Sidney Silveira
Já se disse noutra oportunidade que o liberal, quando interessado por arte, consegue no máximo ser um esteta. Isto porque o modo fragmentário como considera o indivíduo humano (um ente cindido entre potências dispersas não hierarquizadas entre si) e as sociedades (um amontoado de grupos pluralistas e libertários, onde não existe “bem comum” e a noção de autoridade dilui-se) acaba moldando, também, a forma como concebe o fenômeno estético. Na prática, o modelo de arte e de sociedade, para o liberal, é um antimodelo, ou seja: como não há — na sociedade liberal-democratista — um fim a ser necessariamente buscado, mas apenas a afirmação da intocabilidade das liberdades individuais, naturalmente nenhum modelo poderá ser proposto. Igualmente, não poderá haver nenhuma sensibilidade comum que a configure e caracterize; nenhum símbolo unitário que a represente; nenhum paradigma transcendente ao qual se conforme. Estamos, pois, no reino da multiplicidade. No reino da quantidade e da dispersão. No reino da contínua divisão.
Já mostramos, em inúmeros textos do blog, o quão equívoca é a tese da “consciência individual autônoma”, em termos metafísicos e, também, antropológicos. Trata-se de uma tese que não fica de pé diante de uma verdadeira objeção filosófica (até agora, os nossos adversários liberais não apresentaram nenhuma resposta às muitas aporias expostas no Contra Impugnantes, quanto a este ponto). Pois bem: demonstrada a absoluta insuficiência, a falácia da tese da “consciência individual autônoma”, passaremos a expor as conseqüências, no tocante à arte, desta insana idéia.
Em sociedades nas quais tudo deve dobrar-se às “liberdades” individuais, a pretexto de que estas sejam defendidas da “opressão” externa (já que qualquer autoridade exterior à consciência do indivíduo não é, nelas, propriamente legítima, mas apenas tolerada em ocasiões excepcionais ou limítrofes), naturalmente as manifestações humanas tendem a se multiplicar ad infinitum, pois lhes faltam balizas, lhes falta um norte, lhes falta, enfim, um cânon. Isto observamos, grandemente, na expressão das artes contemporâneas. Trata-se de uma evidência insofismável, na medida em que a arte — na “cosmovisão” liberal em que o mundo mergulha — é caracterizada por:
1- Heterogeneidade de propostas estéticas;
2- Experimentalismo constante;
3- Criação permanente de novos “paradigmas”;
4- Constante tentativa de superação de linguagens anteriormente aceitas;
5- Constante necessidade de renovação:
6- Amor ao “novo” e ódio ao antigo;
7- Multiplicidade programática de correntes conflitantes entre si;
8- Busca incessante por novos materiais;
9- Busca incessante por “originalidade”;
10- Busca incessante por manifestações “chocantes”;
11- Perda da noção de arte sacra;
12- Separação entre estético e ético, ente belo e bom;
13- Multiplicidade de interpretações sobre o fenômeno estético;
14- Tendência ao imoralismo;
15- etc.
Essa azáfama de correntes e manifestações artísticas, essa tresloucada busca por novos códigos, essa idolatria a efemérides e banalidades, essa paixão pelo que é ordinário e fugaz, essa ânsia febril por novidades — tudo isso são signos veementes da cultura liberal. Signos da perda do sentido de unidade que, até a difusão do liberalismo pelo mundo, caracterizava cada cultura, cada povo. Signos da perda da identidade, da perda das marcas mais distintivas de uma gente, de uma nação, conseqüência direta do liberalismo, pois não pode identificar-se consigo mesmo nada que se perca em meio à multiplicidade, em meio a indivíduos que são como mônadas impermeáveis, autônomas, isoladas. Não há, portanto, nessa imensa policromia da cultura liberal, uma identidade estética — nem moral —, em sentido próprio. Há, sim, uma babel de manifestações que jamais poderão compor uma fisionomia artística, uma fisionomia dos valores de um povo. Compõem, sim, uma colcha multifacetada de retalhos, de valores entre si colidentes, todos “consagrados” e “legitimados” em nome da liberdade de expressão.
Contraponha-se tal paisagem labiríntica ao que é a arte numa sociedade não liberal, ou seja: não pluralista. Nela há uma sensibilidade comum, que a caracteriza; há um símbolo unitário prevalecente, que a representa; há um paradigma transcendente, ao qual se conforma. E este seu sentido de unidade, longe de representar uma amarra, é a sua pujança maior, a base para que a arte alcance a região dos arquétipos da condição humana, por meio de um profícuo simbolismo. Vejamos, a título de exemplo, a Cristandade em seu ápice medieval, trazendo aos nossos leitores um trecho do estudo de João Acácio Aguiar de Castro, na introdução ao livro O sentido do belo no século XII, que identifica uma matriz estruturante para o labor estético daquele período:
“Destacaríamos quatro [precondições para o tipo de manifestação artística da época]: a existência de uma mathesis universalis, a língua latina; a certeza presente em todos os autores [artistas] da revelação divina da Sagrada Escritura, logo de uma aferição possível de todos os saberes; a consciência de pertença a uma comunidade que, não tendo hiatos na história, representa ela mesma a cultura dentro do espaço e tempo históricos, as patrísticas grega e latina; finalmente, a consciência de que todo o saber culto se configura como uma philosophia perennis ou theologia perennis, onde o tempo aponta inevitavelmente para a eternidade e onde a missão do saber, também do saber estético, não é tanto inovar, mas sobretudo repetir, dando continuidade à tradição. (...) E as noções de simetria, harmonia, proporção (...) só podem ser entendidas como emanação, concretização ou imitação do Belo transcendente”.
