quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A estrutura da ação humana em sua completude (XII)

Sidney Silveira
Em vários textos anteriores, vimos a complexidade da ação humana em toda a sua dimensão: uma extraordinária interação entre potências que comportam uma hierarquia quanto aos graus de ser e quanto às operações. Em suma, observamos que, para ocorrer o ato propriamente humano, uma riquíssima relação entre potências distintas — entre as quais há ordem funcional — precisa ser posta em marcha. E tão intrincadas são essas relações intrapsíquicas que, muitas vezes, o ato propriamente humano pode ser impedido, ou grandemente dificultado, por disfunções específicas, pois ele é a coroação de uma série de causas essencialmente ordenadas*.

Qualquer praxeologia da ação humana que desconsidere essas precondições descambará num reducionismo inconcebível (e vejam que me refiro apenas às precondições psicológicas, deixando de lado, por ora, as axiológicas, as metafísicas, as ontológicas, etc.). Um reducionismo tosco, de cunho materialista. É o que faz o liberal Von Mises, e com mil contradições, a começar pela seguinte: embora diga expressamente que a ciência de que se ocupa — a praxeologia — trata tão-somente da ação humana, e não dos eventos psicológicos que resultam nessa ação, no mesmo capítulo do livro Human Action em que faz essa asserção ele escreve que a precondição da ação humana se divide em três pontos:

a) O desconforto com uma dada situação;
b) A imagem de uma possível situação melhor;
c) A expectativa de aliviar o desconforto e chegar a uma situação mais confortável.

Ora, pelotas! Estas são três precondições psicológicas!!!!!! Ou seja: são precondições que se dão ad intra na psique humana. Mas o nosso notável economista acabara de pontificar que a sua praxeologia não consideraria os eventos psicológicos que resultassem numa ação, mas apenas a ação! Vejam bem, com doses suplementares de boa vontade nós até poderíamos pôr isto na conta de uma simples — e enorme — distração, mas, como já apontamos aqui noutro artigo, as confusões são inúmeras:

“A propósito, o argumento do economista [...] é o de que a praxeologia busca afirmações que não derivam da experiência, pois ela não se refere ao aspecto material dos atos, mas apenas formal, não obstante diga Mises no mesmo parágrafo que a praxeologia demarca um limite “semelhante ao da experimentação”, no caso das ciências que interpretam eventos físicos e químicos. E, no parágrafo seguinte — depois de haver anteriormente nos informado de que “o erro dos filósofos” (sic) se deve à sua total ignorância em economia (sic), e a um candente desconhecimento em história (no post anterior, lembremos que, para Mises, a inteligência humana é um dado histórico [as palavras são dele!], pois viemos de... uma ameba!!! [também palavras dele!) —, o economista nos remete novamente ao evolucionismo que ele dá por certeza “científica”, ao dizer que o homem é “descendente de ancestrais não-humanos que não tinham tal capacidade (racional)”. É verdade que Mises nos diz que o homem não é só um animal sujeito a estímulos, mas um ser agente, e a categoria da ação é antecedente aos atos concretos (??)”.

Poderíamos enumerar muitas outras incongruências básicas, além das que já citamos na teoria da ação humana de Von Mises, como a incrível confusão entre hedonismo e eudaimonismo, mas preferimos um conselho: se você não estudou o que Aristóteles e Santo Tomás (para ficar apenas com estes dois) disseram sobre a ação humana, NÃO LEIA os prolixos capítulos iniciais da Human Action de Von Mises, pois há erros tremendos e imprecisões que vão confundir a sua cabeça — talvez definitivamente. Não é ali que você vai aprender o que é uma ação propriamente humana — e há incontáveis maneiras de mostrar, sem grande esforço, o quão errada é a tese. Um exemplo? Pois bem, se a ação humana tem mesmo como precondição fundamental a fuga do desconforto, a minha leitura de Von Mises não teria sido uma ação humana, pois ela foi feita malgrado o meu insuperável desconforto com a visão de tantos equívocos. Ou seja: na prática, eu deveria fugir, no ato, a tal desconforto — e de forma facílima: bastaria interromper a leitura desse calhamaço! Como explicaria o nosso valente economista a minha (desconfortável) ação de lê-lo, a qual mostra que a suposta “precondição fundamental” por ele elencada é pura e simples bullshit, uma bobagem? Seria essa uma ação “des-humana”?

Encerraremos a série “A ação humana em sua completude” no próximo texto sobre o tema, com a menção aos âmbitos metafísico e ontológico da supramencionada ação. E, depois, noutra série, daremos outros passos e veremos se — já que a teoria da ação humana de Von Mises não sobrevive às objeções mais simples — o seu pensamento sobre a sociedade humana pode servir-nos para alguma coisa. Deixemos, no entanto, à guisa de tira-gosto, algumas considerações preliminares de Von Mises sobre este assunto, ainda em Human Action: de acordo com o seu parecer, o fato “fundamental” da sociedade, o fato fundador da civilização humana, é que o trabalho efetuado pela divisão de tarefas é mais produtivo que o trabalho solitário. Vejam bem: ele está dizendo que isto é o fato civilizacional fundamental! O pilar, a base, o princípio sine qua non.

Como eu disse no começo, tenham paciência que o caminho é longo.

* Nas causas essencialmente ordenadas, para que o efeito comum ocorra, é necessário que todas as causas da série exerçam plenamente o seu influxo causal. Caso uma delas falhe, das duas uma: ou efeito não ocorrerá, ou ocorrerá mal, com defeito. Das causas acidentalmente ordenadas, falaremos amiúde noutra ocasião.