segunda-feira, 31 de maio de 2010

Malefícios da escrupulosidade


Sidney Silveira
Dizia o Padre Garrigou-Lagrange que um dos grandes problemas das pessoas religiosas reside em oscilar entre dois extremos: uma espiritualidade sem vida intelectual, que resulta num estéril pietismo, e uma vida de estudos não acompanhada da genuína piedade (feita de sacrifícios, oração e freqüência aos sacramentos), o que gera homens para quem a graça talvez até seja um elevadíssimo conceito abstrato, mas não uma realidade beatificante. Certamente o grande teólogo francês não padecia de nenhum destes dois males, dado ter sido um dos gigantes da história do tomismo, espécie de mestre auxiliar do Aquinate, na medida em que participava em alto grau do hábito teológico do “anjo da Escola”. Um grande metafísico e, ao mesmo tempo, um notável homem espiritual.

Garrigou sabia muito bem que o equilíbrio entre o pietismo e o intelectualismo se logra após um bom tempo de caminhada na fé. Não é obra de um dia. Ademais, para alguém efetivamente consegui-lo convém fugir àquilo que em Teologia Moral se chama escrupulosidade, ou seja: o roer-se de angústias e desassossegos por qualquer ninharia.

O escrupuloso é o sujeito imerso num universo mental tenso, pois a sua vida interior é acossada por imagens que produzem um estado de ofuscamento habitual da razão, dado o contínuo e infundado temor de estar sempre prestes a infringir alguma regra capital. Uma alma nesse estado atormenta-se a si mesma e a todos os que estão à sua volta, pois costuma atirar nas costas das demais pessoas um fardo ainda maior do que o que carrega. Por estas razões, evidencia-se que o escrúpulo não é um juízo racional e prudente sobre a bondade ou maldade dos nossos atos, mas um estado de dúvida não apoiado em sólidos motivos. Por trás dele, muitas vezes, está uma grande vaidade de querer parecer melhor que os outros.

Aplicado aos estudos, o escrúpulo é altamente maléfico, pois quem o padece dissolve as energias psíquicas em miudezas e pormenores sem a menor importância. Com isto, o que poderia ser estudado em um mês leva quatro vezes esse tempo, e o que é pior: o escrupuloso tem imensa dificuldade de chegar a conclusões, pois a sua mente engendra possibilidades sem fim e as coloca no lugar das evidências que, para uma pessoa comum, seriam suficientes para fazê-la seguir adiante. Uma nota de rodapé que não se consegue encontrar pode, muitas vezes, fazer o escrupuloso abandonar um belo escrito autoral. Por estes motivos, dificilmente o escrupuloso progride nos estudos, ainda que tenha talento. Conheci pessoalmente alguns casos dramáticos em que essa paixão pulverizou a possibilidade de uma vida intelectual verdadeiramente fecunda.

Convém ressalvar que a escrupulosidade nada tem a ver com a delicadeza de consciência. Esta consiste no esmero e cuidado com que uma alma amante da virtude busca aperfeiçoar-se, procurando evitar — por amor a Deus — até as faltas mais leves. Tal delicadeza de consciência leva uma pessoa a entristecer-se com os seus erros e pecados, mas sem o desespero e a angústia típicos do escrupuloso. A delicadeza de consciência pode, de fato, levar uma alma à santidade; o escrúpulo, jamais, pois conduz à cegueira mental.

Outra característica do escrupuloso é a pertinácia nos seus próprios juízos negativos, contrariando a tudo e a todos. Se é pessoa católica, muitas vezes nem mesmo o seu diretor espiritual consegue demovê-la dessas teimas, pois a constância no erro de escrúpulo revela uma patologia muito difícil de curar, pois os atos contra a verdade acabam por se transformar numa espécie de qualidade da alma, como dizia Santo Tomás. Quase uma segunda “natureza”.

Essa enfermidade pode conduzir a um daqueles dois estados de espírito que Garrigou-Lagrange considerava altamente danosos: o intelectualismo e o pietismo. No primeiro caso, o estudo acarreta mais prejuízos que benefícios, pois o sujeito perde enorme tempo caminhando em terreno árido e deixa de lado os remédios que a fé lhe oferece; no segundo caso, o pietismo provém do escrúpulo que leva uma pessoa a supor que não tem o menor compromisso de progredir intelectualmente, pois lhe basta a fé. Este foi por exemplo o caso de alguns franciscanos dos séculos XIV e XV, que acreditavam ser a leitura de livros algo extremamente prejudicial para a fé.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O segundo dos socráticos menores: Aristipo


Sidney Silveira
Após aludir ao primeiro dos socráticos menores — Antístenes, fundador da escola cínica —, o meu nobre amigo Nougué nos remete ao seu extremo oposto: o hedonista Aristipo de Cirene.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Magistério da Igreja: da imposição à deposição (II)

Cardeal Caetano contra Lutero

Sidney Silveira
Noutro texto remeti-nos a uma idéia interessante de Santo Alberto Magno em sua Suma Teológica — a de que o nome não é outra coisa senão uma implícita definição; e a definição, por sua vez, é a explicação detalhada do nome. Pois muito bem: aplicado ao conhecimento, o nome “diálogo” traz consigo implícita a idéia de paralelismo entre as pessoas que dele participam. Um grupo de cientistas, por exemplo, pode reunir-se com vistas a investigar certo problema e, nesta ocasião, cada qual expressando os seus pontos de vista e expondo as conquistas de suas pesquisas individuais (dialogando, enfim), chegar a uma resolução satisfatória. Mas o termo “diálogo” seria totalmente impróprio ou equívoco se o aplicássemos ao caso em que um só cientista, sendo detentor da resolução do problema, se dispusesse a explicá-la aos seus colegas. Aqui, o conceito unívoco e insubstituível a ser aplicado seria “ensino”.


É claro que pelo diálogo se pode realizar o ensino, como demonstram os famosos diálogos platônicos e os de Santo Agostinho, por exemplo. Mas neste caso se trata de um método em que o mestre, por um procedimento dialético, conduz o adversário ou discípulo a um conteúdo inteligível que expressa a verdade a respeito do problema investigado. Em momento algum, neste caso, o mestre abre mão das evidências e dos pontos fundamentais pressupostos em todo o diálogo, senão que os utiliza com vistas a levar o contendor, o outro dialogante, à clara visão da verdade. Assim, Garry Kasparov, o maior enxadrista de todos os tempos, pode “dialogar” de igual para igual com um neófito que sequer conhece as principais variantes da defesa Caro-Kann, jogando com ele e apontando os lances errôneos que conduziram a partida àquela posição.

