ciências a si, se se consideram apenas os princípios de que estas partem, embora seja a mais digna e nobre de todas as ciências, dado o seu objeto formal — tanto terminativo, como motivo. Em resumo: a sagrada teologia não empresta os seus princípios à metafísica, nem as matemáticas, nem à física, etc. Contudo há mais, como veremos, mas por ora destaque-se o que afirma o Doutor Angélico, tendo em vista todas essas coisas: a sagrada teologia é uma participação da ciência de Deus no homem (Suma, I, q.1, a.3, ad.2).

Outra distinção importante: a teologia natural é a parte mais nobre da metafísica, o cume, por assim, dizer, desta última. Por isso, quando eu disse que ela subordina a si a metafísica, eu o estava fazendo por meio de uma espécie de analogia, na medida em que o conhecimento de Deus a partir dos entes é muito superior ao conhecimento do ente enquanto ente, objeto próprio da metafísica. Em suma, todo estudioso sério de metafísica, a partir de determinado ponto, ordenará as suas pesquisas ao conhecimento natural que é dado ao homem ter de Deus, o Próprio Ser Subsistente.

Refaçamos o caminho. Dissemos acima que a sagrada teologia — infinitamente superior à teologia natural — não subordina a si as demais ciências, se se consideram apenas os princípios destas. Isto porque nenhum matemático parte de um dado de fé para provar o teorema de Pitágoras, e nenhum metafísico o faz para provar que os entes participam do Ser. No entanto, se se consideram não os princípios das ciências, mas os fins, a coisa se inverte totalmente: neste caso, a sagrada teologia subordina a si todas as ciências humanas, porque o seu fim não é outro senão o conhecimento de Deus e de todas as coisas em Deus.

Ora, Deus é o fim último do homem e, portanto, de todo e qualquer conhecimento humano. Portanto, a supremacia da sagrada teologia é absoluta, porque se trata de ciência: a) universalíssima, pois se estende a todas as coisas às quais são aplicáveis os primeiros e universais princípios da razão; b) certíssima, porque demonstra as suas conclusões pela primeira e mais segura causa no plano ontológico; c) suprema, já que demonstra a partir das causas mais elevadas. Por isso Santo Tomás assinala três propriedades importantíssimas da sagrada teologia:

1- Julgar todas as demais ciências, dado que considera as supremas causas ontológicas (Suma, I, q.1, a.6, corpus; etc);
2- Ordenar todas as demais ciências ao seu fim próprio, porque considera o fim último ao qual se devem ordenar todas as coisas, sem exceção, e que lhes deve servir de norte (Suma I, q.1, a.6, corpus; etc);
3- Utilizar todas as demais ciências em seu proveito próprio, pois todas são em relação a ela um meio ou instrumento que deve conduzir ao fim último.

Além disso tudo, à sagrada teologia cabe julgar os princípios e conclusões de todas as ciências, rechaçando como errônea e inadmissível toda conclusão que contrarie ou seja incompatível com os seus ensinamentos, pois Deus não pode de maneira alguma errar.

Noutra oportunidade, quando divulgarmos certo material que está sendo preparado, falaremos de outras propriedades da sagrada teologia, de acordo com Santo Tomás e com o Magistério infalível da Igreja.
* Não é o caso de abordar neste texto a intentio que há nos entes naturais desprovidos de inteligência, como o rio, o sol, a pedra — intentio esta posta por Deus em cada criatura. Isto valeria um curso inteiro, e não desenvolvo aqui a idéia para não mudar de assunto. Infelizmente, cada vez mais a física moderna se restringe ao estudo do movimento em sua perspectiva puramente material-local.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Autoridade doutrinal do Doutor Comum (IV)

Sidney Silveira
Passado o Concílio de Trento, Santo Tomás continua tendo o beneplácito dos Papas. Clemente VIII (1592- 1605), que fora aluno de São Filipe Néri, declara o Aquinate Patrono da Cidade de Nápoles, onde nascera. De acordo com o Papa, o Aquinate mereceu a honra extraordinária de ter a doutrina aprovada pelo próprio Cristo, que lhe disse:

Paulo V (1605-1621) chama a Santo Tomás de debelador de hereges; Alexandre VII (1655-1667), por sua vez, exorta a Universidade de Louvain a seguir sempre, “com toda a fidelidade, a doutrina límpida e seguríssima do Aquinate, cuja autoridade é tão grande a ponto de ser conhecida por todos na Igreja”. Bento XIII (1724-1730) salienta que “é tanta a força e a verdade da doutrina tomista que não somente venceu as inumeráveis heresias que apareceram até o seu tempo, como teve a virtude de confundir e dissipar todas as que vieram depois”. Ressalta esse Papa que não há palavras para expressar adequadamente o valor da obra de Santo Tomás pro magnis suis in Ecclesiam meritis.

Outro Papa, Bento XIV (1740-1758), ao aprovar os estatutos do Colégio Teológico de São Dionísio, em Granada, impõe a obrigação de não se ensinar outra doutrina senão a de Santo Tomás de Aquino... sob pena de excomunhão reservada à Santa Sé! E, em sua Alocução ao Capítulo Geral da Ordem, em 1756, chama ao Aquinate Príncipe dos Teólogos, Anjo da Escola, Doutor da Igreja Universal e honra preclaríssima da Ordem dos Pregadores. Chega esse Papa a confessar publicamente que tudo quanto se acha de bom em seus escritos teológicos foi pinçado da obra do Aquinate.

