Sidney Silveira
Um dos problemas do tomismo atual é o ter-se academicizado por demais, e, conseqüentemente, não apenas ter compartimentado a obra de Santo Tomás em grandes células estanques, às vezes incomunicáveis entre si (teologia, metafísica, antropologia, moral, psicologia, etc.), como ter enfraquecido, com tal divisão, a estrutura deste harmonioso e monumental conjunto que os escritos do grande pensador medieval perfazem.
Nas universidades do mundo inteiro, hoje encontramos o tomista metafísico, o tomista estudioso da moral, o tomista "gnosiólogo", o tomista filólogo, o tomista da filosofia política. Todos eles especialistas em partes da obra do grande mestre medieval, mas, não raro, apenas com um vislumbre do todo. E pior ainda: muitos deles com interpretações eivadas de elementos espúrios à obra do Aquinate: existencialismo kierkegaardiano, fenomenologia husserliana ou de cunho heideggeriano, criticismo kantiano, formalismo spinozista, historicismo hegeliano, etc. Neste panorama há, obviamente, exceções — e se observa, aqui e ali, o ressurgimento de um tomismo infenso a adaptações a linhas de pensamento de menor estatura, ou ainda a interpretações reducionistas e/ou espetaculosas.
A palavra-chave, para analisarmos a presente situação, é “diálogo”. Ou seja: a idéia predominante posta em prática é a de pôr o tomismo em diálogo com a filosofia moderna e contemporânea para, então, mostrar a força do seu sistema*, o seu valor, a sua atualidade. O problema é que esse diálogo, dadas as premissas de que parte, dificilmente se faz sem que se reduza a obra de Santo Tomás às partes específicas estudadas por esses especialistas. E mais ainda: tais compartimentos isolados dificultam (ou impossibilitam) o florescimento de um tomismo de defesa da fé, ou mesmo de defesa da verdade, como fora o de um Derisi, de um Garrigou-Lagrange, de um Ramírez, cujas atitudes se transformaram em algo anacrônico, graças às últimas décadas de tomismo fragmentário. Mas perguntemos duas coisas: a obra de Santo Tomás — Doutor Comum da Igreja, para irritação de alguns católicos liberais — não serve mais à defesa da fé? Ou será que tal defesa, no plano filosófico e teológico, tornou-se absolutamente desnecessária?
Começamos a responder a isto frisando o seguinte: ao nosso ver, é em Santo Tomás que se encontra uma perfeita refutação das críticas modernas à metafísica, refutação das gnosiologias fantasiosas, das psicologias reducionistas, das morais formalistas que grassam na filosofia contemporânea. O diálogo do tomismo com essas correntes de pensamento, portanto, não deve partir de uma suposta paridade epistemológica com elas, mas da demonstração suficiente de quão daninhas podem ser, se levadas às últimas conseqüências. E de quão superadas estão pela síntese abarcadora de Santo Tomás.
Como exemplo deste diálogo filosófico que não tem medo de ferir susceptibilidades, cito um trecho da introdução do livro Os fundamentos metafísicos da ordem moral, do tomista argentino Octavio Nicolás Derisi:
“Desde a aparição das duas Críticas de Kant, toda a filosofia moderna vem sustentando, mais ou menos explicitamente, e por razões e sistemas mui diversos, a infranqueável separação entre o mundo da metafísica e o mundo da moral, entre o plano especulativo e o prático, entre ser e dever-ser, entre realidade e valor. Em uma palavra: vem rechaçando ou prescindindo de toda conexão entre o objeto da axiologia, o da ética e o da metafísica, e sustentando, logicamente, a irredutibilidade e a separação absoluta entre essas disciplinas. (...) A separação da moral de seu fundamento metafísico é o patrimônio kantiano herdado e conservado pela filosofia moderna até os nossos dias. (...) O caos gnosiológico e o conseqüente desastre moral do existencialismo são a conclusão lógica final da atitude inicial antiintelectualista de Kant: desengrenada a inteligência [ou seja, desprovida, artificiosamente, do seu objeto formal próprio: a verdade sobre o ser extramental], e com ela toda a vida humana, só nos resta um ativismo irracional, típico da moral autônoma e categórico-formalista de Kant. Ora, negado ou posto em dúvida o valor real do objeto da inteligência, cai ipso facto o valor real dos fins em que se apóia a atividade livre da vontade humana, e, por conseguinte, toda a moral se esboroa. (...) Poderíamos sintetizar as duas posições antagônicas — a da filosofia contemporânea iniciada por Kant e a tomista — em três notas intimamente dependentes entre si. Antiintelectualismo em gnosiologia, anti-realismo em metafísica e autonomismo em ética. Da primeira dessas posições (a antiintelectualista de Kant) surge a segunda (o anti-realismo em metafísica): o ser passa, erroneamente, a situar-se numa região além ou fora do alcance da nossa inteligência. Então, dessa base antimetafísica e agnóstica (neste último caso, em teoria do conhecimento) se seguirá uma moral sem bases ontológicas ou transcendentes — e, por isso, autônoma e formalista”.