Como se vê, num diálogo autêntico os participantes não retiram as suas premissas para evitar ferir susceptibilidades, mas colocam-nas com toda a clareza para, a partir delas, prosseguir em busca da posse formal da verdade. É o que Aristóteles chamava de “tópicos” (topoi), ou seja, os inarredáveis pontos sem os quais sequer pode haver, propriamente, diálogo.

Mas é isto exatamente o que expressa a Igreja pós-conciliar com o termo “diálogo”? Seria este um procedimento dialógico que busca tirar os infiéis do erro e conduzi-los à verdade — no caso, a mais importante de todas: a dos ensinamentos de Cristo e de sua única e verdadeira Igreja, a Católica, fora da qual formalmente não há salvação? Por uma questão de honestidade, é preciso dizer aqui com toda a clareza: NÃO! O neoapostolado dos tempos posteriores ao Concílio Vaticano II é feito não apenas da exclusão de algumas das principais premissas da fé, mas também da deposição formal da autoridade no exercício do Magistério, na medida em que deste foi voluntariamente retirada a prerrogativa de impor o ensinamento de Nosso Senhor aos fiéis e excluir do Corpo Místico quem o contrarie no essencial da doutrina.

No último texto sobre o tema, mostramos que, após o Concílio Vaticano II, o Magistério transmutou-se de ensino em diálogo, por decisão claramente expressa pela Hierarquia — que propôs o diálogo como nova forma de exercer o apostolado, na ingênua suposição de que “a autoridade do diálogo é intrínseca pela verdade que expõe” (Paulo VI, Ecclesiam suam). A História da Igreja — tão repleta de heresias e de tentativas dos inimigos de corromper o fiel depósito — mostra o quão equivocada é a idéia de que a verdade “se impõe por si mesma”, em sua simples expressão. Seria de fato assim se porventura tivéssemos a intuição direta das essências, mas a realidade é bem outra: o caminho do homem à verdade se faz por meio de raciocínios, compondo e dividindo premissas e objeções com o propósito de, a partir das evidências, chegar penosamente ao conhecimento. E, para piorar a situação, este nem é o caso do conhecimento das verdades da fé, cujo conteúdo não pode ser demonstrado pela razão. A Virgindade Perpétua de Maria, por exemplo, não pode ser provada por silogismos. Tal verdade não se dialoga; aceita-se ou não.

Neste ponto, vale registrar que todo autêntico magistério — e não apenas o da Igreja — implica dois atos intencionais: o de ensinar (do mestre) e o de aprender (do discípulo). Ora, como a autoridade do mestre é medida pelo conhecimento na matéria ensinada, essas duas intenções não estão em pé de igualdade. Por isso, o aluno que interpele de forma petulante o professor sobre um assunto em que a sua ignorância é patente não merece outra coisa senão a expulsão de sala de aula. Mas há mais: outra coisa igualmente pressuposta em todo autêntico magistério é a submissão do intelecto do discípulo nos pontos em que não está em condições de discutir com o mestre (caso, por exemplo, do neófito que joga uma partida contra Garry Kasparov). Assim, como veremos abaixo, a anuência do aluno a certas verdades que ainda não está em condições de compreender se dá pelo crédito à autoridade do mestre; quando, mais tarde, ele estiver na posse dos métodos adequados e do conhecimento das premissas, aí sim a sua anuência se dará pelo peso da demonstração formal.

A propósito do assunto que serve de mote para o presente texto, transcrevo um trecho do estupendo “A Candeia Debaixo do Alqueire”, do grande teólogo Álvaro Calderón (da FSSPX). Nele, usando os conceitos de mestre principal, de mestre auxiliar e de simples repetidor, Calderón mostra como a Igreja simplesmente depôs a sua função magisterial:

“Se a Hierarquia eclesiástica não pudesse obrigar a crer ou não crer, então não teria um magistério verdadeiro e próprio.

> Em geral, o mestre principal é aquele que possui a ciência perfeita [na matéria], razão pela qual pode levar os seus discípulos a conhecer a verdade de uma proposição de dois modos: revelando-lhes sua verossimilhança ou evidência pelo peso da demonstração; ou, se ainda não estão preparados para isso, obrigando-os a defendê-la como provável ou certa pelo peso de sua autoridade**. Um simples repetidor [da doutrina], em contrapartida, que não tem autoridade própria, só pode persuadir os alunos mostrando com fidelidade o que disse o mestre. Mas também há o caso do mestre auxiliar, que participa imperfeitamente da ciência do mestre principal, e pode, portanto, desenvolvê-la até certo grau; e, ainda que dependente deste último, o mestre auxiliar tem verdadeiro magistério e pode impor certas sentenças pelo peso de sua autoridade.

Na ciência teológica, por exemplo, Santo Tomás é mestre principal. Um simples professor de seminário é um repetidor que, para ser crido, deve fundamentar cada uma de suas afirmações em textos explícitos de Santo Tomás; participa da ciência do Angélico de maneira puramente instrumental. Caetano***, em contrapartida, é um mestre auxiliar tão compenetrado do pensamento tomista que merece ser crido quando interpreta e prolonga sua doutrina. Ele tem uma autoridade participada à maneira de causa segunda: o que move a aceitar sua doutrina é formal e principalmente a autoridade de Santo Tomás de Aquino, mas secundária e como que materialmente também move sua autoridade pessoal, na medida em que seu intelecto participa do hábito teológico do Doutor Angélico.

Na ciência revelada, o mestre principal é Jesus Cristo; os diáconos e simples sacerdotes são repetidores; o Papa e os bispos são verdadeiros mestres auxiliares. Jesus Cristo lhes comunica uma luz especial pela qual participam de sua ciência divina, tornando-os capazes de interpretar e desenvolver a doutrina revelada com garantia de infalibilidade em certos casos.

> Se a Hierarquia da Igreja se negasse o poder de obrigar a crer em alguma sentença ou de ter por proscrita alguma outra pelo simples peso da autoridade que tem de Cristo, não se lhe estaria reconhecendo um magistério verdadeiro e próprio. Se ela só tivesse o ofício de mostrar a proposição e sua ligação com a fé, para que apenas em razão do objeto os fiéis se sentissem obrigados a crer, então se estaria reduzindo o magistério do Papa e dos bispos a uma simples função de repetidores. [Ora] O Papa pode impor uma doutrina das duas maneiras: como repetidor da Revelação: “diz a Escritura, ensina a Tradição, está revelado”; mas também como verdadeiro doutor com autoridade: “Eu mando que se creia ou não se creia em tal coisa”. Naturalmente, deve-se crer nele formal e principalmente pela autoridade de Deus, que o assiste: “Eu mando em nome de Deus”, mas não é necessário que o Papa diga explicitamente que o que ensina tem vinculação com a Revelação. Se obriga a crer ou não crer, é porque alguma vinculação tem, e obedecendo à voz do Magistério se obedece formal e principalmente à voz de Nosso Senhor: “Quem vos ouve a Mim ouve” (Luc., X, 16).