Pio VI (1775-1799), Papa durante a Revolução Francesa, recomendou aos padres que não permitissem nem tolerassem de maneira alguma ut divinum Thomæ eloquium quase novella doctrina discutiatur et otiosa disputatione impugnetur. Isto porque, inter mulplices scholas, Thomas Aquinas sol doctrinæ et theologorum Antesignanus iure fuit appelatus (...). Reconhecimento do mesmo nível será feito também por Leão XII (1823-1829), que o declarou, em agosto de 1825, Patrono dos Estudos nos Estados Pontifícios.

No próximo texto da série, falaremos dos Papas por cujo influxo a obra do Aquinate teve um reconhecimento decisivo, em vista dos novos problemas fomentados pelas funestíssimas doutrinas que Gregório XVI (1831-1846) já denunciava, e que com o crescimento do liberalismo no mundo se transformaram em veneno para a fé: Pio IX (1846-1878) e, principalmente, Leão XIII (1878-1903).

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A viuvez honrosa

Sidney Silveira
Não pude deixar de me comover com este depoimento de D. Ivone Fedeli a respeito do seu falecido marido Orlando. Luto sóbrio, digno. Postura de esposa amorosa e zelosa das coisas do marido relativas à fé. Bem diz a Escritura quando afirma que a graça de uma mulher virtuosa rejubila seu marido; e o sol que se levanta nas alturas de Deus é como a beleza de uma mulher honrada, ornamento de sua casa; e ainda: como a lâmpada que brilha no candelabro sagrado, assim é a beleza do seu rosto na idade madura (Eclesiástico, 26).

Lembrei-me do trecho da Suma (I-II, q. 38., arts. 2 e 3) em que Santo Tomás, em dois artigos correlatos, aponta três remédios para mitigar a tristeza:

a) o deleite nas coisas verdadeiramente boas;
b) o pranto temperado por lágrimas, pois distende as energias psíquicas até então concentradas num ponto, trazendo alívio;
c) as condolências dos amigos que, nas tribulações, participam efetivamente do sofrimento do ente querido, razão pela qual diz o Aquinate que os amigos contristados demonstram um amor que consola.

Com isto, dado que no enterro não tive a oportunidade de falar-lhe pessoalmente, pois havia muitas pessoas, posso ao menos de longe dizer três coisas, tendo em vista os ensinamentos do nosso amado Doutor Comum da Igreja:

a) que a constância na Eucaristia, bem sumo da vida católica, lhe seja um deleite grandemente consolador;
b) que a sua tristeza seja mitigada por lágrimas de amor que, com o tempo, se transformarão em doce saudade;
c) que os amigos ajudem a aliviar a dor, para que a tristeza equilibrada jamais se transforme na tristeza má chamada desespero.
Saudações, em Cristo,
Sidney

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Física e matemática subalternadas à metafísica

Trabalho de Robert Grosseteste sobre a refração da luz


Sidney Silveira
Como se assinalou neste vídeo, há em linhas gerais três graus principais de abstração: o da física, que aborda o ente na perspectiva do movimento; o das matemáticas, que considera o ente na perspectiva das relações; e o da metafísica, que considera o ente enquanto ente — desprovido de todo e qualquer modus. Isto implica dizer que a física está subordinada à matemática e à metafísica; a matemática, à metafísica; e a metafísica, a nenhuma das duas, pois representa o grau máximo de abstração que a inteligência humana pode lograr*, razão pela qual merece ela o título de ciência por excelência, pois todas as demais a supõem fundamentalmente.

Quando se diz subordinação, quer-se dizer que uma ciência busca em outra os seus princípios. Santo Tomás dá o exemplo disso quando, no começo da Suma Teológica (I. q. 1., a. 2, resp), lembra-nos que a perspectiva parte dos princípios que proporciona a geometria, e a música, dos que lhe proporciona a aritmética, e assim por diante É exatamente este o sentido em que se afirma que uma ciência supõe a outra, à qual se subordina.

Para a mentalidade moderna, isto não parece óbvio, dada a subdivisão das ciências em especificidades cada vez mais minuciosas, o que, a par de trazer grandes avanços particulares, prejudica sobremaneira a visão do conjunto das ciências. Isto fica bastante evidente quando observamos físicos contemporâneos abordar questões (como a da origem do universo) que transcendem em absoluto à sua ciência, apoiados em mal-disfarçadas muletas metafísicas.

Tomemos por exemplo a teoria do Big Bang. E pressuponhamos, a título de exercício dialético, que esteja certa em suas linhas principais. Ainda neste caso, ficaria fundamentalmente por explicar de onde veio a matéria prima inicial que, no começo do universo, teria explodido em razão de sua máxima concentração, proporcionando o cosmos hoje em expansão. Em resumo, a teoria do Big Bang parte de um dado para o qual precisa apoiar-se numa premissa de cariz metafísico (ou teológico), sem no entanto esboçar uma resolução para o problema inicial. A propósito, a solução foi dada com razões suficientes pela metafísica do Ser de Tomás de Aquino.