Depois desse espetacular preâmbulo (do qual reproduzo apenas uma parte), no decorrer do livro Derisi demonstra não apenas a irredutibilidade do tomismo a essas filosofias, mas, sobretudo, mostra de forma meridiana — malgrado os acertos isolados que tiveram — a responsabilidade delas na dissolução teórica e prática de valores perenes, dissolução que dá o molde às sociedades contemporâneas. E mais: aponta que, nelas, ser (metafísica), conhecer (gnosiologia) e agir (moral) são realidades absolutamente estanques, o que traz aporias irresolvíveis. E, como cereja do bolo, antepõe-lhes Derisi a síntese harmoniosa de Santo Tomás, como algo sumamente superior.
Isso é um diálogo? Sim, na medida em que as premissas e conclusões das filosofias implicadas são expostas com toda a clareza. Mas não um diálogo como um fim em si mesmo; não um diálogo que reduza as verdades a meias-verdades, com o delicado intuito de não ferir alheias susceptibilidades.
Encerro este breve texto afirmando que, dada a estrutura das universidades contemporâneas, os orientadores de mestrado e doutorado — na imensa maioria dos casos — acabam por reduzir o objeto de estudo dos orientandos aos seus próprios interesses temáticos. Por isso, torna-se cada vez mais raro encontrarmos sínteses ou críticas filosóficas, as quais dão lugar ao estudo de minudências que, embora sejam importantes, devem estar subordinadas a algo maior. Analogamente, é como alguém que conhecesse grandemente o pé humano, mas desconhecesse minimamente o que é o homem.
* Não entro no mérito, neste texto, da discussão de se o tomismo é ou não um sistema. Deixo isto para outra ocasião.
Um dos problemas do tomismo atual é o ter-se academicizado por demais, e, conseqüentemente, não apenas ter compartimentado a obra de Santo Tomás em grandes células estanques, às vezes incomunicáveis entre si (teologia, metafísica, antropologia, moral, psicologia, etc.), como ter enfraquecido, com tal divisão, a estrutura deste harmonioso e monumental conjunto que os escritos do grande pensador medieval perfazem.
Nas universidades do mundo inteiro, hoje encontramos o tomista metafísico, o tomista estudioso da moral, o tomista "gnosiólogo", o tomista filólogo, o tomista da filosofia política. Todos eles especialistas em partes da obra do grande mestre medieval, mas, não raro, apenas com um vislumbre do todo. E pior ainda: muitos deles com interpretações eivadas de elementos espúrios à obra do Aquinate: existencialismo kierkegaardiano, fenomenologia husserliana ou de cunho heideggeriano, criticismo kantiano, formalismo spinozista, historicismo hegeliano, etc. Neste panorama há, obviamente, exceções — e se observa, aqui e ali, o ressurgimento de um tomismo infenso a adaptações a linhas de pensamento de menor estatura, ou ainda a interpretações reducionistas e/ou espetaculosas.
A palavra-chave, para analisarmos a presente situação, é “diálogo”. Ou seja: a idéia predominante posta em prática é a de pôr o tomismo em diálogo com a filosofia moderna e contemporânea para, então, mostrar a força do seu sistema*, o seu valor, a sua atualidade. O problema é que esse diálogo, dadas as premissas de que parte, dificilmente se faz sem que se reduza a obra de Santo Tomás às partes específicas estudadas por esses especialistas. E mais ainda: tais compartimentos isolados dificultam (ou impossibilitam) o florescimento de um tomismo de defesa da fé, ou mesmo de defesa da verdade, como fora o de um Derisi, de um Garrigou-Lagrange, de um Ramírez, cujas atitudes se transformaram em algo anacrônico, graças às últimas décadas de tomismo fragmentário. Mas perguntemos duas coisas: a obra de Santo Tomás — Doutor Comum da Igreja, para irritação de alguns católicos liberais — não serve mais à defesa da fé? Ou será que tal defesa, no plano filosófico e teológico, tornou-se absolutamente desnecessária?