As intenções do magistério conciliar

(...) O magistério conciliar não só não manifestou claramente a intenção de impor sua doutrina, mas (...) claramente manifestou a intenção de não impô-la****”.

Depois deste ponto do livro, Calderón mostra que essa clara intenção contrária aos fins do Magistério implica formalmente a sua deposição (e, como dissemos acima, todo magistério implica, para começar, a intenção de ensinar, por parte do mestre). E, no caso de que se trata, o diálogo da Igreja pós-conciliar com o mundo parte exatamente da exclusão dos pontos-chave da doutrina, sempre que tais pontos firam a susceptibilidade do mundo ecumênico de hoje.

** Aqui, é importantíssimo frisar que se trata de autoridade natural (e não a sobrenatural da fé) baseada na verdade de fatos demonstrados de forma apodítica. É claro que, dada a inesgotabilidade da verdade dos entes para a inteligência humana, essa autoridade natural do mestre poderá ser questionada, mas não pelo neófito, e sim por um igual que esteja em condições de refutar-lhe os erros. É, portanto, uma autoridade relativa. O próprio Tomás dizia que o único argumento de autoridade válido simpliciter é o da Sagrada Escritura. Mas isto não implica dizer que nenhum argumento de autoridade seja válido. Por exemplo: um analfabeto de pai, mãe e parteira não tem a menor condição de discutir com um gramático quando o uso do gerúndio é certo ou errado, ou se se devem separar ou não por vírgula as orações subordinadas assindéticas reduzidas de gerúndio das orações coordenadas que se lhes seguem. Aqui, a autoridade do gramático em relação ao analfabeto é absoluta e inequívoca.
*** Calderón refere-se aqui ao dominicano Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano, um dos maiores expoentes da história do tomismo.
**** “A autoridade do [diálogo] é intrínseca pela verdade que expõe, pela caridade que difunde, pelo exemplo que dá; não é ordem, não é imposição [Paulo VI, Ecclesiam Suam, nº 75]'”.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Para que estudar Santo Tomás?

Basílica de Saint-Denis
Sidney Silveira
Já se fez alusão no Contra Impugnantes a alguns problemas do tomismo contemporâneo, que definitivamente parece ter trocado as sínteses abarcadoras por estudos tópicos — muitos dos quais, infelizmente, desgarrados dos princípios teológicos informadores da doutrina do Aquinate, razão pela qual acarretam desvios que certamente devem entristecer deveras a Santo Tomás, no céu. Mas há algo ainda pior: o total desprezo das questões teológicas ligadas à cristologia, à eclesiologia, à teologia moral, à escatologia, à teologia trinitária, aos sacramentos, ao Magistério, à doutrina do Verbo encarnado, à defesa da fé, ao sacerdócio, à angelologia, à demonologia, etc. Um tomismo simplesmente alheio à Igreja, como se isto fora, de fato, possível.

Em resumo, o estímulo a que se formem especialistas sem antes lhes dar um vislumbre do conjunto dessa colossal arquitetura catedralícia — e de seu objetivo principal, que é servir a Deus — é uma lástima. Imaginemos um sujeito que sequer leu a Suma Teológica por inteiro e já é pós-doutor laureado em alguma área do tomismo, e não estaremos longe do cenário que lhes estou traçando. São pessoas capazes de aferrar-se às normas de redação da ABNT (a título de critério “acadêmico”) e a outras questões menores, mas em seus escritos filosóficos estão abaixo da crítica.

Quando comparo estudos metafísicos ou gnosiológicos de alguns tomistas, sobretudo da última década, à obra de um G. Manser, ou de um Santiago Ramírez, de um Garrigou-Lagrange, por exemplo, a impressão é de que aos primeiros lhes falta o essencial, o sumo, o mais importante. É como se houvessem trocado a mais rica polifonia — com os seus elevados matizes espirituais — pelo samba de uma nota só. Nestes casos, não é raro encontrar nas conclusões dos trabalhos aberrações contrárias à fé, ao Magistério e, também, ao espírito da obra do Doutor Comum.

Por esta razão, se a metafísica, por elevada que seja, não for para o estudioso da obra de Santo Tomás um simples instrumento para o conhecimento de algo maior, se não for, enfim, “serva da teologia”, e esta por sua vez não servir ao fortalecimento na fé (para sua posterior defesa e instrução dos irmãos em Cristo), melhor seria nem começar. Quero dizer com isto o seguinte: o sujeito estuda Santo Tomás de Aquino para transformar-se num verdadeiro teólogo. Caso contrário, será um generalista da pior espécie, um vulgarizador de algo nobilíssimo. E veja-se que uso aqui o vocábulo “teólogo” não de forma equívoca, nem com analogia de atribuição extrínseca, mas simplesmente para significar o hábito da ciência teológica que uma pessoa desenvolveu após longos anos de estudos e, é evidente, o auxílio da graça. Tal habitus não é aferido nem conferido por nenhum diploma de Teologia, ainda que do mais importante seminário do mundo. A propósito, foram justamente os péssimos teólogos os criadores, nas últimas décadas, da babel doutrinal que, com santa ironia, o Padre Álvaro Calderón chama de consenso “plurânime” pós-conciliar. Uma confusão dos demônios que teve dramáticas conseqüências práticas, tudo com o beneplácito da Hierarquia: qualquer um pode constatá-las ao ir a duas Missas num mesmo quarteirão do bairro onde mora. Isto para não falar dos escândalos morais que hoje escandalizam a muitos, e que em sua maior parte são decorrentes da perversão da doutrina católica, como ainda teremos oportunidade de demonstrar em vários textos.