Abra-se um parêntese para lembrar que a teoria do Big Bang ganhou uma primeira formulação com o bispo católico Robert Grosseteste, na virada dos séculos XII para o XIII (obviamente, com diferenças em relação às atuais variáveis da tese do universo em expansão). O fato é que, como bom realista, Grosseteste não aceitara sustentar toda a sua tese sobre uma hipótese para a qual não houvesse uma evidência ou, ao menos, um elemento corroborante. Por isso, afirmara no tratado De luce seu de inchoatione formarum, que a matéria prima seria uma substância sutil luminosa próxima do incorpóreo... criada por Deus!

A característica dessa luz primeva de Grosseteste seria o perpetuamente engendrar-se a si mesma pela difusão esférica em torno de pontos luminosos. Em síntese: dado o primeiro ponto luminoso criado por Deus, instantaneamente se engendrou, ao redor dele, tomado como centro, uma esfera luminosa, e esta se propagou em outros pontos luminosos e assim por diante, ad infinitum; esta difusão circular da luz seria o princípio ativo de todas as coisas, inclusive da corporeidade. Primeira forma criada por Deus na matéria prima, tal luz se multiplicaria indefinidamente por si mesma e se estenderia em todas as direções, distendendo a porção de matéria prima que leva consigo desde o princípio dos tempos e constituindo, assim, o universo em movimento e expansão que contemplamos.

Voltemos ao tema da subalternação das ciências. A física se subordina à matemática e à metafísica; a matemática não se subordina à física, mas sim à metafísica; e esta última não se subordina a nenhuma delas, muito menos a qualquer outra ciência, com exceção da teologia, conforme dissemos. Como diz o tomista Carlos A. Casanova no instigante livro Reflexiones metafísicas sobre la ciencia natural, nos tratados de matemática, por exemplo, não se discute o princípio de não-contradição, que está pressuposto desde o começo em todas as equações. Tudo supõe o axioma sem o qual nem haveria matemáticas. Ademais, quando o matemático ou o físico consideram-no de modo explícito, saem do seu campo de competência e têm por hábito errar bastante.

Assim, algumas proposições sobre as quais versa a matemática (axiomas chamados circa quæ, como o que afirma: duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si) não podem ser provadas por ela, mas supõem outra disciplina. Casanova aponta também os axiomas ex quibus**, como o princípio de não-contradição. Sem eles sequer poderia a matemática avançar um passo.

Na física matemática ocorre de maneira semelhante. Suas convenções, diz Casanova, se referem à realidade e ajudam a conhecê-la se são aplicadas de modo sistemático, pois nos remetem a relações quantitativas reais. Quando se trata de um fenômeno qualitativo, como uma descarga elétrica ou o calor, sempre há algo que escapa às fórmulas.

Conceitos que se situam entre os mais fundamentais da física matemática, como massa, tempo e temperatura, são precisos dentro de esquemas que os utilizam em cadeias dedutivas matemáticas, mas estas pressupõem os princípios metafísicos de que falamos.

* Não é o caso aqui de abordar a separatio, que para alguns tomistas contemporâneos, apoiados num trecho do comentário de Santo Tomás ao De Trinitate de Boécio, seria um grau de abstração superior ao da metafísica.
** Essa expressão pode ser encontrada no Comentário aos Analíticos Posteriores de Aristóteles, escrito por Santo Tomás.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A dignidade sacerdotal (II): o sacerdócio de Cristo

Garrigou-Lagrange

Sidney Silveira
Após virmos, no texto anterior, que a união hipostática é o constitutivo formal do sacerdócio de Cristo, dada a plenitude de graça e glória deste estado, e também que o seu sacerdócio é perfeito e eterno em sentido próprio, enquanto o dos padres o é por participação, prossigamos ainda abordando alguns aspectos desse divino sacerdócio.

Um pergunta que ocorreu a muitos, em diferentes momentos da história da Igreja, foi a seguinte: porventura influi o sacerdócio de Cristo em cada uma das Missas que se celebram? Duns Scot e, depois dele, Molina, afirmavam que Cristo é o oferente principal porque instituiu o sacrifício da Missa e mandou que o oferecessem em seu nome, mas atualmente já não seria Ele quem oferece o sacrifício. O argumento destes dois teólogos que descambaram para a heresia é de que não se podem multiplicar, em Cristo Deus-Homem, os atos de sua oblação interna feita na Cruz.

Erraram rotundamente estes e outros teólogos que afirmaram coisas semelhantes — alguns deles inclusive transformando-se em grandes heresiarcas. A verdade católica diz que Cristo é o oferente não apenas virtual do sacrifício de todas as Missas, mas também atual, e não por uma espécie de multiplicação material de sua oblação interna, pois esta foi feita perfeitissimamente uma só vez na Cruz, como lembra-nos Garrigou-Lagrange, de quem extraímos os conceitos desta série de textos: a oblação de Cristo, dada a plenitude da união hipostática, foi eterna e permanente, razão pela qual um mesmo é (hoje e sempre) o oferente principal (Cristo), com a diferença de que o sacrifício hoje é incruento e não doloroso. Ademais, a satisfação dada por Nosso Senhor na Cruz é meritória para sempre. Tendo isso em vista, afirma o Concílio de Trento que “uma mesma é a hóstia e um mesmo é hoje o oferente pelo ministério dos sacerdotes” (Denz. 940). Sendo assim, Cristo é o oferente principal atual de todas as Missas.