Começamos a responder a isto frisando o seguinte: ao nosso ver, é em Santo Tomás que se encontra uma perfeita refutação das críticas modernas à metafísica, refutação das gnosiologias fantasiosas, das psicologias reducionistas, das morais formalistas que grassam na filosofia contemporânea. O diálogo do tomismo com essas correntes de pensamento, portanto, não deve partir de uma suposta paridade epistemológica com elas, mas da demonstração suficiente de quão daninhas podem ser, se levadas às últimas conseqüências. E de quão superadas estão pela síntese abarcadora de Santo Tomás.
Como exemplo deste diálogo filosófico que não tem medo de ferir susceptibilidades, cito um trecho da introdução do livro Os fundamentos metafísicos da ordem moral, do tomista argentino Octavio Nicolás Derisi:
“Desde a aparição das duas Críticas de Kant, toda a filosofia moderna vem sustentando, mais ou menos explicitamente, e por razões e sistemas mui diversos, a infranqueável separação entre o mundo da metafísica e o mundo da moral, entre o plano especulativo e o prático, entre ser e dever-ser, entre realidade e valor. Em uma palavra: vem rechaçando ou prescindindo de toda conexão entre o objeto da axiologia, o da ética e o da metafísica, e sustentando, logicamente, a irredutibilidade e a separação absoluta entre essas disciplinas. (...) A separação da moral de seu fundamento metafísico é o patrimônio kantiano herdado e conservado pela filosofia moderna até os nossos dias. (...) O caos gnosiológico e o conseqüente desastre moral do existencialismo são a conclusão lógica final da atitude inicial antiintelectualista de Kant: desengrenada a inteligência [ou seja, desprovida, artificiosamente, do seu objeto formal próprio: a verdade sobre o ser extramental], e com ela toda a vida humana, só nos resta um ativismo irracional, típico da moral autônoma e categórico-formalista de Kant. Ora, negado ou posto em dúvida o valor real do objeto da inteligência, cai ipso facto o valor real dos fins em que se apóia a atividade livre da vontade humana, e, por conseguinte, toda a moral se esboroa. (...) Poderíamos sintetizar as duas posições antagônicas — a da filosofia contemporânea iniciada por Kant e a tomista — em três notas intimamente dependentes entre si. Antiintelectualismo em gnosiologia, anti-realismo em metafísica e autonomismo em ética. Da primeira dessas posições (a antiintelectualista de Kant) surge a segunda (o anti-realismo em metafísica): o ser passa, erroneamente, a situar-se numa região além ou fora do alcance da nossa inteligência. Então, dessa base antimetafísica e agnóstica (neste último caso, em teoria do conhecimento) se seguirá uma moral sem bases ontológicas ou transcendentes — e, por isso, autônoma e formalista”.
Depois desse espetacular preâmbulo (do qual reproduzo apenas uma parte), no decorrer do livro Derisi demonstra não apenas a irredutibilidade do tomismo a essas filosofias, mas, sobretudo, mostra de forma meridiana — malgrado os acertos isolados que tiveram — a responsabilidade delas na dissolução teórica e prática de valores perenes, dissolução que dá o molde às sociedades contemporâneas. E mais: aponta que, nelas, ser (metafísica), conhecer (gnosiologia) e agir (moral) são realidades absolutamente estanques, o que traz aporias irresolvíveis. E, como cereja do bolo, antepõe-lhes Derisi a síntese harmoniosa de Santo Tomás, como algo sumamente superior.
Isso é um diálogo? Sim, na medida em que as premissas e conclusões das filosofias implicadas são expostas com toda a clareza. Mas não um diálogo como um fim em si mesmo; não um diálogo que reduza as verdades a meias-verdades, com o delicado intuito de não ferir alheias susceptibilidades.
Encerro este breve texto afirmando que, dada a estrutura das universidades contemporâneas, os orientadores de mestrado e doutorado — na imensa maioria dos casos — acabam por reduzir o objeto de estudo dos orientandos aos seus próprios interesses temáticos. Por isso, torna-se cada vez mais raro encontrarmos sínteses ou críticas filosóficas, as quais dão lugar ao estudo de minudências que, embora sejam importantes, devem estar subordinadas a algo maior. Analogamente, é como alguém que conhecesse grandemente o pé humano, mas desconhecesse minimamente o que é o homem.
* Não entro no mérito, neste texto, da discussão de se o tomismo é ou não um sistema. Deixo isto para outra ocasião.