Quando Moisés aproximou-se da sarça de fogo, Deus pediu-lhe que retirasse as sandálias porque pisava em solo sagrado (Ex. III, 5). Analogamente — e com a devida vênia, é claro —, podemos dizer o mesmo de quem estuda Tomás de Aquino: para adentrar esse templo de amor a Deus que é a sua luminosa obra — o céu visto da terra**, segundo o Papa Pio XI —, é preciso despir-se tanto quanto possível das sandálias das idéias próprias e da presunção do saber. Então, o primeiro passo terá sido dado. Por isso, ao livre-pensador liberal estão vedadas as sacrossantas portas da catedral do tomismo.

Estas breves palavras foram a propósito do email de um leitor nosso que reclamou de estarmos abordando, nos últimos tempos, com maior freqüência, temas eminentemente teológicos. Pedia esse amigo que voltássemos à metafísica e às aulas de filosofia, ao que lhe respondi, amigavelmente, o seguinte: em se tratando de Santo Tomás de Aquino, não apenas a metafísica, mas todos os demais tópicos da filosofia estão ordenados à teologia. É a tese da subalternação das ciências, de que ainda trataremos amiúde.

Tendo isto em vista, possivelmente amanhã continuaremos a série sobre a dignidade sacerdotal, baseada num dos clássicos do padre Garrigou-Lagrange. Um grandíssimo teólogo tomista e, portanto, um metafísico da mais alta estirpe.

** La Somma Teologica è il cielo veduto dalla terra. Pio XI. Alocução ao Instituto Internacional Angelicum, em 12 de dezembro de 1924.

sábado, 22 de maio de 2010

A parábola da Caverna: livro VII da "República" de Platão


Sidney Silveira
Disponibilizo um pequeno trecho de aula em que se cita, de passagem e com certa liberdade (pois o assunto era outro), a parábola da Caverna de Platão, no livro VII da República. Digo "parábola" em vez de "alegoria" porque nisto estou totalmente de acordo com Eric Voegelin, que afirma ser o nome "alegoria" impróprio, neste caso. O melhor é mesmo parábola! E o que se destaca nessa aula segue de perto a vários comentadores de Platão: a saída da Caverna é impulsionada, fundamentalmente, por Eros. É o amor essa força fecunda que leva a alma a buscar o Bem, o Belo, a Verdade.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A dignidade sacerdotal (I): o sacerdócio de Cristo

Garrigou-Lagrange


Sidney Silveira
Os escândalos morais que hoje abalam a Igreja decorrem, em linha direta, do completo desvirtuamento da doutrina católica nos últimos 50 anos. Esta é a fonte primária de tudo. Ressalve-se que sempre houve homens que voltaram as costas à fé, hereges, cismáticos, loucos, depravados, covardes, etc., mas hoje a corrupção é generalizada e em grau nunca antes imaginado, e ocorre com a total omissão (quando não com o apoio formal) de autoridades eclesiásticas. Os inimigos infiltrados — que haviam sido denunciados no começo do século XX por São Pio X, na Pascendi — ganharam espaço em todos os níveis da Hierarquia, de forma politicamente organizada e valendo-se de sofismas, de filosofias contrárias à fé e, por que não dizer?, de algumas mentiras para convencer os menos esclarecidos e os não-versados nas sublimes sutilezas do Magistério. Há decerto os ignorantes de boa-fé, que servem de massa de manobra, assim como há os ignorantes culpáveis. Mas deixemos de lado, por ora, estas distinções. A elas chegaremos na hora conveniente.

As enormes mudanças — inspiradas sem exceção no modernismo que engendrou o espírito e a letra do Concílio Vaticano II — foram postas em prática de forma tão cirúrgica quanto abrupta, e hoje a Igreja é terra tristemente arrasada; até mesmo o Papa Bento XVI diz que o maior inimigo dela é o pecado que a corrompe internamente, embora não aponte de público em que consiste esse pecado. Mas as evidências apontam ser um pecado muitíssimo maior e mais daninho do que os escândalos morais a que acima fizemos alusão, pois se trata de uma crescente perda da fé no seio do próprio Corpo Místico, uma apostasia assustadora, um câncer no agônico estado terminal da metástase. As palavras de Cristo sobre a Parusia parecem referir-se ao nosso tempo: “Quanto vier o Filho do Homem, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc, XVIII, 8).

Certamente gritos isolados não são capazes de abafar o estrépito da imensa cachoeira modernista, mas cada fiel pode ajudar na medida de suas possibilidades, pois o momento assim o exige. Neste contexto, como a imensa maioria dos seminários modernistas é tomada por carcinomas de alta malignidade no campo teológico-filosófico — criticismo kantiano, fenomenologia husserliana ou mesmo heideggeriana, historicismo hegeliano, etc. —, e aos jovens seminaristas, em geral, não são passados sequer os princípios da doutrina no que concerne ao papel do sacerdote, a dignidade das suas funções e a sobrenaturalidade que as fundamenta, parece-me muito a propósito trazer alguns conceitos, que penso serem úteis para seminaristas de todo o Brasil e, também, para outras pessoas que nos lêem.

Aqui, como nos demais textos do Contra Impugnantes, nada há de propriamente meu. No caso de que se trata, extraio os conceitos do esplendoroso livro De unione sacerdotis cum Christo sacerdote et victima, do Padre Garrigou-Lagrange, que tenho numa velha edição ítalo-espanhola.

Como grande tomista que foi, o Padre Garrigou começa tratando o tema por aquilo que é o mais perfeito e constitutivo: o sacerdócio de Cristo (Sacerdote por excelência!), do qual o sacerdócio dos padres é mera participação. Ambos sacerdócios manifestam a misericórdia de Deus para com os homens que vão salvar-se. Prestem atenção: dos que vão salvar-se! Essa sutileza do teólogo francês é conseqüência direta de uma verdade de fé baseada na Escritura e no Magistério, a qual afirma categoricamente: nem todos se salvarão, pois há os que irão para o fogo inconsumível da Geena.

O sacerdócio de Cristo Salvador
É de fé que o sacerdócio de Cristo é eterno. Diz São Paulo: “Temos um grande pontífice que penetrou nos Céus, Jesus, o Filho de Deus” (Hb. IV, 14). “É sacerdote para sempre” (Hb. VII, 3). A mesma coisa ensinam os Concílios de Éfeso e de Trento, além de tantas outras passagens da Sacra Pagina.

Primeiramente, vale dizer que Cristo é sacerdote como homem, dado que o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus e os homens. Tal mediação — própria de todo sacerdócio e não apenas do de Cristo — se dá num duplo sentido:

> Mediação descendente, que consiste em dar a doutrina pelos ensinamento e a graça pelos sacramentos. Ora, Cristo não apenas deu a doutrina como também instituiu os sacramentos;
> Mediação ascendente, que consiste em oferecer a Deus as orações e o sacrifício da Missa (com o povo e pelo povo). Ora, Cristo não apenas oferece-se na Missa, mas a sua oferta foi muito além, como veremos.