Ademais, Santo Tomás (Suma, III, q. 62, a.5) afirma que a humanidade de Cristo é instrumento unido à divindade para que se dêem todos os efeitos sobrenaturais, e instrumento consciente e voluntário. Isto quer dizer que Jesus, como homem, quer concorrer fisicamente para os efeitos sobrenaturais que se dão em cada circunstância concreta. Daí dizer ali também o Aquinate que entre esses efeitos está o da transubstanciação e, por conseguinte, Cristo, como homem, quer toda transubstanciação que atualmente se realiza. Ele quis isto enquanto vivia como homem na terra, dada a sua ciência infusa e também o fato de que, mesmo na terra, já gozava da visão beatífica e previu e quis cada uma das Missas como aplicações posteriores do sacrifício da Cruz (Suma, III, q. 10, a.2; q. 11, a.1).

Vale também dizer que a oblação interna perdura em Cristo glorioso, sem interrupção. Assim, os efeitos atuais que têm a Cristo como causa subordinam-se ao sacrifício da Cruz. Daí ter afirmado Nosso Senhor, ainda na Cruz, que “Tudo está consumado”, razão pela todas as Missas aplicam — per participationem — os méritos da Paixão e têm a Cristo como oferente principal.

Em resumo, é certíssimo que Cristo — sacerdote eterno — queira dar-se em comunhão a cada um dos fiéis que o recebe, e mais certo ainda é o fato de que queira oferecer-se atualmente ao Pai, cumprindo os quatro fins do seu divino sacrifício: latrêutico (adoração), eucarístico (ação de graças), propiciatório (expiação) e impetratório (súplica).

Como se vê, por ser a participação de tão alto mistério de um sacerdócio divino, o sacerdócio dos padres tem uma incomensurável dignidade. Assim, os sacerdotes que, estando bem formados, aspiram a uma união efetiva com Cristo — para a qual Deus nunca deixará de dar graças proporcionadas a tão excelso fim —, certamente serão ministros de um "ato teândrico de infinito valor", como diz Garrigou no já citado A União do Sacerdote com Cristo, Sacerdote e Vítima.

O grande sacerdote e teólogo francês encerra esta parte de seu livro lembrando que o sacrifício da Missa (que tem a Cristo como oferente principal atual) e o da Cruz são o mesmo substancialmente, embora difiram os modos de oblação: na Cruz ela foi cruenta, dolorosa e meritória; agora é incruenta, sacramental, indolor e não meritória, dado ser a aplicação da satisfação dos méritos infinitos... da Paixão e morte na Cruz.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Falecimento do Prof. Orlando Fedeli

Sidney Silveira
Este "post" é apenas para comunicar, com pesar, o falecimento, no final da tarde de hoje (09/06), do Prof. Orlando Fedeli, do site Montfort. Que Deus, em sua infinita Bondade e Misericórdia, receba a sua alma combatente! Peço a todos que nos lêem: rezem nesta intenção.

terça-feira, 8 de junho de 2010

São Bernardo: carta 190 ao Papa Inocêncio II


Sidney Silveira
Como tira-gosto do próximo livro da Sétimo Selo (“As Heresias de Pedro Abelardo”), do grande Bernardo de Claraval, que será apresentado na segunda semana de setembro de 2010 em uma faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro*, transcrevo a seguir um trecho do apêndice que acompanhará a referida edição: uma carta de São Bernardo ao Papa Inocêncio II, na qual o grande abade cisterciense faz algo que hoje deploram os modernistas — a defesa da fé.

Dadas as circunstâncias do momento presente da História da Igreja, trata-se de uma obra exemplar, um modelo de ação para todos os católicos que estão em condições de defender, com amor e coragem, a doutrina de sempre, refutando os erros perniciosos que acarretam grande perigo de perda das almas.

Ler São Bernardo, ademais, é um grande deleite. Que estilo! Que oratória bem composta, com tudo no lugar: exórdio, narração, argumentação, peroração, invocação, confirmação e conclusão! Leiam e concluam por si mesmos:

Carta 190 ao Papa Inocêncio II

“ (...) Desde as primeiras linhas de sua teologia, ou antes, de sua estultologia, Abelardo define a fé como uma opinião, como se fosse lícito a cada um pensar e dizer o que bem entender, como se os mistérios da nossa fé dependessem do capricho do espírito humano, quando, ao contrário, se apóiam nos sólidos e inquebrantáveis fundamentos da verdade. Mas, se a nossa fé é duvidosa, nossa esperança é vã, e nossos mártires são insensatos por ter sofrido milhares de tormentos por uma recompensa incerta e ter começado um exílio eterno por uma morte dolorosa, em vista de uma felicidade que não lhes estava assegurada. A Deus não agrada que tenhamos tais idéias de fé e de esperança. O que a fé nos propõe para crer funda-se na verdade mesma, demonstrada pela Revelação, assegurada pelos milagres, consagrada pela conceição da Virgem, selada pelo sangue do Salvador e confirmada por sua gloriosa ressurreição. Ora, tantos testemunhos são invencíveis; enfim, para um acréscimo de certeza, o Espírito Santo testemunha a nosso espírito que somos filhos de Deus. (...)