Ora, como diz o mesmo João Acácio noutro trecho do seu livro, a harmonia não é senão a redução do múltiplo no uno, do desigual no igual e do diverso no homogêneo. E, numa sociedade não liberal, essa harmonia parte, principalmente, da ordenação de tudo, nas grandes manifestações artísticas, ao transcendente. Enfim, a Deus. É arte que, eminentemente, simboliza as coisas sagradas.
Vale dizer outra coisa: ainda que se encontrem, nas sociedades não liberais do passado, diferentes sintaxes simbólicas, diferentes manifestações artísticas, o fato é que nelas a arte sempre tende à unidade, à perenidade, à ordenação dos meios a fins que lhes sejam adequados e proporcionais, e, por fim, à transcendência. São orientadas, portanto, por um paradigma, por um modelo de excelência que deve ser buscado — e não posto abaixo, revolucionariamente. E esta é a força da sua beleza: a de ser, literalmente, arte canônica, isto é, ter medidas e modelos universais. Ora, isto é facilmente verificável, por exemplo, nas catedrais góticas, que se baseavam em um cânon arquitetônico-simbólico, cânon que exteriormente demarcava o seu maravilhoso estilo, ainda que materializado em diferentes templos com características próprias; assim também no canto gregoriano; no canto polifônico; em certas representações pictóricas; etc.
Com a instauração do liberalismo em escala mundial (a sociedade globalizada, da qual não há mais como escaparmos, ai de nós!), estamos, no caso da arte, condenados ao esteticismo — que é a demolição de todos os cânones em favor de uma arte despojada do seu sentido espiritual profundo, do seu horizonte ético, da sua configuração simbólica que aponta para o mistério do ser e da vida humana. Eu, particularmente, não conheço nenhum liberal que, ao escrever sobre arte, produza algo além de cultura de almanaque (os seus blogs e revistas são exemplos gritantes).
Já se disse noutra oportunidade que o liberal, quando interessado por arte, consegue no máximo ser um esteta. Isto porque o modo fragmentário como considera o indivíduo humano (um ente cindido entre potências dispersas não hierarquizadas entre si) e as sociedades (um amontoado de grupos pluralistas e libertários, onde não existe “bem comum” e a noção de autoridade dilui-se) acaba moldando, também, a forma como concebe o fenômeno estético. Na prática, o modelo de arte e de sociedade, para o liberal, é um antimodelo, ou seja: como não há — na sociedade liberal-democratista — um fim a ser necessariamente buscado, mas apenas a afirmação da intocabilidade das liberdades individuais, naturalmente nenhum modelo poderá ser proposto. Igualmente, não poderá haver nenhuma sensibilidade comum que a configure e caracterize; nenhum símbolo unitário que a represente; nenhum paradigma transcendente ao qual se conforme. Estamos, pois, no reino da multiplicidade. No reino da quantidade e da dispersão. No reino da contínua divisão.
Já mostramos, em inúmeros textos do blog, o quão equívoca é a tese da “consciência individual autônoma”, em termos metafísicos e, também, antropológicos. Trata-se de uma tese que não fica de pé diante de uma verdadeira objeção filosófica (até agora, os nossos adversários liberais não apresentaram nenhuma resposta às muitas aporias expostas no Contra Impugnantes, quanto a este ponto). Pois bem: demonstrada a absoluta insuficiência, a falácia da tese da “consciência individual autônoma”, passaremos a expor as conseqüências, no tocante à arte, desta insana idéia.
Em sociedades nas quais tudo deve dobrar-se às “liberdades” individuais, a pretexto de que estas sejam defendidas da “opressão” externa (já que qualquer autoridade exterior à consciência do indivíduo não é, nelas, propriamente legítima, mas apenas tolerada em ocasiões excepcionais ou limítrofes), naturalmente as manifestações humanas tendem a se multiplicar ad infinitum, pois lhes faltam balizas, lhes falta um norte, lhes falta, enfim, um cânon. Isto observamos, grandemente, na expressão das artes contemporâneas. Trata-se de uma evidência insofismável, na medida em que a arte — na “cosmovisão” liberal em que o mundo mergulha — é caracterizada por:
1- Heterogeneidade de propostas estéticas;
2- Experimentalismo constante;
3- Criação permanente de novos “paradigmas”;
4- Constante tentativa de superação de linguagens anteriormente aceitas;
5- Constante necessidade de renovação:
6- Amor ao “novo” e ódio ao antigo;
7- Multiplicidade programática de correntes conflitantes entre si;
8- Busca incessante por novos materiais;
9- Busca incessante por “originalidade”;
10- Busca incessante por manifestações “chocantes”;
11- Perda da noção de arte sacra;
12- Separação entre estético e ético, ente belo e bom;
13- Multiplicidade de interpretações sobre o fenômeno estético;
14- Tendência ao imoralismo;
15- etc.