Assim, estas duas funções competem de modo singular a Cristo enquanto homem, porquanto a sua humanidade — situada em ordem inferior à sua natureza divina — está unida pessoal e hipostaticamente ao Verbo. Ademais, recebe Cristo como cabeça da Igreja a plenitude da graça. Daí que Santo Tomás, a certa altura da Suma, perguntando-se se convinha a Cristo ser sacerdote, cita as palavras de S. Pedro: “Ele nos fez mercê de preciosas e ricas promessas para fazer-nos assim partícipes da natureza divina” (II, Petr., I, 4).

É, portanto, Cristo sacerdote e mediador como homem, sendo (neste aspecto específico) inferior a Deus. Mas não é demais mencionar que, mesmo como homem, é Nosso Senhor superior aos anjos em razão da união hipostática e conseqüente plenitude de graça e glória. União essa que é o constitutivo formal próprio do seu divino sacerdócio.

Tendo isto em vista, afirma o Aquinate que o sacerdócio de Cristo-homem é eterno num triplo sentido: a) pela imperecível união hipostática; b) porque não teve sucessor; e c) pela consumação perfeitíssima do seu sacrifício, ou seja: a perpétua união dos homens redimidos com Deus visto face a face.

Este é propriamente o fruto eterno do sacrifício do Salvador: a vida eterna. Por isso diz a Epístola aos Hebreus que Cristo “foi constituído Pontífice dos bens futuros”, como nos lembra o Padre Garrigou.

Enfim, Cristo é, além de Sacerdote, Hóstia. Isto porque ele próprio se ofereceu inteiramente a Deus-Pai, sofrendo a morte de Cruz. E isto é de fé: “Entregou-se por nós em oblação e sacrifício a Deus em olor suave” (Ef. V, 2). O Concílio de Trento diz o mesmo: “Ofereceu-se a Si mesmo ao Pai na Cruz, sofrendo a morte para alcançar-nos a redenção eterna” (Dz. 940).

Dizem vários teólogos importantes que Cristo é Hóstia num triplo sentido: Hóstia pelos nossos pecados, ou seja, para a remissão deles; Hóstia pacífica para a conservação da graça; Hóstia de holocausto, para unir as almas perfeitamente a Deus, na glória.

Ademais, tão perfeito é o sacrifício de Cristo que a sua morte, além de tudo, supera infinitamente a morte dos Santos mártires. Mas em quê? Apesar de a morte dos mártires ser voluntária e causada por feridas mortais que se lhes impingiram, eles não tinham o poder ou a liberdade de reter a vida; Cristo, ao contrário, se quisesse poderia não morrer, mesmo sendo as suas feridas mortais. Portanto, o seu sacrifício não foi apenas perfeito, mas perfeitíssimo!

“Ninguém me tira a vida; sou eu que a dou de Mim mesmo” (Jo., X, 18).

E há ainda mais: Cristo ofereceu-se como Vítima primeiro na Última Ceia, incruentamente sob as espécies do Pão e do Vinho; depois cruentamente na Cruz, com seu próprio Corpo e Sangue. E muito a propósito diz Garrigou o seguinte: ainda que Cristo não tivesse celebrado a Ceia, sua morte voluntária seria um verdadeiro e perfeito sacrifício, suficiente para a instituição formal da Eucaristia. Isto porque na Cruz não há só imolação cruenta, mas oblação interna e externa, sendo esta última manifestada pelas palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”; e “tudo está consumado”.

A dignidade do sacerdócio dos padres, como se vê, é divina, na medida em que é uma participação no sacerdócio perfeito de Cristo, Sacerdote e Vítima. A ele os padres estão unidos de forma muito especial, como se verá nos textos desta série.

Ah, se a maioria dos seminários contaminados pelo modernismo, em vez de ficar ensinando bobagens e heresias (como por exemplo as de Urs von Balthasar e outros), desse ênfase ao cerne da doutrina católica, quantos padres Santos ainda se produziriam! Quantos padres preocupados em, acima de tudo, salvar as almas! Ah, quantos seriam um grande exemplo se não tivesse sido inoculado em suas almas o mais terrível naturalismo que se fecha ao influxo da graça!...

(continua)

Cinco novas aulas do curso de História da Filosofia


Sidney Silveira
O Prof. Nougué pede-me que dê no blog um pequeno aviso aos alunos do curso História da Filosofia: Do Impulso Grego ao Abismo Moderno: até a próxima semana, serão inseridas no site do curso cinco novas aulas — que já estão gravadas.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Castidade e celibato (IV): a moderação das paixões


Sidney Silveira
Nesta série de textos, entre outros pontos já mostramos que:

> (Artigo I) Existe uma distinção entre celibato e castidade, sendo o primeiro uma modalidade especial da segunda;
> (Artigo II) Embora não seja um dogma — e, portanto, possa ser disciplinarmente mudado, se a Igreja julgar prudente fazê-lo —, o celibato sacerdotal é uma medida que se fundamenta em doutrina expressa na Sagrada Escritura e no Magistério [Os seus adversários, portanto, devem meditar sobre isto, antes de sair por aí dizendo que ele nada tem a ver com a doutrina];
> (Artigo III) Tanto o celibato como a castidade devem ser contemplados à luz da perfeição cristã, que é permeada por uma dupla dimensão: as vidas natural (alma) e sobrenatural (graça).

Agora, parece-me adequado apontar um instrumento fundamental para que a castidade não-celibatária (no caso dos leigos casados) e a castidade celibatária (no caso dos padres, monges, freiras e leigos não-casados fiéis à doutrina) não se esfumem; e para que as virtudes, mantidas com o auxílio da graça, não se transformem nos piores vícios. Esse instrumento é o combate às paixões.

Em outro momento, deixei consignada no blog a definição de “paixão” que Santo Tomás colhe de São João Damasceno — dando-lhe essa tão benéfica precisão escolástica que louvamos: paixão é o movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal.