“Mas eu vos rogo que considere o restante. Não trato aquelas proposições segundo as quais Nosso Senhor não teve o espírito de temor; que o temor puro e casto não subsistirá no outro mundo; que após a consagração do pão e do vinho as espécies que restam ainda subsistem no ar; que os demônios se servem das pedras e das ervas para produzir certas impressões em nossos sentidos e para despertar nossas paixões, graças ao fato de sua sutil malignidade ensiná-los a discernir nas coisas naturais uma virtude própria para excitá-las; que o Espírito Santo é a alma do mundo, e por conseguinte o mundo, que é um animal segundo Platão, é um animal mais excelente porque tem por alma o próprio Espírito Santo. E a esse respeito, querendo fazer de Platão um cristão, ele próprio se mostra pagão. Não trato todos esses pontos, bem como muitos outros devaneios, para me voltar para coisas muito mais importantes, conquanto não tenha intenção de responder a elas plenamente, porque isso exigiria grossos volumes; não falo senão do que não posso calar.

“Esse temerário doutor vai até perscrutar os segredos de Deus mesmo, e ousa atacar o mistério de nossa redenção, em seu Livro das Sentenças e em sua Explicação da Epístola aos Romanos; li esses dois tratados, onde ele não começa por expor, a respeito deste ponto, o sentir unânime dos Padres senão para rejeitá-lo em seguida, gabando-se de ter um melhor (...).

* Darei as informações detalhadas sobre este lançamento noutro “post”.
Em tempo: A quem quiser fazer desde agora a reserva do livro de São Bernardo, peço que envie um email para sidney@edsetimoselo.com.br, com os seguintes dizeres no "assunto": Livro de São Bernardo. Assim que chegar o momento, enviarei as informações para os que, desde já, mostraram interesse em adquirir o livro. Digo isto porque temo que ocorra o mesmo que sucedeu à primeira edição do livro do Padre Calderón (“A Candeia Debaixo do Alqueire”): esgotou-se rapidamente e ainda não o reimprimimos — fato que faremos assim que pudermos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Homem: animal de verdades — assim na terra como no céu

A escada de Jacó - Gustave Doré


Sidney Silveira
Diz o Padre Garrigou-Lagrange, no hoje clássico Le réalisme du principe de finalité, que a inteligência ordena-se por natureza ao conhecimento do real. Quer com isto dizer o grande teólogo que a inteligência humana possui um telos, ou seja, uma finalidade na qual repousa em todos os seus raciocínios: a posse formal da verdade. Por esta razão alguém já disse que o homem é um animal de verdades, pois toda a sua atividade cognoscitiva parte da adequação, em algum grau, entre a inteligência e as coisas (dessa apreensão imaterial da forma dos entes a que chamamos “verdade”) e encontra o seu fim, também, em verdades a partir das quais se descortina um novo horizonte de conteúdos inteligíveis; este, por sua vez, servirá de insumo para novas conclusões e evidências — infindamente.

Toda verdade parte do ser (ou mais propriamente do ente, que é o que “tem ser”) e se ordena ao ser. Noutra formulação, pode-se dizer que sem o ser, não haveria verdades, pois estas serão sempre a apreensão de um aspecto do ser pela inteligência. Ora, sendo o próprio ser (ipsum esse) ato puro infinito, isto quer dizer que a verdade é inesgotável para toda e qualquer inteligência finita, como, a propósito, é a do homem. Assim, por mais que materialmente avance a ciência, ela sempre apresentará um déficit abismal em relação ao mistério do ser que é, por assim dizer, o invólucro das verdades a que o homem pode chegar.

Tal mistério do ser não se esclarecerá totalmente, de acordo com Santo Tomás, nem mesmo na visão beatífica da essência divina, pois ainda que compreendamos todas as coisas em Deus, jamais O poderemos compreender em si mesmo. A ciência dos bem-aventurados — a mais elevada de todas — é decerto alumbramento, êxtase puro, em virtude das incontáveis verdades de que a inteligência formalmente tomará posse nesse estado, mas ainda aí haverá uma região de sombra e de ininteligibilidade.

Numa situação dessas, em que teremos a ciência perfeita de todas as coisas, dado as contemplarmos em Deus, causa causarum, só haverá margem para especulações teológicas, pois nada mais ficará por saber senão relativamente a algum aspecto do Ser de Deus. Portanto, se a ciência teológica já é, em nosso atual estado de homo viator, a ciência por excelência (tanto especulativa como prática, conforme Suma Teológica, I, q1., art.5), ela o será ainda mais no céu, onde todas as demais ciências estarão resolvidas em seus princípios e fins.

Por aí se vê o seguinte: seja agora, seja na eternidade, em seu labor a inteligência do homem tem e terá sempre a verdade como ponto de partida e de chegada. Podemos representar este caminho pela escada de Jacó, tendo em vista que cada degrau nela pode ser a imagem de um dos infinitos aspectos do ser palmilhados pela inteligência.

Com a graça de Deus.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Papa fala sobre Santo Tomás


Sidney Silveira

Como estou fazendo um sumário da autoridade doutrinal de Santo Tomás na Igreja, desde a sua morte até os dias atuais, acho que vale mencionar aqui a Catequese do Papa Bento XVI, feita anteontem (02/06), sobre Santo Tomás. Depois — ao final daquela série — farei alguns comentários, pois agora falta-me tempo. Leiam-se, a seguir, alguns trechos dessa fala do Papa, que destaquei do texto traduzido pelo blog Oblatvs. Veja-se também o vídeo completo aqui, no site do Vaticano.