Essa azáfama de correntes e manifestações artísticas, essa tresloucada busca por novos códigos, essa idolatria a efemérides e banalidades, essa paixão pelo que é ordinário e fugaz, essa ânsia febril por novidades — tudo isso são signos veementes da cultura liberal. Signos da perda do sentido de unidade que, até a difusão do liberalismo pelo mundo, caracterizava cada cultura, cada povo. Signos da perda da identidade, da perda das marcas mais distintivas de uma gente, de uma nação, conseqüência direta do liberalismo, pois não pode identificar-se consigo mesmo nada que se perca em meio à multiplicidade, em meio a indivíduos que são como mônadas impermeáveis, autônomas, isoladas. Não há, portanto, nessa imensa policromia da cultura liberal, uma identidade estética — nem moral —, em sentido próprio. Há, sim, uma babel de manifestações que jamais poderão compor uma fisionomia artística, uma fisionomia dos valores de um povo. Compõem, sim, uma colcha multifacetada de retalhos, de valores entre si colidentes, todos “consagrados” e “legitimados” em nome da liberdade de expressão.
Contraponha-se tal paisagem labiríntica ao que é a arte numa sociedade não liberal, ou seja: não pluralista. Nela há uma sensibilidade comum, que a caracteriza; há um símbolo unitário prevalecente, que a representa; há um paradigma transcendente, ao qual se conforma. E este seu sentido de unidade, longe de representar uma amarra, é a sua pujança maior, a base para que a arte alcance a região dos arquétipos da condição humana, por meio de um profícuo simbolismo. Vejamos, a título de exemplo, a Cristandade em seu ápice medieval, trazendo aos nossos leitores um trecho do estudo de João Acácio Aguiar de Castro, na introdução ao livro O sentido do belo no século XII, que identifica uma matriz estruturante para o labor estético daquele período:
“Destacaríamos quatro [precondições para o tipo de manifestação artística da época]: a existência de uma mathesis universalis, a língua latina; a certeza presente em todos os autores [artistas] da revelação divina da Sagrada Escritura, logo de uma aferição possível de todos os saberes; a consciência de pertença a uma comunidade que, não tendo hiatos na história, representa ela mesma a cultura dentro do espaço e tempo históricos, as patrísticas grega e latina; finalmente, a consciência de que todo o saber culto se configura como uma philosophia perennis ou theologia perennis, onde o tempo aponta inevitavelmente para a eternidade e onde a missão do saber, também do saber estético, não é tanto inovar, mas sobretudo repetir, dando continuidade à tradição. (...) E as noções de simetria, harmonia, proporção (...) só podem ser entendidas como emanação, concretização ou imitação do Belo transcendente”.
Ora, como diz o mesmo João Acácio noutro trecho do seu livro, a harmonia não é senão a redução do múltiplo no uno, do desigual no igual e do diverso no homogêneo. E, numa sociedade não liberal, essa harmonia parte, principalmente, da ordenação de tudo, nas grandes manifestações artísticas, ao transcendente. Enfim, a Deus. É arte que, eminentemente, simboliza as coisas sagradas.
Vale dizer outra coisa: ainda que se encontrem, nas sociedades não liberais do passado, diferentes sintaxes simbólicas, diferentes manifestações artísticas, o fato é que nelas a arte sempre tende à unidade, à perenidade, à ordenação dos meios a fins que lhes sejam adequados e proporcionais, e, por fim, à transcendência. São orientadas, portanto, por um paradigma, por um modelo de excelência que deve ser buscado — e não posto abaixo, revolucionariamente. E esta é a força da sua beleza: a de ser, literalmente, arte canônica, isto é, ter medidas e modelos universais. Ora, isto é facilmente verificável, por exemplo, nas catedrais góticas, que se baseavam em um cânon arquitetônico-simbólico, cânon que exteriormente demarcava o seu maravilhoso estilo, ainda que materializado em diferentes templos com características próprias; assim também no canto gregoriano; no canto polifônico; em certas representações pictóricas; etc.
Com a instauração do liberalismo em escala mundial (a sociedade globalizada, da qual não há mais como escaparmos, ai de nós!), estamos, no caso da arte, condenados ao esteticismo — que é a demolição de todos os cânones em favor de uma arte despojada do seu sentido espiritual profundo, do seu horizonte ético, da sua configuração simbólica que aponta para o mistério do ser e da vida humana. Eu, particularmente, não conheço nenhum liberal que, ao escrever sobre arte, produza algo além de cultura de almanaque (os seus blogs e revistas são exemplos gritantes).