Movimento, aqui, toma-se em seu radical sentido metafísico: como o trânsito da potência ao ato; apetite, como a tendência natural de uma dada potência; sensitivo, com referência tanto aos cinco sentidos externos (visão, tato, olfato, audição e paladar), como aos quatro sentidos internos (senso comum, memória, imaginação e cogitativa); imaginação, como um desses sentidos internos (o que recebe os dados unificados pelo sensus communis e lhes imprime uma imagem); e bem e mal não na perspectiva ontológica, mas como relações* na alma do sujeito. Neste contexto, o amor (movimento do apetite natural do bem) é a mais radical das paixões. Um exemplo? A falta de um bem amado que subitamente se perdeu gera tristeza (uma das paixões da alma). Assim, a tristeza é a imagem da perda do bem que perdura na alma e a fustiga. Tal paixão causa uma dor psicológica maior ou menor na exata medida do tamanho da perda.

Definido, pois, o conceito de paixão, e decodificados todos os seus termos, impõe-se dizer que as paixões, em si, não são boas nem más — e podem transformar-se ou no veículo das mais dramáticas quedas e pecados, ou no instrumento das mais heróicas virtudes (inclusive a da castidade, de que tratamos).

É exatamente neste ponto que o dogma do pecado original lança luzes sobre a doutrina católica e nos aponta para a evidência mais acachapante — que observamos em nós mesmos e em todas as demais pessoas: o influxo das paixões na vida de todos os homens. Ora, diz a Igreja que, em decorrência do pecado original, a natureza humana ficou tão debilitada e maltratada que a parte superior da alma (leia-se: inteligência e vontade) sentiu a revolta da inferior (as potências sensitivas), e, a partir de então, as paixões, que antes serviam à operação ótima da alma (conhecer a verdade e querer o bem), se transformaram num cruel aguilhão. Daí surge a necessidade de combatê-las, moderá-las, moldá-las para que nos levem a fazer o bem.

Antes de prosseguir, façamos a distinção entre homem carnal e homem espiritual. O carnal é aquele que vive na superfície das suas pequenas misérias e desejos, dando vazão a todas as paixões e inclinações e dissipando o espírito nas coisas exteriores mais supérfluas — nas quais acaba por escravizar-se; o espiritual, olhando para essas mesmas misérias, abre os olhos da alma para combatê-las, tendo em vista não apenas libertar-se das dores psicológicas que o acossam, mas, principalmente, agradar a Deus. A vida deste último é, portanto, muito mais rica em matizes que a do homem carnal tendente a orbitar, mecanicamente, em torno de uma imagem unitária (a da paixão dominante), e das que com ela se relacionam. O homem espiritual, por sua vez, expande a vida interior de forma extraordinária, ao criar um dique para frear as paixões desgovernadas. Observe-se que as paixões existem tanto para um como para outro, dada a nossa humana condição corporal-animal; mas que diferença entre os dois!

Neste contexto, para que passemos do homem velho (carnal) ao novo (espiritual), a Escritura Sagrada, o Magistério da Igreja e os sacramentos desta fornecem-nos o fim, os meios e a doutrina perfeita. E a doutrina, a propósito, nos diz que a inclinação ao mal proveniente do pecado original faz as paixões ofuscarem a luz da razão; afagarem os mais baixos instintos; fomentarem o amor-próprio em grau crescente; seduzirem e escravizarem a vontade. Pelo combate a elas, com a ajuda da graça vamos aos poucos tornando-nos capazes de fazer a razão rebrilhar com intensidade cada vez maior (liberta das imagens obsedantes); os instintos ordenarem-se ao conjunto de bens fundamentais captados pela sindérese; o amor-próprio mitigar-se e dar espaço ao verdadeiro amor cristão, agápico; e a vontade libertar-se para escolher bens efetivos e verdadeiros, sem jamais sobrepor os menores aos mais excelentes.

Os exemplos dos Santos — vitoriosos nesta imensa luta contra as paixões — são ilustrativos para nós. São um modelo. Daí a importância de essa guerra ter como insumo a experiência e a doutrina dos Santos. Aqui, por uma mera questão de espaço, sugiro apenas cinco leituras — facilmente encontráveis em boas edições: Filotéia (obra de gigante!) e Tratado do Amor de Deus, de São Francisco de Sales; o Castelo Interior, de Santa Teresa de Ávila; e Subida do Monte Carmelo, de São João da Cruz.

Alimentados por esse leite espiritual nos revigoramos para o combate às paixões — fundamental para quem pretende adiantar-se na perfeição que Nosso Senhor quer que alcancemos, para a qual a castidade vivida na graça é um sublime instrumento.

(continua)
* Relação é um termo que aqui expressa uma das 10 categorias de Aristóteles.
Em tempo 1: Sempre que se expõe a doutrina da Igreja sem mesclá-la com elementos espúrios ou idéias bizarras (como por exemplo as teorias de René Girard, uma tola diabolice), tudo é visto sob uma nova luz. Ocorre-me agora o exemplo do filósofo boca-suja (texto sobre o qual ainda hoje recebo emails; a muitos dos quais não tenho tempo de agradecer). Tal exemplo se encaixa perfeitamente na presente exposição sobre a castidade, no seguinte sentido: premido pelas paixões que não consegue refrear, o arquetípico boca-suja acabará por limitar o seu talento filosófico — limitá-lo até o ponto de transformar-se num intelectual estéril, pois, como diz Santo Tomás, a vida intelectual, se não se alimenta de uma verdadeira vida do espírito (com todas as suas implicações), acaba por perder-se. Tristemente.

terça-feira, 11 de maio de 2010

As relações entre a inteligência e a vontade (III)

Sidney Silveira
A superioridade necessária da inteligência em relação à vontade é quanto ao ser; a superioridade acidental (e episódica) da vontade em relação à inteligência é quanto ao operar. Fundamentalmente, ninguém é capaz de querer o que, em absoluto, não entende, pois no ato de escolha está sempre implicado algum grau de intelecção do bem querido pela vontade. Sendo assim, quanto melhor formada seja uma inteligência, mais bem aparelhada estará a vontade para fazer boas escolhas. E quanto pior formada seja uma inteligência, mais mal aparelhada estará a vontade e, por conseguinte, mais propensa a escolher e agir mal. De outra parte, após a vontade exercer o seu ato de escolha alimentada pela inteligência, põe ela em marcha todas as outras potências, inclusive a mesma inteligência, como veremos noutra oportunidade.

Em suma, assim como há uma precedência do problema metafísico em relação ao gnosiológico — como assinalamos no primeiro dos textos de uma série sobre as incongruências do criticismo kantiano —, também há uma precedência do problema gnosiológico em relação ao moral. Por isso e não por outra coisa, a imputabilidade de uma pena é maior ou menor de acordo com o grau de consciência do cometimento do delito. Noutra formulação, poderíamos dizer que a má-ação será tanto pior quanto mais seja levada a cabo com perfeita anuência, ou seja: é quando o delinqüente quer (e pratica) os seus crimes sabendo perfeitamente o que são.