"Caros irmãos e irmãs,

Depois de algumas catequeses sobre o sacerdócio e de minhas últimas viagens, retornamos hoje ao nosso tema principal, isto é, à meditação sobre alguns dos grandes pensadores da Idade Média. Havíamos visto, na última vez, a grande figura de São Boaventura, franciscano, e hoje desejo falar daquele que a Igreja chama Doctor communis: isto é, Santo Tomás de Aquino. (...) Ele foi chamado também Doctor Angelicus, provavelmente por suas virtudes, em particular a sublimidade do pensamento e a pureza de vida.

Tomás nasceu entre 1224 e 1225 no castelo que a sua família, nobre e abastada, possuía em Roccasecca, nas proximidades de Aquino, vizinho à célebre abadia de Montecassino, aonde foi enviado pelos pais a fim de receber os primeiros elementos de sua instrução. Alguns anos depois se transferiu para a capital do Reino da Sicília, Nápoles, onde Frederico II fundara uma prestigiosa universidade. Ali era ensinado, sem as limitações vigentes alhures, o pensamento do filósofo grego Aristóteles, no qual o jovem Tomás foi introduzido, e cujo grande valor subitamente intuiu. Mas sobretudo, naqueles anos transcorridos em Nápoles, nasceu a sua vocação dominicana. Tomás foi, na verdade, atraído pelo ideal da Ordem fundada poucos anos antes por São Domingos. Todavia, quando revestiu o hábito dominicano, a sua família se opôs a esta escolha e ele foi constrangido a deixar o convento e a passar algum tempo com a família.

Em 1245, já maior de idade, pôde retomar o seu caminho de resposta ao chamado de Deus. Foi enviado a Paris para estudar teologia sob a direção de um outro santo, Alberto Magno, sobre o qual falei recentemente. Alberto e Tomás cultivaram uma verdadeira e profunda amizade e aprenderam a estimar-se e a se querer bem, a ponto de Santo Alberto querer que seu discípulo o seguisse a Colônia, aonde o próprio Alberto fora enviado pelos Superiores da Ordem a fundar uma escola de teologia. Tomás teve então contato com todas as obras de Aristóteles e de seus comentadores árabes, que Alberto esclarecia e explicava.

Naquele período, a cultura do mundo latino fora profundamente estimulada pelo encontro com as obras de Aristóteles, que permaneceram desconhecidas por muito tempo. Tratava-se de escritos sobre a natureza do conhecimento, sobre ciências naturais, sobre metafísica, sobre a alma e sobre a ética, ricos de informações e de intuições que pareciam válidas e convincentes. (...). Muitos acolheram com entusiasmo, até mesmo com entusiasmo acrítico, esta enorme bagagem do saber antigo, que parecia poder renovar vantajosamente a cultura, abrir totalmente novos horizontes. Outros, porém, temiam que o pensamento pagão de Aristóteles estivesse em oposição à fé cristã e se recusavam a estudá-lo. Encontraram-se duas culturas: a cultura pré-cristã de Aristóteles, com sua radical racionalidade, e a clássica cultura cristã. Certos ambientes foram levados à rejeição de Aristóteles também pela apresentação que de tal filósofo fora feita pelos comentadores árabes Avicena e Averróis. De fato, foram eles que transmitiram ao mundo latino a filosofia aristotélica. Por exemplo, estes comentadores haviam ensinado que os homens não dispõem de uma inteligência pessoal, mas que neles há um único intelecto universal, uma substância espiritual comum a todos, que opera em todos como “única”: portanto uma despersonalização do homem. Um outro ponto discutível veiculado pelos comentadores árabes era aquele segundo o qual o mundo é eterno como Deus. Compreensivelmente surgiram, no mundo universitário e no eclesiástico, disputas sem fim. A filosofia aristotélica estava sendo difundida inclusive entre o povo simples.

Tomás de Aquino, na escola de Alberto Magno, desenvolveu uma operação de fundamental importância para a história da filosofia e da teologia, eu diria, para a história da cultura: estudou a fundo Aristóteles e os seus intérpretes, buscando novas traduções latinas dos textos originais gregos. (...) Comentou grande parte das obras aristotélicas, distinguindo nelas o que era válido daquilo que era dúbio ou que devesse ser recusado totalmente, mostrando a consonância com os dados da Revelação cristã e utilizando ampla e agudamente o pensamento aristotélico na exposição dos escritos teológicos que compôs. Em definitivo, Tomás de Aquino mostrou que entre a fé cristã e a razão existe uma natural harmonia. E esta foi a grande obra de Tomás, que naquele momento de conflito entre duas culturas – momento no qual parecia que a fé devia dobrar-se diante da razão – mostrou que ambas caminham juntas, que quando aparecia uma razão não compatível com a fé não era razão, (...); assim ele criou uma nova síntese que formou a cultura dos séculos seguintes.

Por seus excelentes dotes intelectuais, Tomás foi chamado a Paris como professor de teologia na cátedra dominicana. Ali também deu início a sua produção literária, que prosseguiu até a morte, e que há algo de prodigioso: comentários à Sagrada Escritura, porque o professor de teologia era sobretudo intérprete da Escritura, comentários aos escritos de Aristóteles, obras sistemáticas poderosas, entre as quais se destaca a Summa Theologiae, tratados e discursos sobre vários temas. Para a composição de seus escritos era coadjuvado por alguns secretários, entre os quais o confrade Reginaldo de Piperno, que o seguiu fielmente e ao qual se ligou por uma profunda e sincera amizade, caracterizada por uma grande familiaridade e confiança. Esta é uma característica dos santos: cultivam a amizade, porque ela é uma das manifestações mais nobres do coração humano e que tem em si algo de divino, como o próprio Tomás explicou em algumas quaestiones da Summa Theologiae, na qual escreve: “A caridade é a amizade do homem com Deus principalmente, e com os seres que a Ele pertencem” (II, q. 23, a. 1).

Não permanece muito tempo e estavelmente em Paris. Em 1259 participou do Capítulo Geral dos Dominicanos em Valenciennes, onde foi membro de uma comissão que estabeleceu o programa de estudos na Ordem. Depois, de 1261 a 1265, Tomás estava em Orvieto. O Papa Urbano IV, que nutria por ele uma grande estima, lhe confiou a composição dos textos litúrgicos para a festa de Corpus Christi, que celebramos amanhã, instituída em seguida ao milagre eucarístico de Bolsena. Tomás teve uma alma autenticamente eucarística. Os belíssimos hinos que a liturgia da Igreja canta para celebrar o mistério da presença real do Corpo e do Sangue do Senhor na Eucaristia são atribuídos à sua fé e à sua sabedoria teológica. De 1265 até 1268 Tomás residiu em Roma, onde, provavelmente, dirigia um Studium, isto é, uma Casa de estudos da Ordem, e onde começou a escrever a sua Summa Theologiae.

Em 1269 foi novamente chamado a Paris para um segundo ciclo de magistério. Os estudantes – compreende-se bem – eram entusiastas de suas aulas. Um ex-aluno seu declarou que uma grande multidão de estudantes seguia os cursos de Tomás, tanto que as salas mal podiam comportá-los e acrescentava, com uma anotação pessoal, que “escutá-lo era para ele uma felicidade profunda”. A interpretação de Aristóteles dada por Tomás não era aceita por todos, mas mesmo os seus adversários no campo acadêmico, como Godofredo de Fontaines, por exemplo, admitiam que a doutrina de frei Tomás fosse superior às outras por utilidade e valor e servia como corretivo às de todos os outros doutores. Talvez também a fim de subtraí-lo às intensas discussões em curso, os Superiores o enviaram uma vez mais a Nápoles, à disposição do rei Carlos I, que pretendia reorganizar os estudos universitários.

Além do estudo e do ensino, Tomás se dedicou também à pregação ao povo. E também o povo, de boa vontade, ia escutá-lo. Eu diria que é verdadeiramente uma grande graça quando os teólogos sabem falar com simplicidade e fervor aos fiéis. O ministério da pregação, por outro lado, ajuda os próprios estudiosos de teologia com um saudável realismo pastoral, e enriquece de vivos estímulos suas pesquisas.

Os últimos meses de vida terrena de Tomás permanecem circundados por uma atmosfera particular, diria até misteriosa. Em dezembro de 1273 chamou o seu amigo e secretário Reginaldo para comunicar-lhe a decisão de interromper todo trabalho, porque, durante a celebração da Missa, havia compreendido, em seguida a uma revelação sobrenatural, que tudo quanto havia escrito até então era somente “um monte de palha”. É um episódio misterioso que nos ajuda a compreender não somente a humildade pessoal de Tomás, mas também o fato de que tudo aquilo que conseguimos pensar e dizer sobre a fé, não obstante elevado e puro, é infinitamente superado pela grandeza e pela beleza de Deus, que nos será revelada em plenitude no Paraíso. Alguns meses depois, sempre mais absorvido em uma profunda meditação, Tomás morreu enquanto viajava para Lyon, para onde se dirigia a fim de tomar parte no Concílio Ecumênico convocado pelo Papa Gregório X. Expirou na Abadia cisterciense de Fossanova, depois de ter recebido o Viático com sentimentos de grande piedade.

A vida e a doutrina de Santo Tomás de Aquino se poderiam resumir em um episódio transmitido pelos antigos biógrafos. Enquanto o Santo, como seu costume, estava em oração diante do Crucifixo, logo pela manhã na Capela de São Nicolau, em Nápoles, Domingos de Caserta, o sacristão da igreja, ouviu desenvolver-se um diálogo. Tomás perguntava, preocupado, se tudo o que havia escrito sobre os mistérios da fé cristã estava correto. E o Crucifixo responde: “Tu falaste bem de mim, Tomás. Qual será a tua recompensa?”. E a resposta que Tomás deu é aquela que também nós, amigos e discípulos de Jesus, queremos sempre dar-lhe: “Nada além de Ti, Senhor!”.

BENEDICTUS PP. XVI
2 de junho de 2010

terça-feira, 1 de junho de 2010

Novo livro do Padre Calderón ("A Religião do Homem"), e nova Semana de Humanidades em La Reja



Carlos Nougué

I) Acaba de publicar-se na Argentina um novo livro do R. P. Álvaro Calderón, Prometeo ― La religión del hombre (Ensayo de una hermenéutica del Concilio Vaticano II), que, como a sua anterior obra (A Candeia debaixo do Alqueire...), representa o que verdadeiramente podemos chamar de “tomismo vivo”: aquele que, solidamente fundado no realismo aristotélico-tomista e no magistério infalível da Igreja, e sempre em defesa da Realeza de Cristo, resolve de modo cabal os principais problemas com que nós, os católicos, deparamos na atualidade.