A interpenetração e causalidade mútua da inteligência e da vontade no ato livre do homem é doutrina da melhor cepa tomista. Com ela o Aquinate não apenas pôs as coisas em seus devidos lugares, corrigindo com precisão equívocos filosóficos anteriores, mas sobretudo evitou uma série de erros gravíssimos na análise do ato moral — provenientes de posturas voluntaristas e/ou nominalistas. Nesta matéria, particularmente, o equilíbrio a que chegou Santo Tomás é de uma beleza extraordinária, e foi enorme desgraça para a filosofia ter historicamente perdido este tesouro.

Pois bem, disse-se acima que a precedência da inteligência com relação à vontade é da ordem do ser; a da vontade com relação à inteligência, da ordem do operar. Vejamos agora mais de perto algumas conseqüências disto:

> De fato, os atos da vontade (como movimento de um apetite a um fim querido) se estendem a todo o domínio da práxis. Isto quer dizer que o homem é capaz de escolher os modos de sua ação, in primis, de acordo com aquilo que quer;
> No entanto, a vontade não irrompe em seu ato próprio de escolha sem uma intervenção da inteligência que lhe dê sentido e orientação. Isto quer dizer que a práxis tem a sua coluna fundamental na inteligência. Em resumo: não existe verdadeira práxis sem noésis, razão pela qual a ação do homem é, essencialmente, especulativo-prática, e não meramente prática.

Negar esta realidade é conceber o homem como um ser esquizofrênico que deseja o que não entende. E não entende justamente porque, neste caso, haveria uma inadequação fundamental entre a inteligência e a coisa* (como no caso dum paciente de Simão Bacamarte, em famosa novela de Machado de Assis citada neste trecho de aula). Ou então concebê-lo como um mero feixe de instintos cegos que se atualizam por pulsões nascidas de uma instância inconsciente, conforme quer a psicanálise. Mas tanto num como noutro caso há um reducionismo inaceitável, pois a experiência mostra com abundância de dados que estas realidades indicam patologias distintas — e não se pode tomar a essência de algo justamente por suas deficiências acidentais.

As filosofias moderna e contemporânea — que por não terem base metafísica há séculos orbitam no horizonte do imanentismo gnosiológico, em suas diferentes variáveis — infelizmente perderam estas distinções. Elas conseguiram perpetrar teorias esquizóides e solipsistas que nem mesmo os maiores devaneios da escolástica tardia e do renascimento, alimentados pelos malefícios de Scot e Ockham, conseguiriam imaginar. Se, para a contemporaneidade, ser, conhecer e querer se tornaram realidades incomunicáveis, isto se deve ao fato de ter ela voltado às costas à metafísica dos graus intensivos de participação no Ser, de Santo Tomás de Aquino. Triste história de uma queda.

Se em Tomás de Aquino há uma perfeita harmonia entre ser, entender e querer, é porque a sua filosofia não fechou as portas à transcendência. E não fechou porque a sua metafísica, ao contrário do que presumiu Heidegger de todas as metafísicas do Ocidente, não se resume ao ente, mas sustenta-se na coluna do Ser sem o qual sequer haveria entes — o Próprio Ser Subsistente que, na verdade, transcende aos entes. Neste contexto, vale frisar o seguinte: é apenas inserida no Ser que a inteligência mostra toda a sua hegemonia sobre a vontade; por outro lado, despojada do Ser ou alheia a ele, a inteligência desarticula-se e dá espaço para que a vontade labore absurdamente numa espécie de buraco negro.

O resgate da metafísica do Ser de Santo Tomás é, portanto, um imperativo para os incríveis tempos atuais em que a civilização simplesmente se esboroa. Tempos em que os maiores absurdos são praticados pelos indivíduos e pelos Estados tendo como base as teses mais abstrusas.

Ora, bem mais do que um bípede implume, o homem é um animal racional — na medida em que, nele, até mesmo a vontade é apetite intelectivo do bem. Restituamos, pois, a inteligência a seu devido lugar no composto humano, e prestaremos um grande serviço ao mundo. Inteligência que, como destacava um famoso título de Marcel de Corte já na década de 60, está em perigo de morte**.

* Lembremos que, segundo Santo Tomás, a verdade é a adequação entre a inteligência e a coisa. Da realidade contrária, a inadequatio, falaremos amiúde noutro texto.
** La intelligence em Péril de mort é o livro do filósofo belga a que aludimos.

sábado, 8 de maio de 2010

Platão - gnosiologia e arte


Sidney Silveira
Disponibilizamos um pequeno trecho de aula do Nougué sobre as características da teoria do conhecimento em Platão e sua crítica à arte.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Castidade e celibato (III): natureza e graça


Sidney Silveira
Para esclarecer os princípios que informam a doutrina que levou a Igreja a adotar a medida disciplinar do celibato sacerdotal, é fundamental não esquecer que a perfeição cristã tem uma dupla dimensão: a vida natural e a sobrenatural. No homem, o princípio interno da vida natural é a alma (tomo-a aqui em seu preciso sentido aristotélico: como princípio intrínseco de movimento de um organismo natural); o da vida sobrenatural é a graça. Entre eles não existe solução de continuidade, pois, como ensina a boa teologia, a graça supõe a natureza. Isto significa que ela não é uma agressão à natureza, mas um auxílio de ordem superior, divino, que leva a natureza a realizar algo que está formalmente além das suas atuais possibilidades — mas sem jamais corrompê-la. Daí dizer-se que a graça não tolhe a natureza, mas a aperfeiçoa (gratia non tollit naturam, sed perficit).

Tudo isto serve para o assunto que nos ocupa nesta série de textos: vivido na graça de Deus, o celibato (tanto o sacerdotal como o dos leigos não casados) retrata o amor a Deus que leva a criatura racional a sacrificar algo natural em si, que é o apetite sexual, tendo por motivo a excelência cristã que é chamada a realizar (“Sede perfeitos, como o vosso Pai do céu é perfeito”, Mt. V, 48). Excelência para cuja consecução ele é um instrumento particularmente eficaz, dado ser um conselho evangélico. Excluir este dado de qualquer discussão sobre o celibato na Igreja é ignorância, má-fé ou, então, uma soma de ambas.