No conjunto de questões disputadas que constituem A Candeia... o Padre Calderón resolvia a premente questão da obediência devida ao magistério pós-conciliar. Com respeito a Prometeo... lê-se no site oficial do Distrito da América do Sul da FSSPX (http://www.fsspx-sudamerica.org/fraternidad/index.php):

“Bento XVI começou seu pontificado com uma tremenda confusão: o Concílio Vaticano II não teria sido bem compreendido. Ora, tudo foi mudado pelo Concílio: a liturgia, o catecismo e o direito canônico, a vida dos seminários, dos conventos e das paróquias, e quarenta anos depois um Papa que foi teólogo do Concílio afirma que ainda não se deu a correta interpretação dele. A comoção nos meios eclesiásticos não podia ser maior, pois tal afirmação põe em questão toda a reforma conciliar.

A maioria dos bispos se reúne para defender a hermenêutica vulgata — chamemo-la assim — do Concílio como novo começo, que animou as reformas. A Fraternidade São Pio X de certo modo está de acordo, embora sem o eufemismo: a única hermenêutica possível é a de ruptura com a tradição. Em contrapartida, os grupos tradicionalistas amparados sob as asas da Comissão “Ecclesia Dei” se apressam a dizer que pode e deve dar-se a hermenêutica da continuidade. O momento é solene. Roma convidou a Fraternidade São Pio X a discutir sobre o Concílio — horror! gritam os bispos — com a intenção, certamente, de mostrar-lhe um Vaticano II sem contradição na história dos dogmas.

Neste contexto, o Padre Álvaro Calderón, professor desde há muito tempo do seminário argentino da FSSPX, ensaia uma hermenêutica do Concílio que reúne duas notáveis qualidades. Primeira, indica de maneira muito precisa os múltiplos pontos doutrinais em que o Concílio rompe com a tradição, e, mais ainda, patenteia certas questões difíceis que foram usadas como véus. Segunda, traça as linhas de um processo contínuo que vai do humanismo e do renascimento ao “novo humanismo” conciliar. Embora o aspecto histórico esteja menos desenvolvido [no livro], permite porém entender por que Bento XVI defende que o Concílio não é algo totalmente novo: está em continuidade com cinco séculos de catolicismo liberal"[grifo nosso].

Estas duas qualidades não podem reunir-se num livro de leitura fácil. Mas é que não é fácil a leitura do Concílio. No entanto, ainda que o leitor possa perder detalhes que exigiriam estudo para ser apreciados, verá porém que o autor recolhe as peças de tantas discussões que haviam deixado perplexos os católicos, e as encaixa entre si sem forçá-las, como quem resolve um quebra-cabeça. Aqui está, sem dúvida, o mérito principal da obra, e o que faz pensar que se deu um importante passo na compreensão do maior acontecimento da era moderna.”

Este livro fundamental, cuja edição é do próprio autor, tem 328 páginas, custa $ 32 mais despesas de correio, e pode ser adquirido no seguinte link:
http://www.fsspx-sudamerica.org/fraternidad/libreria.php (ou pelo seguinte e-mail: fsspx.sudamerica@gmail.com).

II) Outra importante notícia é que tornará a realizar-se, entre 15 e 25 de julho, ainda no seminário de La Reja, as Jornadas de Humanidades, que, lembremo-nos, foram suspensas no ano passado devido à influenza A H1N1.

As Jornadas para os rapazes têm por título “¿Evolución o Creación?”, e os temas das conferências serão, portanto, os mesmos que se tratariam no ano passado: evolucionismo, big bang, Gênesis, arte, etc. Entre os conferencistas, o Padre Calderón, o Padre José Maria Mestre, o biólogo Raúl Leguizamón, o Professor Carlos Pérez Agüero, o Professor Casermeiro e o Professor Marcelo Gustavo Imbrogno, além do superior do distrito, Rev. Padre Christian Bouchacourt.

Haverá também Jornadas especiais para as moças, sob o título: “El plan para destruir a la mujer cristiana”

As inscrições (lembrem-se de que o número de vagas é limitado) se devem fazer, respectivamente, pelos seguintes links:
http://www.fsspx-sudamerica.org/fraternidad/jornadas10.php e http://www.fsspx-sudamerica.org/fraternidad/jorchicas10.php.

Adendo do Sidney: Li A Religião do Homem... há três anos, numa versão eletrônica enviada pelo próprio Padre Calderón. É, em certo sentido, um livro ainda mais aterrador do que A Candeia..., pelas questões que suscita e a forma como o teólogo lhes dá solução magistral. Mas também se trata de uma obra mais acessível, em razão do formato de texto corrido, ao passo que A Candeia..., sendo uma complexa disputatio, requer um conhecimento prévio do método escolástico e, também, de algumas das principais técnicas de demonstração filosófica. Parece-me igualmente importante frisar que não se trata da versão (reduzida) que circula pela internet. A forma final do livro foi aumentada consideravelmente.