Certamente, com o nome “graça” podemos significar muitas coisas. Mas aqui a tomamos como o dom sobrenatural, concedido gratuitamente por Deus à criatura racional para a sua santificação e salvação eterna em virtude dos méritos de Cristo. Isto é, fundamentalmente, a graça. Não entro, por ora, nas distinções entre graça atual, graça santificante, graça antecedente, graça conseqüente, graça sacramental, etc., porque isto não importa para o esclarecimento da presente questão. O fato é que tanto o sacerdote quanto o leigo não casado celibatário (que antigamente se dizia estar em estado vidual) têm à sua mão um extraordinário organismo sobrenatural a que recorrer para fazer jus a seu estado, vivendo na graça de Deus sem ofendê-Lo em matéria grave. E sem descer de degrau em degrau rumo ao afastamento representado pelo pecado mortal habitual, que enlameia a alma.

Ditas estas coisas, é importante frisar que, embora o celibato não seja em si contrário à natureza do homem — seja in abstracto, seja in concreto — é no entanto um sacrifício de tal ordem, que só pode ser vivido em sua inteireza e plenitude com o auxílio da graça, sobretudo se consideramos o estado de fomes peccati que nos acossa a natureza. Não à-toa, em algum momento de sua imensa obra (que prometo indicar aqui noutra ocasião, pois estou sem tempo agora e estas coisas são como agulha num palheiro), Santo Tomás diz que, se não tivesse havido o pecado original, todos seriam casados. Ou seja: no estado de inocência, homens e mulheres se uniriam numa só carne (aos pares indissolúveis, é óbvio!), e não haveria celibato.

Isto indica ser no mínimo equívoca a opinião de que o celibato não atinge em nenhuma medida a natureza do homem, como se fora algo tão natural como o estado não-celibatário. Atinge, sim, nas operações (e não na essência), como veremos. Antes de tudo, aqui é preciso fazer uma nova distinção. Foi dito acima que o celibato é o sacrifício de algo natural no homem em vista de um bem de ordem superior. Mas como é possível sacrificar algo natural sem ir contra a natureza, já que também se afirmou que o celibato não é, em si mesmo, contra naturam? Para responder a isto é preciso aprofundar a questão e registrar que uma coisa é ir contra a natureza de um ente; outra, muito distinta, é esse ente natural não atualizar uma das suas possibilidades intrínsecas. No primeiro caso, a natureza necessariamente é atingida em uma de suas potências, e passa a ter um déficit; no segundo caso, apenas deixa acidentalmente de atualizar uma de suas potências. A título de exemplo, é a diferença entre um homem que não caminha porque não quer e outro que não pode caminhar porque lhe cortaram as pernas. No primeiro caso, não se atualiza uma potência específica da forma entitativa, sem no entanto corrompê-la; no segundo caso, o ente foi privado de uma de suas potências, contra naturam, e corrompeu-se nisto.

Eis, portanto, o aparente paradoxo: o celibato não corrompe a natureza, mas também não é natural em sentido absoluto (simpliciter). Ocorre que o seu motivo é sobrenatural: a abstinência não apenas dos prazeres ilícitos, mas também dos lícitos — para glória de Deus e bem da alma. Ora, os grandes teólogos e Doutores dizem-nos que o estado glorioso (a meta dos que sacrificam o próprio apetite em vista de uma felicidade sobrenatural que excede a qualquer alegria nesta vida) pressupõe o estado de graça. Ou, noutra formulação: a graça é o começo da glória (gratia inchoatio gloriæ), razão pela qual ninguém poderá ver a Deus se estiver com a alma manchada por qualquer tipo de pecado. E a castidade celibatária, vivida na graça de Deus, é um caminho muito seguro para a perfeição cristã que Nosso Senhor quis que alcançássemos.

Outra coisa: essa espécie particular de castidade que é o celibato cumpre a sua missão providencial no mundo, em virtude da santificação das almas da qual é um maravilhoso veículo, daí ter tido durante toda a história da Cristandade o mais elevado grau de apreço. Vivida na graça de Deus, repito, representa ele a mais excelente de todas as castidades: aquela que, segundo Emilio Gonzalez y Gonzalez (no belo tratado La perfección Cristiana), "brilha como sol no firmamento e se destaca por sua força, beleza e fragrância nos jardins da pureza, dado que participa das delícias do céu e constitui a jóia mais preciosa na terra — quando se trata de castidade virginal. Ela dignifica e enobrece sobremaneira quem a possui; transforma, eleva e espiritualiza os corpos de si sensuais e corruptíveis; converte o homem em anjo e o faz, em certo sentido, até mesmo superior aos anjos, pela luta e vencimento da concupiscência”.

(continua)

sábado, 1 de maio de 2010

Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM divulga livro da Sétimo Selo

Sidney Silveira
Acabo de receber uma mensagem dizendo que o último número do jornal da Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM — relativo às atividades daquela entidade filosófica no segundo semestre de 2009 — traz uma menção ao livro Raimundo Lúlio e As Cruzadas. Sinal de que, bem ou mal, vamos caminhando na divulgação deste trabalho editorial...

São Bernardo: As Heresias de Pedro Abelardo


Sidney Silveira
Nos últimos dias o blog não tem sido atualizado por absoluta falta de tempo de minha parte. Mas passo por aqui hoje para deixar a notícia de que está no forno, em processo de edição e revisão de textos, o livro "As Heresias de Pedro Abelardo" (Hæresum Petri Abælardi), de São Bernardo de Claraval, a ser lançado em breve em edição bilíngüe (latim/português). A Apresentação da obra, sobre a qual falarei noutra oportunidade, terá dois tópicos: um filosófico-teológico e outro histórico. Este último resgata a verdade sobre a figura do grande abade cisterciense, tão caluniado por uma historiografia revisionista mentirosa, que deturpa as fontes primárias com interpretações criminosas com o propósito de manchar a imagem deste santo extraordinário e, por conseguinte, da Igreja. Simplesmente um livraço!!!

Em tempo: A Sétimo Selo não se propõe apenas editar os grandes filósofos, teólogos e Doutores da Igreja, mas também dedica-se, em sua atuação de âmbito tão modesto e com tão parcos recursos, a restabelecer a verdade histórica sobre vários pontos fundamentais acerca da Igreja e sua doutrina. Assim foi com o livro Raimundo Lúlio e As Cruzadas (edição trilíngüe com três opúsculos deste escritor catalão), sobre o qual voltarei a falar dando notícias quentes de bastidores do front inimigo. Coisas simplesmente do arco da velha!

Em tempo2: Logo após, virá enfim o Protréptico de Clemente de Alexandria (edição bilíngüe: grego/português).